Aprovado pelo Senado nesta semana, Wadih Damous assume a presidência da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) prometendo mudar o tom da regulação no setor. Nos últimos dias como secretário nacional do Consumidor, Damous disse apostar em um “choque de transparência” como marca de sua gestão, defendendo acesso público e linguagem clara nas informações das operadoras.
Amigo de Lula, de quem foi advogado, disse não ver problema em não ser do setor de saúde, e prometeu zelar pela saúde das empresas, mas disse haver um DNA de cuidado com o consumidor na origem da agência.
Damous disse haver problemas nos chamados “planos populares”, que considera insustentáveis e potencialmente prejudiciais ao SUS. Disse ser refratário à revisão técnica de reajustes — aceitando apenas em casos extremos e com condicionantes, como a obrigatoriedade de ofertar planos individuais. Reconheceu ainda os abusos nos cancelamentos de contratos coletivos, que hoje atingem famílias com idosos e pessoas autistas, e sugeriu que o Congresso deveria assumir sua responsabilidade regulatória.
+ Planos de saúde terão de oferecer implante contraceptivo hormonal
+ Paciente do SUS pode ser atendido por planos de saúde a partir de hoje
Leia abaixo a entrevista com Wadih Damous, novo presidente da ANS
Você chega à presidência da ANS sem ter atuado diretamente no setor de saúde. Como pretende compensar essa ausência de experiência específica para conduzir uma agência com tantos desafios regulatórios?
Um senador me fez essa tua pergunta, quando, numa das visitas que eu fiz, antes da sabatina. Eu ponderei com ele: se pegar o histórico de todos os presidentes até hoje da ANS, muitos não eram médicos, não eram da área de saúde. Em certa medida, o fato de eu ser do direito, de ser um quadro do direito, talvez tenha mais a ver do que, propriamente, ser um médico, ser alguém formado em uma faculdade de medicina. Por quê? Isso tem a ver com direito regulatório, agência reguladora. Tem a ver com interpretação. Tem a ver com interpretação de normas. Tem a ver com elaborar normas. Quem é do direito tem uma facilidade maior para tratar dessas dimensões. A ANS elabora normas, tem que interpretar e deliberar sobre normas. Quem tem formação jurídica está mais apto para fazer isso. Óbvio que, em certa medida, alguém da área médica, por outra dimensão, também pode desenvolver ali um trabalho importante, como já foi o caso na ANS ao longo da sua história. Não vejo problema nenhum no fato de não ser da área da saúde.
A ANS tem discutido mudanças profundas nas regras de reajuste, coparticipação e sinistralidade, que seriam as maiores dos últimos 20 anos. Como pretende conduzir esse debate sem comprometer a previsibilidade para o consumidor e para as operadoras?
A ANS tem uma história sui generis, que a distingue em relação a outras agências. Nada precedeu a ANS. Por exemplo, a ANP, a Agência Nacional de Petróleo, era uma espécie de costela da Petrobras. A Aneel, da Eletrobras. Tinha alguma coisa que deu origem, né? Que deu origem. Havia já marcos normativos.
A ANS, não. A ANS foi marco zero. Ela construiu um acervo normativo muito importante. Porque antes da regulação da ANS e da Lei dos Planos de Saúde, era selvageria. Era selvageria. Mas a ANS não regula aquilo que o legislador não quis enfrentar. Um exemplo disso são os planos coletivos. Os planos individuais, que já não são mais ofertados no mercado, são regulados: a operadora não pode rescindi-los unilateralmente, exceto em casos de fraude ou inadimplência, e os reajustes são definidos pela própria ANS. Já em relação aos planos coletivos, o legislador se conteve. A interpretação é simples: se a lei não proíbe, as operadoras podem fazer. O resultado é que muitos consumidores enfrentam reajustes violentos, muito acima da inflação. Quando questionadas, as operadoras argumentam que a inflação médica não é a mesma da inflação geral, o que abre um outro problema.
Recentemente, a agência autorizou reajustes excepcionais acima do teto para alguns planos individuais. Considera necessário rever esses critérios? Como equilibrar sustentabilidade financeira das operadoras e proteção de consumidores mais vulneráveis, como idosos e pessoas com deficiência?
