Na véspera do último dia de sua vida, o sindicalista Paulo Gonçalves prendeu-se ao hábito. Senhor dos segredos à volta do bilionário sistema de transporte coletivo da maior cidade brasileira, ele tirou o telefone do gancho, fechou as portas de seu sobradinho de cômodos na Zona Sul de São Paulo e juntou a família para escapar do caldeirão infernal de suas atividades na terra. Rezou. Gastou todo aquele sábado 18 de outubro orando como um pacato cordeiro dos adventistas do sétimo dia. Cinco tiros à queima-roupa disparados por um matador profissional no domingo, quando Gonçalves outra vez se corporificava como chefão de um milionário, conturbado e violento sindicato de inimigos, liquidaram com sua carreira ? e revolveram, à medida em que o corpo tombava diante de seis petrificadas testemunhas, a rede de pressão, interesses financeiros e corrupção que amarra um negócio no qual troca de mãos, todo santo dia, perto de R$ 1 bilhão em dinheiro. A partir do valor de R$ 1,70 por passagem de ida, 15 mil ônibus, vans e microônibus cortam a cidade carregando cerca de 6 milhões de pessoas. Um circuito aberto diariamente a viagens pelo submundo do crime.

Ex-cobrador, ex-motorista e, nos últimos anos, diretor todo poderoso do tão influente quanto obscuro Sindicato das Cooperativas de Ônibus do Sistema Bairro a Bairro de São Paulo, aos 42 anos Paulo Gonçalves comandava naquele domingo uma agitada reunião. Tratava-se de decidir a compra, numa só tacada, de 600 ônibus zero quilômetro para a renovação parcial, em dezembro, da frota de 1,3 mil veículos pertencentes às 23 cooperativas sindicalizadas. Ao custo de R$ 120 mil cada um, havia R$ 72 milhões em jogo. Vendedores das concessionárias Sambaíba e Citymax estavam presentes, e mesmo dois ônibus novos haviam sido colocados diante da fachada do prédio do sindicato para vistoria dos interessados. A compra despertava tensão. Diante de punhos cerrados e dedos em riste, Gonçalves fora acusado por alguns sócios de impor um negócio inoportuno. ?Nosso interesse está sempre abaixo do seu, Paulo?, ouviu-se de um dos presentes ao encontro dominical. ?Tem de renovar, não tem papo?, retrucava, no mesmo tom, o acusado. As reclamações partiam de operadores de linhas deficitárias, com média de 250 passageiros/dia e quase 15 assaltos a cada mês. Aos berros, uma praxe nas assembléias daquela entidade, diziam que o sindicalista apenas lhes repassava o ônus de uma decisão tomada na Secretaria Municipal de Transportes. Ali estabeleceu-se a renovação da frota de ônibus com idade média de 9 anos, a tempo de mudar a feição do transporte coletivo até a eleição municipal de outubro de 2004. Neste esforço, a Prefeitura conseguiu na quarta 29, no Senado, em Brasília, a autorização para tomar emprestados R$ 493 milhões no BNDES para a construção de novos terminais nas principais vias da cidade.

Religioso de quatro costados, o sindicalista não era santo. Pelego, sim. Fundou a entidade e colocou-se em posição central para amortecer conflitos. Diretor conselheiro, era o presidente de fato, ocupava a maior sala, contava com a melhor secretária, tinha segurança a tiracolo e salário R$ 3 mil mensais. Com uma mão, arrancou da Prefeitura o aumento, durante a série de licitações deste ano, de 940 para 1,3 mil ônibus bairro a bairro. Na jogada seguinte, operava pelos interesses oficiais no realinhamento de cooperativas e renovação de frota. Neste trajeto, trombou. Duas semanas após sua execução a sangue frio, não houve nenhuma chamada formal ao disque denúncia, cujo número 0800-156315 está apregoado em milhares de coletivos. No sindicato, ninguém abre a boca. Dois buracos de bala abaixo do balcão de entrada parecem ser as únicas lembranças do episódio. A omertá da máfia siciliana baixou nas ruelas do Cambuci, bairro-sede do sindicato.

