Grupos jihadistas forçam populações a deixar celeiro agrícola do país. Cortes de ajuda externa agravam riscos para deslocados internos. Segundo a ONU, quase 31 milhões estão passando fome.A Nigéria vive uma iminente crise de fome sem precedentes na porção norte do seu território, com pelo menos 5 milhões de crianças em desnutrição aguda, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

Apesar de a região ser um tradicional celeiro agrícola, especialistas atribuem o cenário crítico a problemas de governança e à insegurança prolongada num contexto de conflitos locais. O corte de fundos de ajuda externa, em consequência do desmonte da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), agrava a crise humanitária.

De acordo com Margot van der Velden, diretora regional para a África Ocidental do Programa Mundial de Alimentos (PMA), ligado às Nações Unidas, quase 31 milhões de nigerianos enfrentam insegurança alimentar aguda. Isso equivale a mais de 10% da população do país, estimada em 232 milhões pela ONU.

Trabalhadores especializados no território temem que a redução no financiamento, somada a poucas oportunidades de trabalho e preços altos, possam desfazer anos de esforços para diminuir a influência de grupos jihadistas armados, como o Boko Haram, considerado uma organização terrorista.

“É uma questão de emergência para o governo oferecer alívio e evitar um surto de conflito contraproducente”, disse Dauda Muhammad, coordenador humanitário no nordeste da Nigéria.

Problemas em cadeia

Muitos programas de ajuda na África Ocidental se vêem forçados a fechar após o desmonte da Usaid pelo governo do presidente americano, Donald Trump.

O PMA alertou que seu programa emergencial de ajuda alimentar seria encerrado em julho devido a “graves lacunas de financiamento”, e que seus estoques de alimentos e nutrição haviam sido completamente esgotados. Até o fim do mês passado, o programa dispunha de apenas 21% dos 130 milhões de dólares necessários para sustentar as operações deste ano.

Enquanto isso, campos para deslocados internos abrigam dezenas de milhares de pessoas fugidas da violência, que, segundo a ONU, já matou mais de 40 mil pessoas e expulsou mais de 2 milhões de suas casas nos últimos 16 anos.

Para os governos locais, os campos já não são mais sustentáveis. Mas a violência persistente não permite à população deslocada voltar aos seus territórios.

“O que mantém a crise de forma persistente é a incapacidade do Estado nigeriano de oferecer segurança às populações rurais”, explica Samuel Malik, pesquisador especializado em governança. “Os deslocados não conseguem ou não querem voltar para suas terras agrícolas, cortando assim seu principal meio de subsistência.”

“Melhor no Boko Haram”

No estado de Borno, um dos focos da crise de fome e segurança, o governador Babagana Umara Zulum renovou recentemente os apelos para que os deslocados retornem às suas fazendas a tempo da estação chuvosa para produzir alimentos.

Mas milhares de militantes do Boko Haram ameaçam a região nordeste da Nigéria, além de conflitos entre agricultores e criadores de animais.

Os ataques jihadistas forçam há anos populações ao êxodo, criando vilarejos abandonados. A escassez de produção agrícola eleva o preço dos alimentos básicos na região.

“Estamos em uma situação difícil, especialmente com a fome e a falta de comida”, relatou um deslocado do estado de Borno. “Alguns de nós, refugiados, dizem que estão melhor entrando para o grupo terrorista Boko Haram”, acrescentou.

A DW encontrou jovens em Borno que continuam desempregados e passam fome, após terem deixado grupos jihadistas, apesar das promessas do governo de recompensá-los.

Por sua vez, os grupos terroristas recorrem à agricultura de subsistência, aos saques e à renda gerada por atividades ilegais e resgates de sequestrados.

Sequestros e abusos no campo

O campo de deslocados de Ramin Kura, em Sokoto, é um para os quais os moradores de áreas rurais se viram forçados a fugir no noroeste nigeriano. Umaimah Abubakar, de 40 anos, da vila de Ranganda, conta que se mudou para lá depois que criminosos mataram seu marido e roubaram todos os animais de seus sogros.

“Sempre que ouvíamos que eles estavam se aproximando, corríamos para nos esconder”, conta. “Todos estão sofrendo porque não há comida. Não pudemos plantar este ano. Às vezes, quando conseguimos plantar, os bandidos atacam antes da colheita. Outras vezes, depois que você colhe e armazena seus grãos, eles vêm e queimam tudo.”

No campo de deslocados, a família de Sha’afa Usman, de 19 anos, afirma que tentou, em vão, voltar às suas terras.

“Tentamos plantar em nossas terras, mas as pessoas eram sequestradas enquanto trabalhavam. Agora, a única forma de ir para a roça é com escolta de segurança ou vigilantes”, disse a mãe de três filhos. O marido foi sequestrado e continua em cativeiro. “A maioria dos moradores já não vai mais porque não pode pagar resgate.”

Em terras aráveis controladas pelos jihadistas, camponeses nigerianos entram em acordos exploratórios com grupos armados para sobreviver.

“As atividades agrícolas foram reestruturadas sob arranjos coercitivos ditados por atores não estatais”, afirma Malik. “Em muitos casos, os bandidos exigem taxas de cultivo e de proteção, além de obrigarem as pessoas a trabalharem como mão de obra forçada em terras que foram tomadas dos moradores ou abertas a partir de florestas antes não cultivadas.”

Desde o último sábado (02/08), o noroeste da Nigéria teve dois sequestros em massa, com 115 pessoas tendo sido capturadas. Dentre elas, pelo menos 45 eram mulheres e crianças. Nos últimos anos, centenas de pessoas já foram abduzidas e assassinadas na região.

Com informações de Jamiu Abiodun, Nasiru Salisu Zango e Reuters.