Existe uma demanda de algumas operadoras que enfrentam dificuldades com suas carteiras e pedem a chamada revisão técnica, ou seja, a possibilidade de obter um reajuste maior do que aquele fixado pela ANS para o conjunto do setor. Esse tema está em debate dentro da agência. Eu vou entrar nesse debate agora, mas, a princípio, sou refratário a esse tipo de pleito — a não ser que fique comprovado que a negativa possa levar à quebra da operadora ou à inviabilização da oferta de serviços.
Mesmo assim, haveria de se estabelecer condicionantes. Um exemplo seria: “Tudo bem, mas, em contrapartida, a operadora terá que comercializar planos individuais por três anos”. Esse tipo de condicionante pode ser interessante.
De fora, é possível apenas acompanhar a existência dessas propostas. Mas, lá dentro, como diretor, estarei obrigado a deliberar e a ouvir meus pares. E é importante lembrar: no Brasil, o cargo de presidente costuma ser entendido como alguém que manda em tudo. Em uma agência reguladora, não é assim. O meu voto tem o mesmo peso dos demais diretores; posso ser vencido em qualquer decisão. O presidente não decide sozinho, as deliberações são sempre colegiadas.
Vejo nisso um desafio interessante, porque obriga a persuadir os interlocutores e construir consensos. Esse formato cria um ambiente profícuo de debate, democrático e coletivo, em que as decisões ganham legitimidade pelo processo.
Vocêjá afirmou que os cancelamentos unilaterais de planos coletivos devem ser tratados pelo Congresso. Ainda assim, a ANS tem um papel regulatório nesse tema. Qual será sua postura diante de operadoras que continuam cancelando contratos em massa?
Essa questão foi tratada na sabatina, como você deve ter acompanhado. O que eu disse ali, e repito agora, é que o legislador não quis regular os planos coletivos. Se ele regulou os planos individuais, mas não fez o mesmo com os coletivos, ou deixou isso pela metade, foi porque deliberadamente não quis. A interpretação, naquele momento, foi a de que os planos coletivos deveriam ficar à mercê da livre negociação entre as partes.
Agora, por que os planos individuais não são mais ofertados? Porque são regulados. O consumidor, ao buscar contratar um plano individual ou familiar, encontrou barreiras. Em vez disso, passou-se a criar pessoas jurídicas apenas para viabilizar a contratação. Esse desequilíbrio gerou uma distorção. Por isso, entidades de defesa do consumidor corretamente passaram a caracterizar muitos desses contratos como “falsos coletivos”.
O que são, então, os coletivos? Em alguns casos, grandes entidades, como a OAB — que reúne milhares de advogados — firmam convênios de adesão. Acontece que a OAB, apesar de ser uma entidade de grande porte, não tem capacidade técnica ou poder de barganha para negociar de forma equilibrada com as operadoras, já que sua finalidade não é oferecer planos de saúde. Assim, quando a operadora decide aplicar um reajuste, a entidade pouco pode fazer para reagir.
Esse é o resultado da escolha do legislador: quem detém poder econômico dita as regras. É a operadora quem impõe o reajuste e quem cancela contratos, simplesmente porque pode.
E por que a ANS não interfere? Porque, se fizesse isso, haveria uma enxurrada de judicializações. As operadoras recorreriam imediatamente ao Judiciário, alegando que a agência estaria invadindo uma competência do legislador. Como a decisão de não regular os coletivos partiu do Congresso, a ANS não pode, por meio de normas infralegais ou regulamentares, proibir algo que a lei não proibiu.
E é um argumento válido do ponto de vista jurídico?
Tem argumento para os dois lados. Mas, pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, prevalece a interpretação de que a ANS esbarraria em um impedimento jurídico. Por isso eu disse que essa questão deveria ser enfrentada pelo Congresso. Há diversos projetos de lei nesse sentido: alguns proibindo simplesmente a rescisão unilateral, outros prevendo exceções, como nos casos de autistas ou de pessoas idosas.
O Congresso tem diante de si uma gama de propostas que precisam ser discutidas. Porque, do contrário, a situação se agrava. Eu, como beneficiário de plano de saúde, considero absolutamente legítima a reclamação dos consumidores: ninguém aceita reajustes abusivos ou cancelamentos baseados em seleção de risco. Cancelar porque a carteira envelheceu ou porque há autistas, por exemplo, é ilegal. Mas isso acontece.
