Com apenas três livros que não somam 400 páginas, escritor conquistou espaço proeminente na literatura brasileira. Além do aniversário de 90 anos do autor, 2025 marca o cinquentenário da publicação de “Lavoura Arcaica”.Raduan Nassar, que completa 90 nesta quinta-feira (27/11), conquistou espaço proeminente na literatura brasileira do século 20 com apenas três livros: os romances Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978), além da coletânea de contos Menina a Caminho (1997).

Sétimo filho de um casal de imigrantes libaneses, Raduan nasceu em 1935, na cidade de Pindorama, no norte paulista. Instalado com a família na capital do estado desde a adolescência, matriculou-se nas faculdades de Direito e Letras Clássicas da USP, mas graduou-se apenas em um terceiro curso na mesma universidade, o de Filosofia, em 1963. Com os irmãos, fundou o Jornal do Bairro, em 1967, semanário dedicado à análise política nacional e internacional, de firme oposição à ditadura militar brasileira.

Após deixar a chefia de redação do jornal, em 1973, tomou definitivamente o caminho da literatura. Um ano depois, nascia Lavoura arcaica, seu ímpar livro de estreia – escrito freneticamente em jornadas diárias de até 12 horas de trabalho, durante 8 meses ininterruptos. Parcialmente custeado pelo autor e publicado em dezembro de 1975 pela José Olympio Editora, o livro foi aclamado de imediato pela crítica como obra-prima.

A trama de Lavoura arcaica é relativamente simples, uma recuperação da parábola bíblica do filho pródigo, mas ambientada no seio de uma família de imigrantes libaneses vivendo no meio rural brasileiro de meados do século 20. André, o filho pródigo da vez, retorna ao convívio do clã que havia abandonado para enfrentar o autoritarismo do pai e os sentimentos incestuosos nutridos pela irmã, cumprindo, afinal, o destino trágico que lhe era reservado. Transformado em filme em 2001, estrelado por Selton Mello e Raul Cortez (1932-2006), a boa recepção da adaptação reacendeu o interesse pela obra original.

O autor lançaria ainda uma novela (Um Copo de Cólera, em 1978) e um volume de contos, publicados até então de maneira esparsa (Menina a caminho, em 1997). Essa coletânea foi o último movimento editorial de Raduan desde a decisão de não mais escrever, anunciada em 1984, e que provocou abalos no cenário literário. Abandonada a carreira literária, passou a dedicar-se à lavoura em uma fazenda no interior de São Paulo.

O estilo lírico, caudaloso e imagético de sua escrita, marcada pela oralidade de uma quase prosa poética, coloca Raduan Nassar entre os mais inventivos e influentes autores brasileiros contemporâneos. A herança libanesa, o peso cultural das religiões e da família, e a crítica aos mourões do patriarcado são temas recorrentes de sua breve, porém densa bibliografia.

No mês em que Raduan Nassar completa 90 anos, a DW destaca 9 curiosidades sobre o escritor.

1) O último livro foi também o primeiro

De forma semelhante a Um copo de cólera, produzido por volta de 1970, mas tornado público apenas 8 anos depois, a novela Menina a caminho, que empresta o título ao volume de contos lançado em 1997, foi escrita no início dos anos 1960, bem antes de Lavoura arcaica, o primeiro a ser publicado. Face a este descompasso entre escrita e publicação, a obra nassariana pode ser comparada simbolicamente a Ouroboros, a figura lendária da serpente que forma um círculo ao engolir a própria cauda. Presente em várias cosmogonias, sobrepõe fim e princípio para representar a eternidade e seu recomeçar infinito.

2) Menos de 400 páginas que marcaram a literatura

Raduan é reconhecidamente um dos mais instigantes escritores brasileiros. Segundo os especialistas, sua bibliografia é comparável em importância e inovação à de autores como Clarice Lispector (1920-1977) e Guimarães Rosa (1908-1967), apesar de ter publicado pouco ao longo da vida. Como comprova a edição em volume único de sua obra completa, a totalidade de sua produção literária não chega a 400 páginas.

3) Ligações com a Alemanha

Após se licenciar em filosofia, em 1963, Raduan ruma para Lüneburg, na então Alemanha Ocidental, com o intuito de estudar alemão e, uma década depois, já no Brasil, se envolve com Heidrun Brückner, professora do Departamento de Línguas Germânicas da USP, que se tornaria sua companheira por vários anos. O primeiro livro, Lavoura Arcaica, traduzido para diversas línguas e lançado em inúmeros países, ganhou também uma edição alemã, que chega agora à maioridade: são 21 anos desde o lançamento. Rebatizado pelo tradutor Berthold Zilly, Lavoura Arcaica se tornou em alemão O Pão do Patriarca (Das Brot des Patriarchen).

