30/03/2005 - 7:00
A barganha atingiu o limite na tarde da segunda-feira 21. De um lado o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, com seus 300 votos parlamentares, do outro o presidente Lula e seus 50 milhões do sufrágio popular. O primeiro deu o ultimato: ou colocava no Ministério das Comunicações quem ele queria ? o piauiense Ciro Nogueira, seu apadrinhado ? ou ele partia para a ofensiva, na base do ?faz o que eu quero ou agüente as consequências?. Cavalcanti já brindou o País, nos poucos e agitados dias em que assumiu o cargo, com uma conta adicional de R$ 30 bilhões entre projetos engavetados que ele liberou ? dos quais alguns estapafúrdios, como o aumento de 90,25% nos salários dos delegados ? e outros lançados na calada da noite, como o aumento da verba parlamentar. Cavalcanti ainda deu novas demonstrações de nepotismo justificando a contratação de seus familiares para os mais variados cargos e comissões. Agora Cavalcanti queria se consagrar no balcão de negociação eleitoreira, na base do toma-la-da-cá. Era o retrato bem acabado do varejo de negociatas em que se converteu a malfadada reforma ministerial, que se arrastou por semanas, com o presidente Lula praticamente submergindo nas águas turvas dos pedidos. Lula tinha de acomodar no mesmo barco uma extensa lista de correligionários que já ocupam 18 ministérios e outros tantos que vão exigindo pastas de acordo com o orçamento de cada uma para fazer valer sua influência nesse ou naquele curral eleitoral. Uma reforma capenga foi desenhada ? com pouco, ou nenhum critério técnico ? para acomodar o caro e ambicioso projeto do governo de reeleição. O governo quer o tempo de televisão dos partidos, quer contribuições de campanha, quer alargar bases de votos nos Estados, para o grande e decisivo confronto com os rivais do PSDB. É nisso que está mergulhada toda a cúpula do presidente Lula, com o ministro José Dirceu à frente, e é nessa direção que a máquina federal está trabalhando, custe o que custar, mesmo que o resultado da reforma tenha sido trocar seis por meia dúzia. O senador José Sarney definiu o momento. ?Eu fui presidente e sei que fazer reforma nesta hora é complicado, quando as águas estão muito revoltas?.
A economia do setor público só perdeu com o mergulho na confusão. Entre emendas na reforma da Previdência, mudanças nas Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e aumento no teto salarial de diferentes categorias de servidores públicos, o orçamento da União ? negociado no balcão da reforma — sofrerá este ano um impacto de R$ 26 bilhões. Uma fortuna que não parece suficiente para dar a Lula as garantias de apoio que ele tanto persegue. O aumento das verbas de gabinete dos deputados, que saltaram num golpe de caneta, sem qualquer votação, de R$ 35,3 mil para R$ 44,1 mil, custará R$ 103 milhões apenas este ano. Ficou o exemplo para que as 27 assembléias legislativas e mais de 5 mil câmaras municipais do País peguem o mesmo atalho. Já está preparado um gatilho salarial para os juízes do STF, cujos vencimentos atuais de R$ 19,1 mil irão aumentar para R$ 21,5 mil este ano e para R$ 24,5 mil em 2006. Em cascata, esses acréscimos terão rebatimento nas centenas de cortes, a favor dos milhares de juízes brasileiros. E tudo isso pode ser pouco. Um bloco que já conta com 80 deputados está em campanha para a criação de dez novos Estados. Dez! Calcula-se que o estabelecimento dos estados do Mato Grosso do Sul (1977) e Tocantins (1988) custou R$ 1,9 bilhão à União. A conta pode ir a 30 bilhões. ?É um show de fisiologismo?, diz o senador Tasso Jereissati.
Também é certo que o presidente Lula sucumbiu em meio a um espetáculo de desorganização. Seus articuladores não souberam ser anteparos para preservar-lhe a imagem. Na quarta-feira 16, enquanto se comemorava, com bolo e salgadinhos, no Palácio do Planalto, o aniversário do ministro José Dirceu, o governo era derrotado na votação da emenda da Previdência. ?Não é possível?, reagiu um auxiliar do ministro ao ser informado pelo telefone. Na mesma noite, duas CPIs foram autorizadas no Senado, uma delas reabrindo o caso Waldomiro Diniz. Sobrou para Lula, em pessoa, o desgastante papel de receber, em seu gabinete, presidentes de partidos e políticos diretamente interessados nos cargos. Michel Temer, do PMDB, lá esteve na noite da sexta-feira 18 ? e fez saber que não aceitaria a saída de Eunício Oliveira do Ministério das Comunicações. Ciro Gomes, dias antes, havia entrado como futuro ministro da Saúde e, sem querer assumir a pasta, saiu como renovado titular da Integração Nacional. João Paulo Cunha subiu ao terceiro andar como novo coordenador político, mas voltou ao térreo apenas ex-presidente da Câmara. Não conseguiu dividir os poderes de nomear do ministro Dirceu. Tantas idas e vindas provocaram lances de humor. ?Se o presidente ligar, você atende?, brincou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que nunca esteve ameaçado, ao seu chefe de gabinete. ?O demitido será você?.
Restou a Lula recuar, limitar ao máximo sua reforma, torná-la mini. Tomou o cargo mais entregue do governo, o de Amir Lando, na Previdência, e o repassou para o senador Romero Jucá, de Roraima. A saída de um peemedebista e a entrada do outro foi uma exigência do partido. Num movimento simples, o presidente reforçou o poderio do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, ao colocar o deputado petista Paulo Bernardo no Ministério do Planejamento. Ex-bancário, Bernardo sempre foi, no Congresso, absolutamente alinhado a Palocci. No sábado 19, quando ainda acreditava que podia realizar gestos largos sobre o ministério, o presidente retomou em Aracaju o hábito dos discursos enfáticos. Fez um ao entregar um conjunto de casas populares próximas à praia. ?Estamos conseguindo distribuir a riqueza, eu diria, até com uma certa facilidade?, afirmou o presidente. Do ponto de vista de Severino Cavalcanti, com certeza.