21/08/2008 - 7:00
DINHEIRO – O Brasil virou uma república de grampos?
MARCELO ITAGIBA – Com certeza. Não é só a telefonia que está sendo interceptada. Os e-mails também. Todas as formas de comunicação hoje estão submetidas ao uso da interceptação.
DINHEIRO – As vidas privadas estão expostas?
ITAGIBA – Completamente. Acabou a privacidade
DINHEIRO – Sabe-se que há 409 mil telefones grampeados…
ITAGIBA – No mínimo. Esse é um fato importante. É preciso ter um órgão capaz de contabilizar esses números no País, porque ninguém tinha esses Entrevista / Marcelo Itagiba números, nenhuma autoridade do Judiciário, nenhuma policial nem o Ministério Público.
DINHEIRO – Se cada uma dessas 409 mil pessoas falar com outras dez, haveria quatro milhões de pessoas grampeadas?
ITAGIBA – É um cálculo raso, esse número pode ser maior. Por isso, eu falo em banalização. O criminoso deve ser investigado, mas a lei que hoje está vigente não é usada de forma correta. A polícia deveria investigar primeiro e solicitar a interceptação depois.
DINHEIRO – O que ocorre hoje?
ITAGIBA – Muitas vezes se concede a interceptação para casos que não seriam necessários, ou antes de eles se fazerem necessários. A lei estabelece que se deve investigar para interceptar e não interceptar para investigar. Ela existe para os crimes que foram praticados e não para investigar pessoas.
“Vale a regra de Tancredo: só usar o telefone para marcar reunião à qual você não vai” Tancredo Neves, político mineiro
DINHEIRO – Podemos falar numa personificação dos grampos?
ITAGIBA – É isso mesmo. E essa questão é séria, porque vira perseguição. Não se pode investigar pessoas por tempo indeterminado. Isso viola os direitos constitucionais e os direitos da intimidade das pessoas. O grampo tem que ser exceção e não regra.
DINHEIRO – O sr. percebe um uso político desse instrumento?
ITAGIBA – A forma como está sendo utilizado dá margem para que possa ser utilizado politicamente.
DINHEIRO – Em que casos a interceptação telefônica é necessária?
ITAGIBA – Ela é um instrumento fundamental para a investigação policial, principalmente para apurar crimes do colarinho-branco, contra o sistema financeiro, de bando ou quadrilha, tráfico de drogas e de criminalidade organizada, como seqüestro.
DINHEIRO – Se ela é tão necessária, como se evitar a arbitrariedade?
ITAGIBA – Há várias propostas, tanto do Executivo quanto do Legislativo. Na verdade, a lei do grampo foi feita há 12 anos e, a meu ver, foi bem elaborada. Mas não previu tudo isso que está acontecendo no País.
DINHEIRO – O que mudou?
ITAGIBA – Antes, não tinha autorização para fazer interceptação, então se investigava muito mais. Quando veio a lei, as polícias usaram muito as interceptações para fazer prisões em flagrante, principalmente vinculadas ao tráfico de drogas. Depois evoluiu para um outro sistema, que é o uso da interceptação como meio probatório do crime ocorrido. Mas hoje, como se tornou um instrumento usual e fácil, a polícia, com comodismo, passou a se utilizar do grampo para investigar o crime que aconteceu e o que vai acontecer. Investiga- se a pessoa, não o crime.
DINHEIRO – O sr. quer dizer que para facilitar seu trabalho, a polícia atropelou os direitos individuais?
ITAGIBA – Em alguns casos, violam a lei e a Constituição.
DINHEIRO – Como o cidadão e o empresário devem lidar com isso?
ITAGIBA – Tancredo Neves, antes da lei do grampo, dizia: “Use o telefone só para marcar reunião à qual você não vai”. Porque se for, há um risco.
DINHEIRO – O Congresso reagirá?
ITAGIBA – Nós temos que criar um novo marco legal que continue permitindo as interceptações telefônicas, porque elas são fundamentais, mas que, ao mesmo tempo, regule determinadas situações que estão sendo ultrapassadas. Por exemplo, a questão dos equipamentos. De que forma eles podem ser comercializados ou utilizados? Como devem ser auditados? O que fazer? Embora a lei preveja isso, ninguém toma cuidado com as informações que não foram utilizadas nas investigações. Qual o destino delas? Foram realmente destruídas ou não?
DINHEIRO – Há um excesso por parte dos juízes que autorizam grampos?
ITAGIBA – Eles devem ter liberdade pare decidir, mas o critério tem que ser o que a lei estabelece. Uma coisa muito grave são os prazos extensos que os juízes concedem sem que sequer tenham condições de apreciar as provas.
DINHEIRO – Por exemplo?
ITAGIBA – Dois anos de interceptação. Quantas mil horas de interceptação isso representa? Qual é o juiz que vai ouvir isso tudo para fazer o juízo se aquela pessoa cometeu um crime ou não? Tem um problema adicional: todas as outras pessoas que conversaram com o investigado, mas não cometeram nenhum crime, tiveram suas conversas gravadas. Muitas delas conversaram coisas pessoais, reservadas, assuntos íntimos. Que fim levaram essas gravações? Sabe quem tem esse grande banco de dados?
