Argentino apaixonado por rúgbi — é torcedor dos Pumas, a seleção do país —, Andrés Malamud vive em Lisboa. Seus estudos se concentram nos campos da política externa, em especial latino-americana e da UE. Nesta entrevista ele fala das contradições e dos desafios político-econômicos do Brasil e seus vizinhos. Sem medo de colocar o dedo em feridas, mas sempre com clareza e gentileza. E muito humor, traço que marca sua personalidade e pela qual gostaria de ser lembrado. “Eu respeito palhaços.” No campo acadêmico, se orienta por “separar o que eu gostaria que fosse daquilo que eu acho que é”. Uma coerência intelectual mais que necessária nestes tempos.

DINHEIRO — Qual o erro do Mercosul?
ANDRÉS MALAMUD — Começamos pelo nome, que quer dizer Mercado Comum do Sul. Ser um mercado comum é a terceira de quatro etapas de uma integração. A primeira é a Zona Livre de Comércio. A segunda é a União Alfandegária. A terceira, o Mercado Comum. E a quarta é a União Econômica e Monetária. A União Europeia está na quarta etapa. O Mercosul não tem isso. Nem as duas primeiras. Há quem diga que não é sequer uma Zona Livre de Comércio porque tem dois produtos muito importantes que estão fora: açúcar e carros.

O acordo Mercosul-UE tem a França contra e a Alemanha a favor. Ele irá andar?
Nunca passará.

De que se trata o acordo? Muitas pessoas não sabem. E os diplomatas por vezes também não. Trata-se de um Acordo Misto, não é apenas um Acordo de Comércio. Um Acordo de Comércio é da jurisdição da Comissão Europeia. A Comissão assina, vai pro Parlamento, Conselho e não tem de passar pelos Estados-membros. Parlamentos da França, Alemanha, Espanha… Mas um Acordo Misto sim, porque trata de comércio, diálogo político & cooperação. O acordo Mercosul-UE precisa, portanto, da aprovação de todos os Estados-membros.

Então, melhor esquecer?
Os diplomatas europeus até sugerem dividir o acordo. Assim a parte política & cooperação vai aos parlamentos nacionais, para morrer. E a parte comercial vai ao Parlamento Europeu para ser aprovada no Conselho. Só que isso é politicamente inviável porque nunca a UE decidiu contra a França ou a Alemanha. Já decidiu contra a Irlanda, contra a Dinamarca, contra a Holanda. Mas não faz nada contra França e Alemanha.

“Um tratado Uruguai-China não sai porque Pequim não quer. Nem China nem EUA querem ofender o Brasil”

A França não pode ser persuadida?
Não. Essa revolta dos agricultores não é só francesa. Estou em Portugal e aqui as estradas estavam bloqueadas. Na Espanha foi pior. A França não está só. Tem dez amigos. Irlanda, Polônia, Áustria… E esses amigos não precisam atirar a pedra, porque a França é quem dá a cara. Então não é verdade que são 26 contra a França.

Sem qualquer chance?
Eu acredito que esse acordo está morto.

Para complicar, o Mercosul não tem uma voz só. Cada país tem sua própria agenda. O Mercosul, como todas as organizações regionais latino-americanas, vive com o incumprimento. Mesmo assim não precisa desaparecer. Ele tem todas as razões para não existir, mas existe. E o custo de sair é superior ao custo de permanecer.

E acordos como o Uruguai quer com China?
O Uruguai quer e diz que o Tratado de Assunção não permite. Mas não é por isso que o Uruguai não faz. É porque a China não quer. Assim como os EUA não quiseram 15 anos atrás. E veja o paradoxo. O acordo com os EUA era desejo do Tabaré Vázquez, presidente de esquerda. O acordo com a China é do Luis Lacalle-Pou, presidente de direita. Não tem nada a ver com ideologia. É negócio de interesse nacional.

Porque nem EUA nem China querem ofender o Brasil. Eles olham para o Mercosul, veem que o Brasil é 80% e [dizem] ‘o Uruguai é muito simpático, gostamos muito do Uruguai, mas não vamos assinar um acordo com 3 milhões de pessoas e ofender 210 milhões’. É sempre uma decisão de fora.

Isso remete a um artigo seu para o jornal Clarín em que parafraseando Charles de Talleyrand (1754-1838) você escreveu que “ideologia é uma questão de datas”.
Na América do Sul, sim. O que quer dizer ser de esquerda? Claro que quer dizer muita coisa, mas simplificando é redistribuição. A direita é mais produção, mais liberdade e menos redistribuição. Quando se redistribui? Quando há dinheiro. Então é de esquerda quem pode ser, não quem quer.

“Milei terá até maio para mostrar resultados. Maio é quando a safra será vendida e os dólares chegarão”

O dinheiro conduz a ideologia?
Carlos Menem (Argentina) e Alberto Fujimori (Peru) na década de 90 chegaram ao poder pela esquerda. Mas foram governantes neoliberais porque não tinham para distribuir. Néstor Kirchner, não diria que chegou pela direita, mas era aliado do Menem e quando chega ao poder tem dinheiro. O que faz? Distribui e torna-se esquerda. A esquerda é uma possibilidade mais do que uma ideologia. Não quero relativizar os termos absolutos, vou relativizar por comparação.

E neste momento na América Latina?
Está em condições de distribuir? Não. As condições econômicas internacionais determinam as políticas. Indiferentemente da ideologia, os presidentes que governam sob maus tempos internacionais acabam mal. E os presidentes que governam com bons tempos internacionais acabam bem. Quem diz isso são dois politólogos brasileiros, Cesar Zucco e Daniela Campello. Eles falam da Maldição da Volatilidade.

