No ano em que nasci, a ditadura militar já tinha três anos de vida. Por isso, minhas lembranças são imprecisas. A memória mais presente é a sensação de que era preciso tomar cuidado com o que se dizia. Pairava no ar um medo latente. Ao se cruzar na rua com alguém trajando um uniforme, instintivamente baixavam-se os olhos e o tom de voz. O tempo passou, a democracia voltou, mas o acerto de contas com o passado ficou incompleto. Um passo importante foi dado na quarta-feira 10, quando, após mais de dois anos de investigação, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) divulgou o fruto de seu trabalho pedindo a condenação de 377 envolvidos nos crimes contra os direitos humanos cometidos entre 1945 e 1988.

A leitura do relatório é um doloroso convite à reflexão. Econômicas nos adjetivos, suas 4.319 páginas oferecem um retrato sem retoques de uma época tenebrosa. Além de identificar os militares responsáveis pelas torturas e seus comandantes, elas trazem rostos e biografias das vítimas. A galeria é variada. Imagens de militantes experimentados na ação política acompanham retratos de jovens movidos tanto pelo idealismo quanto pela inconsequência. Porém, uma leitura maniqueísta do relatório seria ingenuidade. A disparidade de forças dos envolvidos no conflito não é um argumento a favor da vitória moral dos vencidos.

A luta armada não foi um conflito do Bem contra o Mal, em que anjos libertadores enfrentaram, desarmados, os demônios da tirania. Houve crimes e erros de parte a parte. Ao lado dos inocentes executados sem julgamento pelas forças da repressão, havia ativistas determinados não a recuperar a democracia, mas a instalar uma ditadura do proletariado. Suas ações vitimaram brasileiros que nada tinham a ver com a história. Os militares também não eram um grupo homogêneo de algozes fardados. Houve quem discordasse da repressão e sucumbisse a ela.

Um dos primeiros mortos da ditadura foi o sargento gaúcho Manoel Raimundo Soares, cujo corpo foi encontrado boiando no rio Guaíba, em Porto Alegre, com as mãos amarradas. Nesse cenário, a recusa sistemática dos militares em participar dos trabalhos da Comissão é uma indignidade. Recordemos a postura do tenente da reserva José Conegundes do Nascimento. Convocado a depor, ele escreveu no requerimento: “Se virem. Não vou comparecer. Não colaboro com o inimigo”. Atitudes como essa denigrem as Forças Armadas. O grosso da conta da ditadura fica com os militares. Eles subiram ao poder pela força das armas e graças a elas o mantiveram por mais de duas décadas.

O regime justificou sua longevidade com o Milagre Econômico, sem considerar a conta de inflação e desorganização econômica que sobraria para os sucessores civis. Por isso, a ausência de uma autocrítica fardada torna os jovens oficiais da ativa, que nem sequer haviam nascido, participantes do regime de exceção. Os anos de chumbo foram um período com início e com meio, mas, para muitas de suas vítimas – e seus familiares –, ainda sem fim. Além do documento histórico, o relatório da Comissão poderá permitir a meio milhar de famílias brasileiras, enfim, sepultar e prantear seus mortos. E conscientizar esta e as próximas gerações de que o regime militar deve permanecer, para todo o sempre, onde está hoje: no passado.