22/06/2020 - 12:08
A competição pelo investidor de varejo nos Estados Unidos sempre foi muito feroz, e a chegada das fintechs colocou ainda mais pressão nesse mercado. A Robinhood, por exemplo, foi a primeira a oferecer, em 2013, transações online para ações e ETFs sem taxa de corretagem. Em 2016 já tinha 1 milhão de clientes, e no início deste ano já havia multiplicado esse número por 10. A pressão foi tão grande que gigantes do setor como Charles Schwab, Fidelity e TD Ameritrade tiveram que eliminar suas taxas de corretagem ao final do ano passado. Bancos americanos, como JP Morgan, também entraram mais agressivamente nesse mercado criando plataformas de negociação online sem custo de corretagem.
Transações de graça, e ilimitadas, vieram para ficar: corretoras e bancos ganham muito mais dinheiro com o que acontece nos bastidores depois que a ordem de compra e venda é colocada na plataforma.
Abrir uma conta online nos dias de hoje é quase tão simples quanto se tornar usuário de uma rede social. Isso vem atraindo cada vez mais investidores que não participavam, ou participavam muito pouco, do mercado financeiro. Baiju Bhatt, Co-CEO da Robinhood, declarou em entrevista à rede de notícias CNBC que “pessoas que anteriormente não pensavam que o mercado financeiro era para elas estão, pela primeira vez, se sentindo incluídas”.
A maior participação das pessoas no mercado financeiro é certamente positiva. O investimento feito com dedicação, disciplina, gestão de riscos e planejamento é a receita para a independência financeira no longo prazo. E isso é mais verdadeiro quanto mais cedo se começa a investir.
Muita gente entrou no mercado com essa mentalidade, e estão no caminho certo. Entretanto, há relatos de bastante gente que entrou sem saber o que estava fazendo. Virou passatempo nesses dias de quarentena comprar e vender ativos no mercado financeiro somente para ter o que postar em redes sociais. Ainda pior, gente que estava acostumada a apostar em times de futebol, baseball e outros esportes passou a “apostar” em ações.
O exemplo mais destacado desse segmento é Dave Portnoy, fundador do site Barstool Sports. Com todas as competições paralisadas, seu site dedicado a apostas em esportes foi atingido em cheio. Portnoy decidiu, então, “apostar” em ações: “Eu gosto de apostar em esportes. Os esportes estão parados, e como o mercado continua funcionando achei que era algo que poderia fazer durante o dia”, declarou recentemente ao jornal The New York Times. Sem conhecimento prévio do mercado, Portnoy compra e vende ações baseado em seus instintos e emoções, transmitindo seu processo de tomada de decisão para os seus mais de 1,2 milhão de seguidores no Twitter numa ‘live’ diária que chamou de Davey Day Trader.
Influenciar essa quantidade enorme de pessoas a comprar e vender por instinto leva a certas barbaridades. Um deles é o movimento recente da ação da Hertz. A empresa de locação de veículos entrou em recuperação judicial ao final de maio, por conta da pandemia. Naturalmente, o preço das suas ações despencou: na mínima, negociou a US$ 0,50 centavos. Alguns dias depois, um movimento de compra inexplicável levou sua ação para mais de US$ 5. Uma valorização de dez vezes em pouco mais de uma semana. O que leva alguém a comprar ações de uma companhia quebrada senão por completo desconhecimento do que isso significa? Comprar porque caiu muito ou vender porque subiu demais é o tipo de lógica fadada ao insucesso.
Alguns analistas estimam que a alta recente do mercado acionário americano, em aparente descompasso com a realidade atual da economia, se deve à influência desse tipo de investidor. Não acho que o volume financeiro desse segmento seja tão grande que possa influenciar o comportamento de preços do mercado em geral, mas com certeza afeta papeis específicos. Ativos de setores mais impactados pela pandemia, como turismo, aviação e hotelaria, que pela conjuntura já estão sujeitos à volatilidade mais alta, podem ver seus movimentos potencializados ainda mais por tipos como Davey Day Trader e seus seguidores.
Além das consequências financeiras, que são terríveis, entrar no mercado financeiro sem saber o que está fazendo pode levar a verdadeiras tragédias. Nessa semana, um usuário do Robinhood de 20 anos de idade se suicidou ao verificar que sua conta estava negativa em mais de 700 mil dólares após a liquidação de algumas opções. O extrato da conta, aparentemente incompleto, levou o jovem ao desespero. Oferecer acesso a instrumentos complexos, como opções, a jovens sem o mínimo de educação financeira é uma irresponsabilidade abominável.
Apostar e investir são duas coisas completamente diferentes. Apostar em ativos é como apostar em um cassino: a casa sempre ganha. O mercado vai tratar de afastar esse investidor. Ficarão aqueles que realmente estão buscando um futuro melhor através do investimento fundamentado, sistemático e disciplinado. Que sejam bem-vindos.