Já não é preciso ser Midas para transformar o inútil e o descartável – vulgo, lixo – em emprego, negócios e lucro. Tampouco chafurdar em lixões fétidos em busca de materiais recicláveis para vender como matéria-prima. O trabalho de evitar prejuízos à natureza e ao bolso de gestores públicos e privados – que precisam bancar uma infraestrutura adequada ao que antes era amontoado em qualquer lugar – está criando um novo mercado no Brasil.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) é o mais recente impulso dessa mudança de mentalidade. Tendo entrado em vigor em 2010, determinou, até 2 de agosto passado, o fim dos “lixões” – as áreas ilegais de depósito de rejeitos a céu aberto sem tratamento subterrâneo, que causam a contaminação do solo, da água e do ar. Apenas 40% dos 5.565 municípios cumpriram a lei principalmente nas regiões Sul e Sudeste) depositando resíduos em aterros sanitários. Mas os Ministérios Públicos Estaduais não pretendem dar folga aos faltosos.

Ao mesmo tempo, o volume de lixo está aumentando. Em 2013, foram geradas 76 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos no país, 4% a mais do que em 2012. Há mais desperdício, e a destinação correta num aterro sanitário custa caro, cerca de R$ 2,7 milhões por ano para uma cidade de 100 mil habitantes. Dado o alto preço de ser ambientalmente correto, as prefeituras e as empresas só têm uma saída: reaproveitar ao máximo e diminuir ao mínimo o dejeto final que termina morto e enterrado.

“O crescimento da geração de resíduos é maior que o crescimento da população nacional. A destinação correta dos rejeitos não acompanha o ritmo do consumo”, afirma Ariovaldo Caodaglio, presidente do Sindicato das Empresas de Limpeza Urbana do Estado de São Paulo e diretor da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Limpeza Pública.

Enquanto as empresas e as prefeituras retardatárias correm para se ajustar à lei, proliferam exemplos, pelo país afora, de usos inteligentes e fins lucrativos dados ao que se costumava tratar como lixo.

Energia limpa

Entre as últimas novidades em reaproveitamento desponta o Combustível Derivado de Resíduo (CDR). Uma parte dos desperdícios encaminhados para o Aterro de Paulínia (SP), da empresa Estre Ambiental, passa por uma seqüência de separações mecânicas e segue para um maquinário importado da Finlândia, único na América Latina. Apelidado de “tiranossauro”, seu sistema de trituração reduz um sofá a pedaços menores de seis centímetros. O resultado final é um massa de alto poder inflamável capaz de substituir combustíveis fósseis (como carvão e madeira), usada em caldeiras da indústria de cimento.

“Estamos em fase de testes e desenvolvimento de mercado. Queremos comercializar o produto até o fim do ano”, diz Alexandre Alvim, diretor de novos negócios da Estre. Com capacidade para gerar até sete mil toneladas por mês de CDR, o tiranossauro não só vai gerar novos ingressos para a empresa, como estender a vida útil do seu aterro que deixa de receber esses volumes diários de resíduos. “A valorização do resíduo é uma mudança de paradigma que está acontecendo agora. Seu benefício ambiental é claro e transforma custo em rendimento.”

A Estre possui 19 aterros próprios em São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas e Sergipe. Essas áreas são impermeabilizadas por uma espessa camada de argila e manta acrílica para evitar a infiltração do chorume (o líquido tóxico derivado do apodrecimento dos restos orgânicos). Além disso, como em todos os aterros, captam e tratam os gases inflamáveis e poluentes derivados da decomposição. Os resíduos são compactados por máquinas e, diariamente, cobertos por terra, para evitar a proliferação de vetores de doenças, como o mosquito da dengue e ratos. Mas a empresa não se restringe ao serviços dos aterros.

Mais de 80% do seu faturamento vêm da coleta e aterro, mas num futuro não muito distante essa proporção promete mudar drasticamente. Em meados de agosto, a Estre inaugurou, na unidade de Guatapará (SP), uma usina de energia elétrica por biogás, a primeira das dez planejadas até 2017. Com capacidade para gerar 3 mil megawatts por hora (MWh), a planta pode abastecer uma cidade de 18 mil habitantes. Com o aumento do preço da eletricidade no país e os incentivos fi scais do governo, na visão de Alvim, este é o melhor momento para investir nessa tecnologia.

