Se várias vezes as escolhas do Comitê do Nobel costumam ser classificadas como desconectadas de seu tempo, o anúncio dos laureados com o prêmio de Física deste ano vai em direção oposta, jogando luz em um debate contemporâneo: os potenciais e riscos da inteligência artificial para a humanidade. Essas pesquisas laureadas ainda abriram caminho para o desenvolvimento de tecnologias que usamos no cotidiano, como diagnóstico médico por exames de imagem; detecção de fraudes bancárias; reconhecimento facial; e seleção de músicas sugeridas no streaming.

O prêmio foi concedido a John Hopfield, de 91 anos, da Universidade de Princeton (EUA), e Geoffrey Hinton, de 76 anos, da Universidade de Toronto (Canadá), por seu trabalho pioneiro no campo das redes neurais artificiais e do machine learning (o aprendizado de máquina).

Em vez de programar o computador para seguir uma lista de instruções predeterminadas, o aprendizado de máquina permite, como o nome sugere, que as máquinas “aprendam” por conta própria. Na verdade, elas analisam grandes quantidades de dados, identificando padrões, e, a partir disso, conseguem tomar decisões diante de situações novas. Isso só é possível, claro, porque os computadores atuais são capazes de processar quantidades cada vez maiores de informação.

“As redes neurais artificiais (que deram origem ao aprendizado de máquina) são usadas em pesquisa avançada na própria Física, em áreas diversas, como novos materiais e astrofísica”, afirmou Ellen Moons, chair do comitê do Nobel de Física. “Elas também já se tornaram parte da nossa vida cotidiana, por exemplo no processo de tradução.”

“O prêmio Nobel de Física para aprendizado de máquina passa uma forte mensagem para a comunidade científica, visto que a maneira que fazemos Física e Ciência em geral está mudando”, afirmou James de Almeida, professor e pesquisador da Ilum Escola de Ciência, no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais. “As novas descobertas estão cada vez mais direcionadas para aprendizado de máquina, onde vastas quantidades de informação podem ser analisadas e padrões, encontrados. É a ferramenta para o futuro.”

A polêmica

Em maio do ano passado, Hinton pediu demissão de um alto cargo no Google e, em entrevista ao jornal americano The New York Times, denunciou o perigo das novas tecnologias em desenvolvimento, que ele mesmo ajudou a criar. Em 2018, Hinton e outros dois colaboradores de longa data receberam o prêmio Turing, frequentemente chamado de “Nobel da computação”, por seu trabalho em redes neurais. O trabalho levou à criação de tecnologias cada vez mais poderosas, incluindo ChatGPT e o Google Bard

Em entrevista na manhã desta terça-feira 8, concedida logo após o anúncio do prêmio, Hinton afirmou que a transformação imposta pela IA nos próximos anos será comparável à da Revolução Industrial, no século 19. “Mas, em vez de superar as pessoas na força física, vai superar as pessoas na força intelectual”, afirmou.

“Não temos experiência de conviver com coisas mais inteligentes do que nós”, disse Hinton na entrevista. “E vai ser maravilhoso em muitos aspectos, vai nos dar um atendimento médico melhor; tornar quase todos os campos mais eficientes. Com um assistente de IA, as pessoas conseguirão executar o mesmo volume de trabalho em muito menos tempo”, acrescentou. “Isso vai trazer aumentos brutais na produtividade. Mas também temos de nos preocupar com uma série de possíveis consequências ruins, particularmente com a ameaça de que essas coisas saiam do controle.”

Em 1972, ainda como estudante de pós-graduação na Universidade de Edimburgo, no Reino Unido, Hinton começou a trabalhar com redes neuronais – sistemas matemáticos que simulam o funcionamento do cérebro e são capazes de aprender a partir da análise de dados.

Na década de 1980, Hinton dava aulas de ciência da computação na Universidade Carngie Mellon, na Pennsylvania, nos EUA, mas deixou a instituição e foi para o Canadá. Na época, a maioria das pesquisas em IA nos EUA era financiada pelo Departamento de Defesa, e Hinton era contra o uso da tecnologia no campo de batalha. Em 2012, Hinton e dois de seus alunos na Universidade de Toronto, Ilya Sutskever e Alex Krishevsky, desenvolveram uma rede neural capaz de analisar milhares de fotos e aprender a identificar determinados objetos nas imagens – trabalho que lhe valeu o Nobel anunciado ontem.

Memória

Já Hopfeld, da Universidade Princeton (EUA), criou um tipo de memória associativa que pode armazenar e reconstruir imagens e outros tipos de padrões em dados. Essa tecnologia é capaz de identificar a imagem mais similar à original, ainda que esteja um pouco diferente ou distorcida, por exemplo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.