DINHEIRO – Não. Quem?
ITAGIBA – Não faço a menor idéia. É o que eu quero saber. A CPI também. Queremos saber se existe algum arquivo geral. Porque a lei estabelece que todas as conversas que não foram utilizadas devem ser destruídas. Só que eu nunca vi um auto de destruição.
DINHEIRO – Como o grampo funciona em outros países?
ITAGIBA – Nos Estados Unidos não se fabrica nenhum instrumento nem se codifica nada sem que o órgão de fiscalização oficial do governo tenha a chave para acessar, que é uma questão de segurança nacional. O problema aqui é que a lei não é seguida. Os grampos estão revestidos de uma capa de legalidade, porque são autorizados por juízes, mas não quer dizer que o fato seja legal.
DINHEIRO – A PF saiu do controle?
ITAGIBA – Uma coisa é a Polícia Federal, instituição, a outra coisa é cada delegado na presidência de seu inquérito. Ele tem autonomia para fazer tudo dentro da lei, se estiver fora da lei tem que ser responsabilizado.
DINHEIRO – O que esperar quando até o presidente do Supremo Tribunal Federal é grampeado?
ITAGIBA – Isso é um absurdo. É uma violação do direito sagrado de ter uma Corte com autonomia para poder decidir sem qualquer tipo de pressão. Se isso de fato aconteceu, é uma violação gravíssima. Ninguém pode monitorar um ministro da Suprema Corte sem a autorização de um ministro da Suprema Corte. Eu acho que o ministro Tarso Genro já deveria ter instaurado um inquérito para apurar isso. A PF, tão competente, deveria investigar. Pode ter partido de outro órgão do governo.
DINHEIRO – O sr. se refere à Abin?
ITAGIBA – Isso deve ser aprofundado e o diretor Paulo Lacerda será ouvido pela CPI. Todo mundo sabe que, no passado, o Serviço Nacional de Informações agia de forma ilegal, com interceptações telefônicas.
DINHEIRO – A Abin virou um SNI?
ITAGIBA – Não, isso não.
“Tarso Genro já deveria ter aberto um inquérito para investigar o grampo no STF” Tarso Genro, ministro da Justiça
DINHEIRO – Há ainda o outro lado, que é o comércio dos grampos ilegais.
ITAGIBA – Estamos “futucando” essas questões. Essa CPI nasceu de um receio que a mais alta Corte do País, o Supremo Tribunal Federal, se sentia ameaçada. É preciso aumentar a repressão para evitar essa proliferação de grampos que hoje existe no Brasil. Incluindo o controle dos equipamentos, quem pode comprá-los, quem pode vendê-los e quem fará o controle.
DINHEIRO – Enquanto nada disso é feito, o cidadão fica à mercê dos espiões?
ITAGIBA – Nós já comprovamos na CPI a existência de pessoas que teriam feito interceptações indevidas. Assim que concluirmos a CPI, vamos encaminhar esse material para que o Ministério Público adote as medidas cabíveis. A própria Kroll está sob investigação da CPI, por suposta prática de interceptações ilegais.
DINHEIRO – Quem está nessa lista?
ITAGIBA – Ao que parece, o Daniel Dantas, do Opportunity, está por trás dos grampos da Kroll. Por isso eu estou ouvindo o delegado Protógenes Queiroz e o juiz Fausto De Sanctis. Eu quero justamente saber se no curso da investigação há algum indício, informação ou prova de interceptação telefônica indevida e criminosa por parte de Daniel Dantas e seu grupo.
DINHEIRO – Não foi a concorrente Telecom Italia que entregou o CD do caso Kroll à PF?
ITAGIBA – Precisamos investigar. Já tivemos algumas informações e vamos solicitar outras ao juiz da causa.
DINHEIRO – As operadoras de telefonia estão colaborando com a CPI?
ITAGIBA – Infelizmente, estão contribuindo muito pouco.
DINHEIRO – Por quê?
ITAGIBA – Talvez estejam com receio de abrir a caixa-preta deles. Não dá nem para conferir se o número de 409 mil que elas forneceram é verdadeiro ou não.
DINHEIRO – Que interesses estão envolvidos?
ITAGIBA – Há muitos interesses envolvidos e muitos contrariados, principalmente quando se fala em fusão de teles. Me parece que essa fusão viola todos os preceitos legais, estão tentando mudar a legislação para permitir que grupos que estão sob investigação se fundam.
DINHEIRO – A CPI investiga a Brasil Telecom e a Oi?
ITAGIBA – Brasil Telecom, sim, porque o Daniel Dantas é sócio.
DINHEIRO – O que o sr. recomenda aos empresários que correm o risco de terem suas vidas devassadas pelas escutas oficiais ou clandestinas, sem que tenham cometido nenhum crime?
ITAGIBA – A melhor precaução é falar ao telefone somente aquilo que pode ser falado. Nada mais.