O mercado está aberto para empreendimentos. Atualmente há 21 projetos de geração de energia a partir de biogás de aterro, em vários Estados, somando um potencial de 254 MWh. Somados todos os aterros existentes no país, o potencial de geração chega a 2 gigawatts. O primeiro leilão de energia para compra dessa fonte vai acontecer em outubro, o que deve criar um preço de referência e atrair mais atenção para o setor do lixo.

A Biogás Energia Ambiental, que já atua no mercado há dez anos, tem hoje as usinas de Gramacho, no Rio de Janeiro, e São João e Bandeirantes, ambas em São Paulo. A São João, em São Miguel, opera no limite máximo de geração, 20 MWh (gerando energia para 150 mil habitantes). A usina extrai gás do aterro de mesmo nome – que recebeu 28 milhões de toneladas de resíduos até ser fechado em 2009, e vai gerar metano por de duas décadas – e da Central de Tratamento de Resíduos Leste (CTL), aberta em 2010 logo ao lado, também na estrada do Sapopemba.

Já o Aterro Bandeirantes (no km 26 da Rodovia Bandeirantes) atingiu sua capacidade de 30 milhões de toneladas, não recebe mais rejeitos e parou de produzir eletricidade. As geradoras instaladas ali pelo banco Itaú estão desligadas. Procurado pela reportagem da PLANETA, o banco não quis comentar o caso.

Resta à Biogás continuar fazendo a queima controlada de gases para transformar metano em dióxido de carbono (CO2), que retém 25 vezes menos calor do Sol, e comercializar créditos de carbono. É verdadeque o mercado criado com a assinatura do protocolo de Kyoto, já não é rentável como antes. Um crédito de carbono – equivalente a uma tonelada de dióxido de carbono não emitida ou retirada da atmosfera – já valeu 17 euros, mas hoje é comercializado por centavos.

Pequenas cidades, grandes problemas

Enquanto aguarda a construção do gasoduto que ligará o Aterro Dois Arcos, em São Pedro da Aldeia (RJ), à rede da Companhia Estadual de Gás do Rio de Janeiro (CEG-Rio), previsto para 2015, a Usina de Tratamento de Biogás dará outro fim para o biogás. Além de comprimir e entregar o gás gerado a um consumidor industrial, vai usá-lo como gás natural veicular (GNV) na sua frota de carros e caminhões de lixo. Os oito municípios da Região dos Lagos, atendidos pelo aterro, representam melhor a realidade do mercado de lixo brasileira do que as grandes capitais do país.

Quase 95% das cidades brasileiras não chegam a somar uma população de 100 mil pessoas. Cerca de metade tem menos de 20 mil habitantes. Quanto menor o município, mais cara e insustentável fica a conta do aterro correto. “O custo operacional do aterro é muito grande para uma cidade pequena ou média. Portanto, o ganho de escala reduz esses custos”, explica Glauco Rodrigo Kozerski, diretor técnico do Consórcio Intermunicipal de Saneamento da Região Central de Rondônia (Cisan). For graças à união de 14 municípiosmembro que eles conseguiram construir um aterro em Arequemes para atender os 214 mil habitantes (no total) da zona urbana de suas cidades.

Embora se possa aproveitar de diferentes formas o gás dos aterros, é crucial fazer cada vez mais materiais retornarem à cadeia de produção. Constituído em 2007, o Consórcio Pró-Sinos, que reúne 27 dos 32 municípios da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (RS) – onde vivem 1,7 milhão de pessoas – apostou em outra solução para outro grande problema ambiental: construiu uma usina de beneficiamento de resíduos da construção civil, em São Leopoldo. A construção civil é o maior gerador de lixo da economia moderna.

No Brasil inteiro, esse tipo de desperdício superou 42 milhões de toneladas só em 2013 – 4,6% a mais que em 2012. “Transformamos entulho em material para o próprio setor de construção, e nos livramos desse passivo, que costumava ser despejado nas margens dos rios e em terrenos baldios”, conta Viviane Diogo, diretora do Consórcio.

O entulho levado para lá é processado para se tornar brita, areia reciclada, bica corrida (brita com granulação maior) e material para aterro. O produto mais barato é a areia, que custa R$ 28 por metro cúbico para particulares, R$ 24 para municípios em geral e R$ 20 para municípios associados. Desde que a usina entrou em operação, em dezembro de 2013, o consórcio recebe 16% do faturamento da empresa que ganhou a concessão de 20 anos do negócio.

