04/03/2009 - 7:00
DINHEIRO – Brasil tem resistido à crise graças ao severo modelo de concessão de crédito. Os critérios ficarão ainda mais rígidos após a crise?
FRANCISCO VALIM – Não necessariamente. Temos desenvolvido novos modelos de avaliação de risco, fator que pode melhorar os sistemas de concessão. Claro que, assim que a crise surgiu, as condições de financiamentos ficaram mais restritas, as taxas de juros mais altas, as condições menos favoráveis em termos de prazos e pagamentos à vista e, por fim, a análise de crédito ficou mais severa. Porém, isso deve se normalizar.
DINHEIRO – Em termos de crédito, o susto já passou?
VALIM – O Brasil vive hoje uma situação muito peculiar. Não existe nenhuma razão intrínseca para ter uma crise. O País destina muito de sua produção ao consumo local. Obviamente algumas áreas de exportação foram impactadas negativamente por conta da variação cambial. Mas essa crise surgiu da ausência de liquidez que ocorreu no final do mês de setembro, começo de outubro, e que se prolongou por algum tempo. Ou seja, vamos ver algumas dificuldades e ajustes. O crescimento vai ser menor. No entanto, não implica nem de longe recessão, diminuição severa dos empregos. Se esse processo de liquidez retoma sua normalidade e a incerteza em relação aos rumos da economia é bastante mitigada, a crise pode realmente passar de forma realmente bastante tranquila.
DINHEIRO – Mas muitos setores foram fortemente penalizados.
VALIM – Apenas setores específicos, como a indústria e o segmento de siderurgia. O setor de automóveis, por exemplo, tendo no mercado interno o principal fator, deve se recuperar de forma rápida.
DINHEIRO – Quando isso começará a acontecer?
VALIM – O que tem se visto é que houve uma redução importante da concessão de crédito entre outubro e novembro. Porém, já houve um crescimento em dezembro. Entendemos que deve voltar a crescer gradativamente neste início de ano. No entanto, uma coisa importante que precisamos destacar é que o volume total de crédito no Brasil não declinou, apenas o volume de novas concessões declinou.
DINHEIRO – Uma ideia defendida pelo mercado para justificar que o País está passando bem por essa crise é que o volume de crédito ainda é muito pequeno. Concorda?
VALIM – Essa é uma tese que também advogamos. Achamos que o volume de crédito no Brasil, para a maioria das modalidades, ainda é muito baixo. E tem um item em particular que no Brasil é muito pequeno, que é o financiamento imobiliário, enquanto em muitos outros países é a principal fonte de geração de crédito. Isso mostra que existe um espaço gigantesco para crescer. O mesmo acontece na linha do automóvel, que representa 3% do total do PIB. Nos Estados Unidos representa 95%, no Chile 6%. Ou seja, mesmo em automóvel, tem muito espaço para crescer. O conceito de compra à vista em automóvel nas sociedades onde o crédito é mais disponível basicamente não existe.
DINHEIRO – E nas outras linhas de financiamento?
VALIM – Uma linha que talvez esteja chegando perto da saturação é o crédito direto ao consumidor, o CDC. Essa modalidade vai para o consumo, que de certa forma complementa em muito a economia informal. Isso tem disfarçado um capital de giro na economia informal. Então, também há muito espaço para crescer no Brasil. Mas o crédito imobiliário vence. Aqui, representa 1% do PIB. Nos Estados Unidos está entre 80% e 90%.
DINHEIRO – O CDC chegou ao limite?
VALIM – Não, também pode crescer. Digo no sentido de que nosso CDC está mais perto do que se encontra no resto do mundo. Cerca de 9% do nosso PIB é crédito direto ao consumidor.
DINHEIRO – Mas não foi dessa facilidade de obter crédito no mundo que surgiu a crise, e não é pela mesma razão que o Brasil está hoje em posição menos desconfortável?
VALIM – Veja, no crédito imobiliário as garantias são sólidas. Não existe linha de financiamento mais segura porque o imóvel não sai de lá. O que aconteceu nos Estados Unidos é que foram concedidos financiamentos a pessoas que estavam em condição, como o nome já diz, “subprime”. Sabia- se de antemão que essas pessoas teriam dificuldades para honrar esses financiamentos. Um autêntico alto risco. Mas o problema não foi só esse. O prejuízo com essa linha foi de US$ 1 trilhão a US$ 3 trilhões, enquanto o crédito imobiliário americano chega a US$ 11 trilhões.
DINHEIRO – Qual foi o problema?