Se a ANS tomasse a decisão sozinha de proibir tais práticas, haveria instabilidade e insegurança jurídica. Tribunais diferentes poderiam decidir de forma divergente até o tema chegar ao STJ. Por isso, é mais prudente que o Congresso legisle sobre o assunto. Uma lei tem mais robustez do que qualquer norma administrativa ou regulamentar da ANS.
A criação de planos de baixa cobertura, ou “planos populares”, recebeu fortes críticas. Considera que esse modelo pode ter viabilidade no Brasil? Quais condições mínimas de cobertura o senhor acredita que deveriam ser inegociáveis?
Essa discussão coincidiu justamente com o período em que minha sabatina estava marcada, mas não ocorria. Em dezembro, a ANS lançou o chamado sandbox regulatório, para testar esse tipo de plano. A iniciativa, porém, não contou com o apoio nem do corpo técnico da agência, altamente qualificado, nem de entidades ligadas ao consumidor. Pelo contrário: Ministério Público, Defensorias Públicas e organizações da sociedade criticaram, repudiaram e judicializaram a proposta. A ANS acabou recuando e transferiu o tema para uma Câmara Técnica.
Os argumentos a favor dos planos populares são: preço mais baixo, possibilidade de ampliar a oferta de planos individuais e desafogar o SUS em consultas e exames. O contra-argumento é evidente: se uma pessoa faz uma consulta, descobre uma doença grave como um câncer, não terá cobertura para internação ou tratamento e voltará para o SUS, aumentando a fila da alta complexidade.
Ou seja, esses planos esvaziam a fila da atenção primária, mas sobrecarregam a de casos graves. Por isso, vejo muita dificuldade em aprovar algo com esse formato. A cobertura mínima prevista é tão restrita que sequer incluiria urgência e emergência, o que obrigaria o paciente a correr para o SUS em situações críticas. Na prática, os chamados planos populares se revelam impopulares. Ainda assim, o tema está em debate na Câmara Técnica, e eu vou participar dessa discussão.
O Superior Tribunal de Justiça determinou que cabe à ANS regular os cartões de desconto em saúde, usados hoje por mais de 60 milhões de brasileiros. Pretende avançar nessa regulação? Que tipo de salvaguardas para o consumidor poderiam ser adotadas?
Se a decisão judicial transitar em julgado, não restará alternativa à ANS a não ser cumpri-la. Hoje ela ainda está em discussão, mas minha preocupação é com a capacidade operacional da agência. Os cortes orçamentários têm sido severos e há déficit de pessoal. Cumprir uma nova atribuição pode ser difícil para um corpo técnico já sobrecarregado.
Caso a decisão se confirme, a ANS terá de estabelecer uma regulação clara, com salvaguardas para os consumidores. Não conheço em detalhes o funcionamento desses cartões, mas sei que eles têm grande apelo popular por oferecerem consultas e serviços a preços mais acessíveis. A tarefa será definir regras que garantam segurança e transparência aos usuários.
O setor de saúde suplementar passou de prejuízos bilionários em 2022 e 2023 a lucro líquido em 2024. Na sua visão, o que explica essa virada? A ANS deve interferir mais ativamente na transparência das operadoras sobre receitas e despesas?
A ANS precisa, sim, atuar nesse ponto. Defendo o máximo de transparência possível, até porque estamos lidando com saúde, com vida e morte. Não pode haver caixa-preta nem dados confidenciais. Tudo deve ser público e acessível.
Quero ver, por exemplo, como se calcula a inflação dos serviços médicos e quais os métodos utilizados para isso. Pretendo ser um defensor exigente da transparência e convencer meus pares nesse sentido. A ideia é implementar um verdadeiro choque de transparência: informações claras, seguras, acessíveis ao consumidor, sem “mediquês”.
Isso não é novidade: já está no Código de Defesa do Consumidor. Informação clara é uma determinação legal. O consumidor não é advogado nem juiz para ter de interpretar seu contrato. Ao entrar no site de uma operadora, deve ter a certeza de que está diante de informações completas e compreensíveis. Do meu ponto de vista, a transparência deve ser a pedra de toque da regulação da ANS.