Biofertilizantes

De volta a Arequemes, a Cisan ainda quer inaugurar uma área de compostagem no seu aterro. A compostagem transforma os restos orgânicos em biofertilizantes e é indicada para municípios pequenos, pelo tipo de lixo que geram e pela maior demanda por adubo. Segundo Kozerski, isso não traz lucro direto, principalmente sem bioaceleradores e biodigestores (tecnologias mais novas nessa área), mas aumenta a vida útil do aterro e sobretudo o retorno do investimento feito nele.

Outra forma de estender a vida útil do aterro é fazer uma boa coleta seletiva para reciclagem, porque assim as prefeituras podem levar menos coisa ao aterro e reduzir seus gastos com transporte. Machadinho, o município mais distante, está a 150 km de Arequemes. E há ainda outro estímulo: muitos termos de ajuste de conduta estão sendo assinados nas cidades. “No dia 4 de agosto, na segunda- feira após o vencimento do prazo, todos os integrantes do Cisan foram notifi cados pelo Ministério Público, porque ainda têm lixões”, revela Kozerski. A promotoria não vai dar mole.

O que pode assustar, na verdade é promissor. “Em 1998, com a Lei de Crimes Ambientais, os Ministérios Públicos Estaduais foram atrás das prefeituras, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, e foram feito vários termos de ajuste de conduta. Hoje elas são as regiões mais próximas da total adequação”, analisa Albino Rodrigues Alvarez, coordenador da PNRS no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Antes do fim

O aterro deve ser a última opção. A Política Nacional de Resíduos Sólidos determina a redução gradual dos resíduos secos dispostos em aterros sanitários e a inclusão nesse processo de 600 mil catadores brasileiros – segundo estimativas do Ministério do Meio Ambiente. São Leopoldo, cidademembro do Consórcio Pró-Sinos, é a primeira do Brasil a ter 100% da gestão de recicláveis feita por cooperativas. Caxias do Sul já recicla quase 25% do lixo que produz, enquanto São Paulo não chega a 1,5%.

O Aterro de Paulínia da Estre tem reservado um espaço para a Cooperlínia, cooperativa de catadores reconhecido pelo Programa de Investimento Direto em Empresas Inovadoras (da Finep). Seus sócios vão para o trabalho de van com ar condicionado e DVD, têm plano de saúde e odontológico, almoço de restaurante, nutricionista, psicóloga, psicopedagoga, pedagoga, férias, 13o salário e outras coisinhas mais. No ano que vem, a Finep vai permitir à Cooperlínia comprar uma máquina de triagem de R$ 12 milhões.

“Ninguém se assusta com a mecanização. Vamos pular de 32 profissionais na operação para 90”, adianta José Carlos da Silva. De uma média de produção de 1 ton/h, vão passar para 10 ton/h, e o custo operacional vai cair de R$ 380 pra R$ 150 por tonelada, em um único produto que representa 50% da produção da cooperativa. A parte fina, de separar 54 itens finais para reciclagem continuará nas mãos dos sócios e funcionários e seus “salários” devem dobrar.

Com o reaproveitamento, a pressão sobre recursos virgens (madeira, água, areia, pedra, etc) fica menor. “Mas enquanto houver espaço para tirar os desperdícios do alcance da vista, eles vão continuar a existir. O que não é escasso não é objeto de preocupação econômica”, alerta Alvarez.

Em alguns países europeus essa frase está deixando de fazer sentido, como a Noruega, que importa lixo de outros países para alimentar usinas de energia elétrica e térmica. Mas ainda estamos longe da proposta do químico e ambientalista alemão Michael Braungart, autor do clássico Cradle to Cradle: Criar e Reciclar Ilimitadamente, recém traduzido no Brasil (Editora GGbrasil, 2014). Braungart defende que todo produto deve ser projetado para se decompor sem causar dano, ou para ser reciclado sem perder a qualidade. A seu ver, todas as práticas atuais da economia são subdesenvolvidas, pois o lixo ainda se acumula. Tudo deveria se transformar, como na natureza.

(Reportagem publicada na edição de setembro da revista Planeta) 

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