11/02/2004 - 8:00
Raras vezes, na história recente, um documento foi tão revelador da intromissão dos Estados Unidos em um outro país, evidentemente mais fraco. Na semana passada uma ONG americana, a The National Security Archive, dirigida pelo historiador Peter Kornbluh, revelou gravações de 1972 de uma conversa entre o então presidente Richard Nixon e seu assessor de imprensa Ron Zeigler. O assunto: o comportamento do embaixador americano no Chile, Edward Korry, diante do governo socialista de Salvador Allende. Meses antes, Korry fora induzido a alimentar um golpe de Estado em Santiago. No diálogo, de 23 de março daquele ano, Nixon reclama do desempenho do embaixador em meio a uma crise da empresa americana de telefonia ITT no Chile. E conclui: ?Ele falhou, aquele filho da p…, ele deveria ter impedido a posse de Allende?. É a prova que faltava da aliança de Nixon e de seu braço direito em relações internacionais, Henry Kissinger, na queda de Allende e na ascensão do sanguinário Augusto Pinochet. Um lote impressionante desses documentos secretos já tinha sido revelado por Kornbluh no livro The Pinochet File, lançado no ano passado. A novidade: agora é possível ouvir parte deles pela internet.
O desbravador dos 24 mil papéis secretos que iluminam um período ruim da história latino-americana resume à DINHEIRO a importância
da papelada e das fitas: ?São documentos que servem de símbo-
lo da intervenção imperialista dos EUA para mudar o destino de um
país cujo único crime foi eleger um presidente, e com uma margem
de votos muito superior àquela do atual presidente americano?.
Um dos mais freqüentes mitos chilenos, entre os que foram coniventes com Pinochet (hoje com 88 anos de idade, imune às acusações da Justiça por senilidade), é a de que a ditadura ao menos resultou num país economicamente saudável. É uma balela quando se olha com atenção as cifras. Entre 1973 e 1987, no auge do governo do general, a renda per capita caiu 6,3%. Os trabalhadores ganham hoje menos do que nos anos 70. O desemprego é de 10,7%. São efeitos colaterais da medicação imposta pelo FMI e seguida à risca. Por isso, ainda hoje o Chile é tratado como exemplo de bom aluno em Washington ? o oposto do que se dizia de Allende. Se as estatísticas econômicas não são tão saudáveis como se propaga, aquelas destinadas a medir crimes contra os direitos humanos são nítidas. De 1973 a 1975, houve 42.500 prisões políticas. Pelo menos 3.197 pessoas foram assassinadas nos 17 anos de Pinochet. São números que permitem entender por que os chilenos democratas choram mais pelo 11 de setembro de 1973, dia em que Allende morreu dentro do Palácio de La Moneda em chamas, do que pelo 11 de setembro de 2001 de Nova York. Chamam-no de ?o outro 11 de setembro?.
As revelações da parceria de Nixon e Kissinger com Pinochet ajudam a engrossar esse coro e, de algum modo, a entender a atual política externa dos EUA de George Bush. ?A intromissão no Chile foi uma ação preventiva baseada no falso argumento de que um governo marxista eleito democraticamente se alastraria por toda a América Latina?, diz Kornbluh. ?Tratava-se, já naquele tempo, de uma ?troca de regime?, de uma ?intervenção unilateral? acompanhada de extrema desonestidade do governo. É um comportamento muito parecido com a atual política externa americana de Bush.?