Pretende fazer alguma mudança na forma de funcionamento da diretoria da ANS?
Algumas respostas são difíceis de dar sem estar no dia a dia da agência. Mas uma proposta que quero levar aos meus pares é a de que as reuniões sejam presenciais. Por mais que a tecnologia permita encontros à distância, acredito que a eficiência do trabalho e a cultura regulatória da ANS se fortalecem no contato direto.
Quanto aos funcionários, sei que boa parte está em home office. Não pretendo impor nada de forma autoritária. A pandemia transformou o trabalho remoto em regra, mas quero discutir a possibilidade de reduzir o home office, talvez por meio de rodízio, para determinados setores. Tudo em diálogo e sem traumas.
Reconheço que o home office pode trazer ganhos de produtividade, especialmente no formato híbrido. Mas também há relatos de sobrecarga. No trabalho presencial, os limites de horário são mais claros. Em casa, muitas vezes as pessoas acabam exploradas. Quero ouvir o corpo técnico — que é altamente qualificado — e negociar uma forma equilibrada de atuação.
Você vai trabalhar a partir de Brasília ou vai se mudar para o Rio de Janeiro?
Minha intenção é permanecer em Brasília. O centro do poder está aqui, as demandas principais estão aqui e é daqui que se dá a interação com Congresso, Ministério Público e demais atores. A ANS tem uma estrutura em Brasília, mas ela está praticamente vazia. Quero revitalizá-la, transformá-la em um ponto de atendimento ao público e de referência institucional.
Claro, as reuniões de diretoria ocorrem no Rio, a cada três semanas, como determina a lei. Então estarei no Rio sempre que necessário. Mas, estando em Brasília, acredito que fortaleço a eficácia da atuação da agência.
Você vem de uma trajetória política e de defesa do consumidor. Como pretende blindar sua gestão de pressões políticas, de um lado, e econômicas, de outro, para que a ANS atue com autonomia técnica?
O setor é altamente conflituoso, e essa tensão se agravou nos últimos tempos, sobretudo por conta de rescisões unilaterais que atingiram famílias com pessoas autistas. Essa conflitosidade não começou agora, mas de fato se acentuou.
O que posso garantir é que não sou irresponsável. Não estou indo para “quebrar o plano de saúde”. Ao contrário, é determinação legal zelar pelo equilíbrio econômico do setor e pela solvência das operadoras. Isso não significa, porém, virar as costas para os consumidores.
A história da ANS mostra isso: mesmo dirigentes liberais, favoráveis ao mercado, não desviaram a regulação em favor das operadoras. O corpo técnico e a própria agência se moldaram com forte atenção ao consumidor.
Na Secretaria Nacional do Consumidor, meu papel era claro: defender o consumidor. Na ANS, o papel é de regulador, mas não dá para ignorar a vulnerabilidade acentuada de quem depende de um plano de saúde. Estamos falando de vida e saúde.
Por isso, serei firme em buscar o equilíbrio: operadoras robustas, saudáveis, que não corram risco de quebra, mas sem que isso se faça às custas de abusos contra os beneficiários.
Quando o presidente Lula te convidou para perguntar se aceitava ser indicado, o que ele te falou? Qual foi a missão que ele te deu?
O presidente foi direto. Disse: “Eu tive um câncer e tive o melhor tratamento. Não me faltou nada. Por que eu tenho esse direito e os outros não têm?”. A questão é filosófica: buscar igualdade de acesso, mesmo sabendo que talvez nunca se alcance plenamente.
O Brasil é único por ter, ao mesmo tempo, um sistema universal de saúde — o SUS, que é um patrimônio nacional — e um sistema privado robusto. Mas o SUS sofre com subfinanciamento e precisa de reforço.
Inclusive, recebi hoje de uma funcionária do Ministério da Saúde um boneco do Zé Gotinha, que passei a usar como símbolo desse compromisso. É uma forma de marcar que estou, sim, lidando com a saúde.
Recentemente, estrangeiros que precisaram de atendimento no SUS relataram surpresa ao serem atendidos de graça e com qualidade. Isso mostra o valor que temos e precisamos preservar. Claro, o setor privado não é SUS, mas as operadoras também devem ter consciência da responsabilidade de lidar com vidas.