23/03/2013 - 21:00
Está no ritual dos pontífices. Depois de se apresentar como papa, o líder máximo da Igreja Católica encontra, em primeiro lugar, o chefe de Estado de seu país de origem. Pois a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, saiu preparada de Buenos Aires para tirar partido da deferência. Em um vestido preto impecável, e um chapéu de laço combinando, Cristina calçou as sandálias da humildade para aproximar-se de Sua Santidade, na segunda-feira 18. Deixando velhas rusgas para trás, a chefe de Estado argentina se emocionou ao saudar o jesuíta, alçado ao posto de líder do Vaticano para reconquistar o rebanho católico.
Encontro fraterno: a presidenta da Argentina calçou as sandálias
da humildade para visitar o papa Francisco
Como ovelha desgarrada no passado, Cristina reconheceu o protagonismo global de Francisco, e garantiu um encontro reservado para tratar de assuntos de Estado. “Pedi a ele que interviesse pelo diálogo com o Reino Unido sobre a soberania nas Ilhas Malvinas”, disse a mandatária aos jornalistas que a aguardavam. Além da reunião a portas fechadas, Cristina trocou presentes com Francisco, sob a atenção de flashes e câmeras de tevê. Ela levou uma cuia de chimarrão de presente ao papa Francisco e pediu desculpas por tocá-lo, sem querer, enquanto gesticulava. Simpático, Francisco retribuiu com um beijo no rosto. “Nunca fui beijada por um papa”, disse Cristina, provocando risos entre os jornalistas e um sorriso discreto de Francisco.
Ao tentar colocá-lo em sintonia com os interesses argentinos, a viúva e sucessora do ex-presidente Néstor Kirchner busca resgatar uma tradição do Vaticano de interferir em questões políticas de interesse da humanidade. “São dois mil anos de diplomacia”, diz Fernando Altemeyer, mestre em teologia e professor da PUC de São Paulo. Vários pontífices que antecederam o cardeal argentino usaram sua influência para desfazer tensões. Em 1962, por exemplo, o papa João XXIII pediu, em mensagem ao mundo, no auge da guerra fria, que os governantes das grandes potências preservassem a paz. Teria sido a deixa para que a então União Soviética e os Estados Unidos iniciassem um diálogo para evitar uma nova guerra.
No Vaticano: após encontro com Francisco, a presidenta Dilma brincou que o papa
é argentino, mas “Deus é brasileiro”
Mais recentemente, o papa João Paulo II, que exerceu o papado de 1978 a 2005, intercedeu pela quebra do poder stalinista em seu país de origem, a Polônia, e pela derrubada do bloco socialista. Nos anos 1980, João Paulo II teria, inclusive, angariado fundos para o movimento sindicalista Solidariedade, liderado pelo ativista Lech Walesa. Mas a atuação desses dois pontífices se referia a assuntos de interesse global, enquanto as Malvinas incomodam tão somente os argentinos. Cristina, na verdade, corre o risco de ver Francisco engrossar o coro dos descontentes com os rumos da economia. Com uma retórica voltada aos cuidados com os mais necessitados, o papa jesuíta pode se insurgir contra a crise que afeta a vida de seus patrícios. “Na Argentina, há o empobrecimento de um grupo e o enriquecimento de outro”, diz Altemeyer.
“A injustiça social é um tema sensível ao papa Francisco.” Para o economista-chefe da M&S Consultores, de Buenos Aires, Facundo Martinez, não há milagre que venha mudar algumas características do governo de Cristina, como a falta de habilidade para atrair e reter o capital produtivo, fundamental para distribuir riqueza. “Com ou sem papa argentino, é impossível reverter a confiança dos investidores no país”, diz Martinez. Eis por que, explica ele, multinacionais de todas as origens, incluindo as brasileiras, estão batendo em retirada da Argentina. Na quarta-feira 20, o papa Francisco teve um encontro com a presidenta Dilma. Ao que tudo indica, o tema do êxodo empresarial ficou de fora. Mas o papa bem que podia ter dito à mandatária brasileira: “Perdoe Cristina. Ela não sabe o que faz…”