4) Jornalismo e coelhos

Antes de abraçar a profissão de jornalista no Jornal do Bairro, e logo após retornar da Alemanha, em 1965, Raduan dedicou-se à criação de coelhos, chegando a ocupar a presidência da associação brasileira de criadores do animal. Largou os coelhos em 1967, da mesma forma que desistiria do jornalismo, da literatura e da agricultura. Sua biografia é pródiga nesse tipo de movimento, construída à custa de abandonos e recomeços.

5) A Fazenda Lagoa do Sino

Em 2007, Raduan decidiu doar a Lagoa do Sino, fazenda de cerca de 460 hectares localizada em Buri, município do sudoeste paulista, que comprara um ano após a decisão de aposentar-se da literatura. Inicialmente, o alvo da doação seria a USP, universidade na qual se formara, porém, após três anos de negociação infrutífera, a propriedade acabou nas mãos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Além do compromisso com reformas e benfeitorias, a principal exigência feita pelo escritor dizia respeito ao uso da fazenda, que deveria se tornar um campus universitário para abrigar cursos de graduação da área das ciências agrárias. Devido à aversão quase patológica à vaidade, Raduan determinou que seu gesto não se tornasse público e, perguntado sobre o porquê da doação, declarou: “apenas devolvo para a comunidade o que dela recebi”.

6) Lavoura premiada

Embora inicialmente Lavoura arcaica não tenha sido sucesso de mercado, o livro garantiu a Raduan em 1976 o prêmio Coelho Neto, de romance, da Academia Brasileira de Letras, mais o Jabuti (premiação criada em 1959 pela Câmara Brasileira de Livros) de autor revelação, e menção honrosa da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Quando os governos brasileiro e português o agraciaram com o Prêmio Camões pelo conjunto da obra, em 2016, declarou com bom humor: “eu não entendi esse prêmio. Minha obra é um livro e meio.”

7) Ativismo político

Radicado em Lüneburg, Raduan recebia notícias sobre o estado de exceção em que mergulhara o Brasil no rastro do golpe militar de 1964. Em protesto contra a ditadura, recusou o cargo de assistente na cadeira de Psicologia Educacional, oferecido pela USP. Após a decisão de abandonar a escrita, sua veia ativista de intelectual de esquerda passou a pautar com mais força o conteúdo dos cada vez mais raros pronunciamentos públicos. Amigo de longa data do presidente Lula, esteve a seu lado no primeiro discurso após a condenação pela Lava Jato, além de visitá-lo no cárcere de Curitiba, em mais de uma ocasião. Na solenidade de entrega do Prêmio Camões, usou o discurso de agradecimento para denunciar o impeachment de Dilma Rousseff, qualificando a manobra como golpe de Estado.

8) Adaptações para o cinema

Ao contrário do sem número de autores que se decepcionam com as adaptações audiovisuais geradas a partir de seu trabalho, Raduan teve sorte nesse departamento. Os filmes baseados em suas narrativas, Um Copo de Cólera (dirigido por Aluizio Abranches, em 1999) e Lavoura Arcaica (de Luiz Fernando Carvalho, em 2001) não fazem feio frente à matriz de que se originam. Carvalho pretende repetir a parceria com a produção de outro filme, As três batalhas, em desenvolvimento há algumas décadas. De forma curiosa, mas não incoerente em se tratando de Raduan, o filme seria baseado em um conto que ele nunca chegou a escrever.

9) Reclusão

Cada vez mais recluso e com a saúde enfraquecida nos últimos anos, Raduan tem se sujeitado cada vez menos a aparições públicas e entrevistas, amplificando o silêncio advindo do ponto final colocado na carreira literária. O motivo de tal decisão nunca foi declinado com exatidão. Segundo o escritor e amigo Milton Hatoum (autor consagrado de Relato de um Certo Oriente e Dois Irmãos, entre outros), Raduan lhe disse ter parado de escrever porque “a fonte secou” – embora a afirmação pareça mais uma desculpa do que uma explicação. Ao encarnar essa figura do escritor que não escreve, Raduan se torna ele mesmo o epílogo de sua própria invenção literária; não mais autor e nem mesmo personagem, apenas enigma.