10/12/2003 - 8:00
DINHEIRO ? Lula é o primeiro presidente brasileiro a liderar uma missão ao Oriente Médio. Como o sr. vê a aproximação?
EMMANUEL TODD ? Uma das saídas para os países do hemisfério
Sul é fortalecer os laços políticos e econômicos entre si. Se o
Brasil for capaz de organizar sua economia, unir os países da
América do Sul e fortalecer sua liderança regional, poderá ser
um candidato a uma das futuras potências globais. Eu diria até
que é um dos únicos candidatos.
DINHEIRO ? O fato de a viagem incluir a Síria e a Líbia, inimigos dos EUA, gerou reações negativas em Washington. É um risco?
TODD ? Não. Durante a crise do Iraque, o secretário de Estado americano Colin Powell disse que a França pagaria um preço por se opor à guerra. Até hoje estamos esperando. O fato é que a diplomacia americana, com seus déficits monumentais e uma moeda que perde valor a cada dia, já não tem mais poder para fazer ameaças. E isso favorece a política externa independente do Brasil.
DINHEIRO ? Um dos objetivos da missão é obter apoio para um assento brasileiro no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O sr. apóia essa idéia?
TODD ? O Conselho deve ser reformado. Mas antes da questão brasileira, há, a meu ver, outras prioridades, como a entrada da Alemanha e do Japão, que são gigantes do ponto de vista econômico, mas que não estão devidamente representados. O Brasil pode ser um novo candidato, mas isso dependerá de seu peso econômico.
DINHEIRO ? Um dos debates atuais no Brasil é se o País deve ou não aderir à Área de Livre Comércio das Américas.
TODD ? Não façam isso. Entrar na zona de influência americana justamente no momento em que o sistema está prestes a implodir? Não faz sentido. Se eu fosse um patriota brasileiro, trabalharia pela integração econômica de toda a América do Sul e estabeleceria
uma linha direta com a Europa. Aliás, não só com a Europa, mas
com todos os outros pólos, como o mundo árabe. O Brasil tem
tudo para ser um ator autônomo.
DINHEIRO ? Enquanto muitos analistas tratam os EUA como a única potência global, e falam até em hiperpotência, o sr. prevê o fim do império americano. Por quê?
TODD ? Esse tipo de confusão ocorre com freqüência na história. Quando um determinado fenômeno parece se impor, às vezes o
seu inverso é que é verdadeiro.
DINHEIRO ? E por que esse império estaria ruindo?
TODD ? Primeiro, em razão do enfraquecimento econômico. Os
EUA têm um rombo externo de US$ 500 bilhões e são deficitá-
rios no comércio com todos os países do mundo. Além disso, o aparelho militar que lhes permitiu destroçar o Iraque não lhes
garante a ocupação. No coração das implosões, há sempre
uma fraqueza econômica.
?A ida de Bush a Bagdá mostra que a política americana é feita para Hollywood?
DINHEIRO ? Como será a correção do déficit americano?
TODD ? O sinal mais evidente é o derretimento do dólar. Mas esse fenômeno acontece por etapas. Começou com as fraudes contábeis, ao estilo Enron e Arthur Andersen, quando muitos perceberam que o dinheiro que investem nos EUA não é contabilizado de forma limpa e que o modelo americano não é puro. Ainda assim, o dólar caiu muito em relação ao euro e só não desaba mais porque a China e o Japão ainda investem nos EUA e financiam um rombo bilionário. Compram reservas e títulos do Tesouro. Mas os chineses perceberão cedo ou tarde que o patrimônio que eles estão acumulando em dólares não valerá nada dentro de dez anos.
DINHEIRO ? Quais seriam as conseqüências de uma desvalo-
rização abrupta do dólar? Mais inflação? Juros elevados?
TODD ? Não quero ser um profeta, porque a situação é completamente nova. O que posso prever, sim, é que uma desvalorização pode reduzir o padrão de vida dos americanos
entre 15% e 20%. Hoje, eles já vivem muito acima de sua
capacidade e isso será corrigido.
DINHEIRO ? A crise atual assemelha-se à dos anos 20, quando o capitalismo liberal entrou em colapso?
TODD ? Há, sim, pontos comuns. A liberalização do comércio trouxe de volta o velho problema do capitalismo, que é a insuficiência da demanda. Todas as populações do mundo passaram a concorrer entre si e isso provocou uma pressão negativa sobre os salários e o consumo globais. Por isso, a situação atual lembra o quadro de 1929. Mas dois fatores diferenciam as crises. O primeiro fator, econômico, é a existência de sistemas de seguridade social, que freiam a redução da demanda global. A decomposição do sistema é a mesma, mas em câmera lenta, sem a mesma brutalidade. O segundo fator é ideológico. Nos anos 20 e 30, havia uma superexcitação ideológica, com os nacionalismos, o comunismo, o fascismo e o nazismo. Hoje estamos num mundo vazio do ponto de vista ideológico.