Os donos de ônibus bairro a bairro de hoje são os transportadores clandestinos de ontem. Desprenderam-se da ilegalidade ao longo dos últimos dez anos em razão de mudanças nas regras do transporte coletivo da maior cidade do País. Da concessão de alvarás para a operação de linhas novas, sistema empregado na gestão do ex-prefeito Paulo Maluf, à atual modalidade de licitações da prefeita Marta Suplicy, Gonçalves era a voz mais poderosa em todas as fases que podem produzir riqueza instantânea ou bancarrota definitiva. No passado, dizem os familiarizados com o sistema, um alvará custava até R$ 150 mil em propinas. Hoje, as licitações ajudaram a moralizar a farra, mas convive-se com distorções. Compostas pelos antigos clandestinos, as cooperativas do bairro a bairro reúnem associados que detêm, sozinhos, de 10 até 60 ônibus. Gonçalves tinha cerca de 15. O acúmulo é flagrantemente ilegal. As normas dizem que um cooperativado só pode ter um ônibus, mas contratos de gaveta asseguram o florescimento do negócio.

 Daniel Wainsten
 O SECRETÁRIO TATO
E MARTA:
?Quem não
rezar a missa está fora?

Cavaleiros de Jedi. Nas melhores linhas bairro a bairro, um ônibus que carrega 600 passageiros por dia proporciona a seu dono um lucro líquido mensal de R$ 4 mil. Assim, quem tem vinte ônibus embolsa R$ 80 mil a cada mês. Neste mercado, motoristas e cobradores ganham salários de cerca de R$ 1,8 mil, até três vezes maior do que nas empresas tradicionais, ligadas ao sindicato Urbanuss. Os associados desta entidade, gente estabe-
lecida como os chamados Cavaleiros de Jedi ? Paulo Ruas, Roberto Belarmino e Sérgio Pavani, triunvirato de maiores operadores de ônibus da capital ? detêm hoje em dia mais de 10 mil ônibus e movimentam quase R$ 1 bilhão mensais em passagens/dia. O sistema se completa com os ?perueiros?, contingente de 3 mil vans e microônibus controlados num estamento abaixo. ?Quem manda ali é o PCC?, diz um conhecedor das engrenagens dessa máquina, referindo-se à maior organização criminal de São Paulo, o temido Primeiro Comando da Capital.

Administrar esta malha de interesses já derrubou um secretário municipal de Transportes, o engenheiro Carlos Zaratini. Considerado sem pulso para administrar o jogo pesado, foi trocado por Marta pelo ex-deputado Gilmar Tato. E aqui chega-se a uma importante figura
do mosaico. Formado na velha e boa escola petista de quadros saídos de movimentos comunitários, Tato é o tipo sabe tudo, digamos, na lida com a turba. ?Ou vocês rezam conforme a minha missa, ou
saem do sistema?, disse ele numa conversa com sócios pesos
pesados do Urbanuss. No primeiro trimestre deste ano, numa peculiar demonstração de seu estilo, Tato embalou uma reunião entre representantes das três modalidades envolvidas no transporte coletivo com uma generosa oferta de uísque no auditório de sua secretaria. Garrafas enfileiradas de Johnny Walker Red e Black Label esperavam os convidados que chegavam dispostos à briga. O encontro começou à uma da tarde entre ameaças versus desafios. Discutia-se a concessão emergencial de linhas, enquanto as licitações definitivas não terminavam. Do uísque serviram-se todos. Tato fumou charutos. O álcool agiu. A última conversa acabou por volta das cinco da manhã. O secretário foi o grande vitorioso ao distribuir concessões emergenciais sem mortos nem feridos ? hoje exibe licitações definitivas, válidas por 10 anos, para a grande maioria das linhas.

O delegado Francisco Ielo, da divisão de homicídios da polícia paulista, vai interrogar os presidentes das 23 cooperativas ligadas ao sindicato que Gonçalves chefiava. Suspeita que o mandante do crime está próximo. Ielo crê que, de celular em punho, um dos adversários da proposta discutida no domingo 19 para a compra de ônibus novos avisou ao matador postado na rua que Gonçalves estava de saída para almoçar. ?Foi crime de mando e o contratante estava na sala diante da vítima?, diz o delegado. ?Pode demorar um ano, mas vou descobrir quem foi.?