Diego Armando Maradona é uma metáfora da Argentina. Nasceu pobre no bairro operário de Avellaneda, num hospital chamado Evita Peron. Já milionário, com a arrogância autorizada apenas aos gênios que vieram de baixo, chegou a recusar uma Ferrari vermelha dada de presente pelos dirigentes de seu clube, o Nápoles, avaliada em US$ 400 mil, apenas porque não tinha mudança de marcha. Não gostava de dirigir carros automáticos. Em poucos dias, um novo veículo foi estacionado na porta de sua casa. Tal qual a Argentina, país de destinos trágicos como o de Evita, derrotada pelo câncer aos 33 anos, e de Carlos Gardel, morto aos 45 num acidente de avião, Maradona já esteve numa UTI há quatro anos, e saiu com vida. Ao redor de 1930, diante do espantoso PIB à margem do Rio da Prata, então o sétimo mais elevado do mundo, havia uma frase em francês para definir gente de escol ? eram ?ricos como um argentino?.

 

Não bastasse a semelhança com seu próprio país, num vaivém de riqueza e auto-suficiência, a trajetória de Maradona combina com uma definição de Enrique Santos Discépolo, um dos grandes compositores portenhos, ao definir o tango: ?É um sentimento triste que se baila?. Era esse tango que cortava a Argentina na semana passada. Diante da clínica Suizo-Argentino, num bairro de classe alta de Buenos Aires, centenas de fãs atravessavam a madrugada em vigília. Entoavam cantos de torcidas. Rezavam pela recuperação do ex-jogador, internado em estado grave, respirando por aparelhos, em virtude de uma infecção pulmonar que comprometera o funcionamento do coração. A pequena multidão lembrava os descamisados que zelavam por Evita na agonia, em 1952, e depois acompanharam seu féretro. Maradona e Evita sempre conseguiram conversar com os mais simples. ?Ele representa um desafio ao poder, e isso comove os pobres?, disse à DINHEIRO Claudio Tamburrini, filósofo argentino, ex-goleiro do Velez Sarsfield e do Almagro, que nos anos 70 foi seqües-
trado pelos militares por participar de um movimento de esquerda. ?A diferença é que Evita teve seu trágico destino selado no auge da carreira política, e Maradona há muito é humilhado pelas drogas.?

Maradona, para prosseguir na comparação da música que define uma nação, é subversivo como um tango. Mistura abandono, luta de classes, orgulho e descrença ? na definição de um respeitado escritor, Mempo Giardinelli. Por força de um único objeto, a bola, que ele manipulava como poucos, ascendeu socialmente ? ao abandonar o esporte, e mesmo antes de pendurar as chuteiras, já retornara às dificuldades que naturalmente passaria se não tivesse se transformado num craque. Até mesmo ao fazer um gol de mão diante da Inglaterra, na Copa de 1986, ?la mano de Diós?, revelou-se um milongueiro, um artista da picardia tão cara aos cidadãos do Prata.

 

Ao atrair para si, como símbolo de um povo, todas as qualidades e defeitos do argentino, teve a trajetória das melhores letras de tango. É um ritmo celebrado também por servir como canção de protesto ? e Maradona fez isso em toda sua vida. Leva no braço uma tatuagem de Che Guevara, nunca aceitou os salamaleques de Carlos Menem, brigou com os cartolas e, sempre que pôde, incomodou os poderosos ao lembrar que era um ?cabezita negra? que vencera ? os cabecitas são os descendentes de índios, quase sempre de bairros da periferia. Marcos Aguinis, autor de um livro de título inspirado, O atroz encanto de ser argentino, diz que ?o tango também mostra como nós, argentinos, quando idolatramos alguém, perdoamos tudo?. É uma memória seletiva, que apaga os episódios negativos para valorizar apenas os positivos, sem conces-
sões. Com Gardel foi assim em vida, até que sua morte o alçou a um outro patamar: o dos mitos intocáveis. Em Buenos Aires, seu sorriso aparece em fotografias por toda a cidade, ao lado de Evita. Ambos se tornaram santos laicos. Maradona segue esse caminho. É, hoje, o retrato mais adequado da crise econômica argentina ? narra, a partir de uma cama de hospital, 43 anos de um país encantador e atroz.