VALIM – O problema foi a alavancagem que ocorreu em cima desses títulos de risco duvidoso. Quando se multiplicou isso, fez com que os ativos com deficiências de garantias contaminassem todo o sistema bancário. Isso gerou a crise, corroeu as economias e derrubou o sistema bancário mundial. Não dá para se confundir isso, usar como pretexto para limitar o crédito. No Brasil, não se empresta nem para cliente prime sem uma avaliação criteriosa. Estamos longe desse cenário.
DINHEIRO – Se o Brasil já possui um modelo rígido de avaliação de risco, para que serve o cadastro positivo? Não é um exagero?
VALIM – O que temos desenvolvido no Brasil é um sistema de concessão de crédito com a menor assimetria de informações. Quem concede, tem conhecimento de duas informações importantes. Primeiro, a capacidade de pagamento e, segundo, a disposição para pagamento. O cliente pode ter dinheiro, mas não querer pagar. Quando o concedente avalia o risco, ele estima a capacidade de pagamento baseado no contracheque. Mas ele não tem quase nenhuma capacidade de avaliar a disposição de pagamento, o desejo de pagar. Essa assimetria é mitigada à medida que se estabelecem informações de crédito muito mais robustas.
DINHEIRO – Como o trabalhador tira proveito desse sistema, que, à primeira vista, discrimina o consumidor?
VALIM – Aqueles que são bons pagadores passam a se diferenciar dos que não são bons pagadores. Hoje, a gente privilegia o mal pagador porque o custo da inadimplência é socializado. No Brasil, equivocadamente, socializamos a inadimplência porque esse custo é igualmente repartido a todos, em várias modalidade de crédito. Ou seja, o bom pagador paga mais juros. Banca um custo desproporcional ao seu risco. No Brasil, o justo paga pelo pecador. Com o novo sistema, passaremos a ter um modelo em que o risco de crédito é apropriado, não só a renda, à sua disposição de pagamento. Isso faz com que uma pessoa de baixa renda, por exemplo, tenha uma excelente ficha de crédito, com juros bem abaixo da média do mercado.
DINHEIRO – A inadimplência no Brasil justifica essa medida?
VALIM – Sem dúvida. Segundo números do Banco Central, a média de inadimplência no Brasil nos últimos cinco anos variou entre 6,5% e 8%. Vamos calcular, então, uns 7% de média. Isso é três vezes, quatro vezes maior do que nas economias onde o crédito é muito mais amplamente distribuído. Nos Estados Unidos, que hoje vivem uma crise de crédito, há inadimplência de pessoa física menor de 2%.
DINHEIRO – Qual a razão da inadimplência alta no País? Falta critério na concessão ou o brasileiro é caloteiro?
VALIM – Essencialmente por falta de informação. Por conta disso, os juros no Brasil são muito altos, o que incentiva a inadimplência. Quando constatamos que 37,3% do spread se refere à inadimplência, acaba sendo um círculo vicioso. Os juros devem ser altos porque a inadimplência está socializada. Os juros altos refletem na inadimplência, e isso se perpetua. Acaba ocorrendo um modelo de seleção adversa. Ou seja, quem tem o pior perfil para o crédito acaba se envolvendo com o crédito.
DINHEIRO – O spread tem sido a bola da vez das críticas.
VALIM – Eu vi recentemente um estudo que mostra que a falta de pagamento é o item que mais encarece os custos dos bancos. Não existe nada mais caro. O spread é alto porque a inadimplência, popularmente chamado de calote, também é.
DINHEIRO – Dá para acreditar que os bancos vão ajustar os juros?
VALIM – O banco vive de spread, que é composto por vários itens, entre eles inadimplência, impostos, custos operacionais e administrativos, e, por fim, margem de lucro. Pode-se mexer em todas as outras variáveis, e não mexer nas margens. A rentabilidade do banco não fica prejudicada. E com isso se consegue diminuir a taxa de juros. Dá para acreditar, sim.
DINHEIRO – Como o Brasil está hoje?
VALIM – Pelos números que tenho acompanhado, no consumo interno não houve impacto severo. Acho que há um conceito de pessimismo exagerado. Existe um cenário de crise muito intenso, mas é muito maior na linha da possibilidade do que da realidade.
DINHEIRO – Então é uma crise psicológica?
VALIM – Não. A incerteza sobre a continuidade da capacidade do meu negócio me gera necessidade de tomar ações. Só o fato de existir uma incerteza é o suficiente para que eu tome ações em relação a isso. Deixar de consumir, por exemplo, no caso de pessoa física, deixar de investir, deixar de contratar e, eventualmente, cortar custos, no caso das empresas. Com isso, a crise não é psicológica. É um ato racional de alguém que está enfrentando uma incerteza.