Porque o que nós produzimos na América do Sul têm preços que nós não fixamos. São preços fixados no mercado internacional.

O que gera uma eterna dependência…
E a mesma coisa com os capitais de que precisamos para investir. Os Estados Unidos definem o preço do dinheiro e a China define o preço das commodities. E nós navegamos nessa volatilidade.

No Brasil, o PIB não deverá passar de 2%. O governo Lula III corre riscos?
O Brasil crescia demograficamente. Agora não. O crescimento demográfico [0,5%] é inferior ao crescimento econômico. Crescer 2% é medíocre, mas é crescimento.

No Brasil de hoje, a cadeira de presidente da Câmara é maior e mais poderosa do que a cadeira presidencial. Você concorda?
Concordo. Hoje. Mas 20 anos atrás não. O presidente da Câmara tem um poder impressionante no Brasil. E o poder institucional do presidente brasileiro é inferior ao que já foi.

Na sua página na web, a foto principal remete ao filme The Usual Suspects (1995, Bryan Singer). Quem são os suspeitos de sempre, os culpados para a América Latina ser esse lugar violento, mal escolarizado e desigual?
Fernando Henrique Cardoso dizia que o Brasil não é um país pobre, é um país injusto. E na América Latina aplica-se a mesma coisa. Pobre é a África. Mas na América Latina a distribuição faz com que os ricos sejam mais ricos e os pobres, mais pobres. É a região mais desigual do mundo. E a mais violenta. Com 8% da população global, tem 35% dos homicídios. E o principal culpado é a informalidade alta, que torna políticas públicas ineficientes. Outro problema grave são as organizações criminosas transnacionais. Mas há estabilidade geopolítica. É justo dizer os dois lados.

Especificamente sobre a Argentina, como avalia o começo do governo Javier Milei?
Há duas características. A primeira é disruptivo. Ele não é um [Jair] Bolsonaro que, apesar de tudo, tinha sido 28 anos deputado federal. Estava dentro do sistema. Era baixo clero, mas dentro. Milei, não. As pessoas votaram nele porque é anticasta, mais que antissistema. Mais antiestablishment que antidemocracia.

E a segunda característica?
Ele é hiperminoritário. É mais parecido com [Fernando] Collor do que com Bolsonaro. Porque Bolsonaro conseguiu comprar o Centrão. E tinha grandes apoios socioinstitucionais. Os evangélicos. Os empresários. A comunidade de segurança, Forças Armadas, Polícias. E tinha o Centrão.

E Milei?
Milei não tem nada disso. Agora os empresários começam a ajudar. Mas ele não tem Centrão, porque na Argentina não há Centrão. Está tentando governar mas não chega a ter um terço no Congresso.

Como fazer para governar assim?
É baseado na fé, por enquanto, e nos resultados, mais tarde. Se os resultados não chegarem, haverá problemas. As grandes consultorias econômicas acreditam que a inflação de janeiro será de 20%, inferior à de dezembro (25%) — o índice será divulgado quarta-feira (14). A Argentina tem muita recessão pela frente, mas se a inflação baixar, será bom sinal para comprar tempo.

E quanto tempo ele terá?
Seis meses [a contar da posse, em dezembro]. Porque em maio a Argentina vende a safra. É quando chegam os dólares. Antes ele terá de passar pelo teste de fevereiro, mês-chave para mostrar que em janeiro a inflação caiu, e acho que ele passa essa prova. A segunda prova será em março, quando começam as aulas e o preço do segmento educação está altíssimo, assim como os preços de transporte. Se ele superar essas duas provas a partir de maio terá dólares. Você cita em sua página web o historiador econômico italiano Carlo Cipolla (1922-2000) e suas Leis Fundamentais da Estupidez Humana — todas as pessoas se encaixam em quatro perfis: Bandidos (causam vantagens a si e prejuízo a outros), Estúpidos (causam danos a outros sem obter vantagem), Ingênuos (causam danos a si e vantagem a outros) e Inteligentes (causam vantagens a si e a outros). Quem é quem entre os países da América Latina? Cipolla foi brilhante. Bandido? Já foi Cuba. Recebia dinheiro de países com ideologia afim, não devolvia. Importava dinheiro. Exportava subversão. Já não. Infelizmente a experiência cubana não funcionou. São mais pobres do que antes. Mas já foi o bandido do bairro. Estúpido? Venezuela. Faz danos a outros, porque manda imigrantes, cria instabilidade nas fronteiras… E prejudica a si próprio. Perdeu o capital humano, perdeu todas as pessoas que controlavam a PDVSA. Perdeu 7 milhões de habitantes.

Quem seria o Ingênuo?
Aquele que produz bem para os outros prejudicando-se… é a Argentina. É o país mais estagnado da região. A Venezuela é um país falido. A Argentina não é falida, mas vai para trás em termos relativos. Foi ultrapassada pelo Panamá, pelo Chile, pelo Uruguai em PIB per capita… Mas continua a receber duas vezes a quantidade de pessoas em relação às que que saem. Continua a oferecer educação gratuita para os vizinhos, enquanto seus filhos vão pra Europa, pros Estados Unidos.

Já o inteligente é difícil?
[Risos]. Eu sei que no Brasil vocês são muito críticos. Mas existe uma força construtiva. Pequena, muito menor do que o seu tamanho permite imaginar. O Brasil, porém, não faz mal aos vizinhos. E faz um pouquinho de bem para si. Mais do que mal. Cresce pouco, já não há milagres, e neste passo não será um país desenvolvido por muitos anos. De toda forma, tem uma força que se bem usada serve para o bem.