DINHEIRO ? É o fim da história, de Francis Fukuyama?
TODD ? Exatamente. Só há uma ideologia, a do ultraliberalismo, e nós estamos assistindo à sua morte. A ausência de ideologia não é menos perigosa do que o excesso de ideologias.
DINHEIRO ? O mundo ainda não depende dos EUA, uma vez que eles compram o que quase todos os países produzem?
TODD ? Há alguma dependência mútua. É também verdade que o Japão e a China não valorizam suas moedas em relação ao dólar para proteger suas exportações. Mas há muito de geopolítica nesse jogo. Veja o caso da Europa, que não precisa mais dos EUA. A região tem armas nucleares e entende-se muito bem com a Rússia. Uma parceria liderada por alemães, franceses e russos parece muito natural.
DINHEIRO ? Mas a nova Europa, na visão do secretário americano Donald Rumsfeld, alia-se aos Estados Unidos.
TODD ? Isso é uma piada. A nova Europa tem como pilares Ale-
manha e França. Os alemães são os maiores exportadores globais
de produtos industriais. A França tem laços com todo o resto do mundo. Esse é um casal que tem peso internacional. Como a
Rússia está percebendo que somos um parceiro estável, os EUA
estão em xeque. E isso os apavora.
DINHEIRO ? A Europa já superou as fraturas das duas guerras?
TODD ? Veja o caso do Iraque. As populações de todos os países europeus, mesmo aqueles cujos governos aliaram-se aos Estados Unidos, apoiaram as posturas de Jacques Chirac e de Gerhard Schröder. Há unidade.
?Arnold é a metáfora dos EUA. Um anão que tenta exibir sua musculatura?
DINHEIRO ? E os ingleses?
TODD ? É preciso compreender que eles têm um problema real de identidade. Eles não sabem se são europeus ou anglo-saxões. A
minha impressão é que os americanos se tornaram de tal forma insuportáveis que acabarão devolvendo a Inglaterra à Europa.
DINHEIRO ? O sr. prevê a ascensão da Eurásia como grande potência?
TODD ? Eu uso o conceito de Eurásia por-
que é nessa região que se encontra grande parte da população do mundo e dos recursos naturais. Mas não vejo uma ascensão imperial. O mundo que vem
pela frente terá cinco ou seis potências, entre as quais os EUA.
DINHEIRO ? Os americanos gostam de se ver como o país que salvou o mundo na II Guerra e, ainda assim, enfrenta a ingratidão dos franceses. Isso procede?
TODD ? Essa postura sentimentalóide não fez o menor sentido. Veja o meu caso, que venho de uma família judia. Meu pai foi perseguido na II Guerra e morreu como cidadão americano. Minha mãe também se refugiou na Califórnia. Portanto, como indivíduo, não posso ser antiamericano. Mas não existe qualquer relação entre a presença militar americana no Iraque e o desembarque das tropas dos EUA na Normandia. Aqueles soldados de 1944 lutavam contra o totalitarismo. Era um exército de cidadãos. Os soldados que estão no Iraque fazem parte de um exército de mercenários. São ladrões. Não dá para misturar análise histórica com sentimentalismos.
DINHEIRO ? A emancipação européia não pode ser contida pela inferioridade militar em relação aos Estados Unidos?
TODD ? A superioridade militar americana é ilusória. O que importa, no jogo das grandes potências, é a questão nuclear, onde há, sim, um certo equilíbrio. Os EUA não são monopolistas e não são capazes sequer de controlar o Iraque.
DINHEIRO ? É por isso que o sr. diz que os americanos só são capazes de guerrear contra países pequenos?
TODD ? É verdade. E, ainda assim, sem garantir a ocupação.
Os ideólogos militares americanos são criançonas que brincam
com soldadinhos de chumbo, como se pudessem impor uma
lógica colonial a um país árabe.
DINHEIRO ? O que o sr. achou da ida secreta de George W.
Bush a Bagdá?
TODD ? Isso mostra que a política americana é toda conce-
bida para Hollywood.
DINHEIRO ? O atoleiro iraquiano pode prejudicar a reeleição de Bush?
TODD ? Pode e meu temor é que os americanos adotem uma estratégia que, aqui na França, nós chamamos de fuga para a frente, buscando um novo alvo. As hostilidades dos EUA e de Israel em relação à Síria, que foram uma ação concertada. Atacaram a Síria para testar a reação dos europeus e dos russos. Mas não creio que eles tenham coragem de atacar o Irã, um país de economia robusta e sentimento nacional forte.
DINHEIRO ? O apoio dos EUA a Israel não alimenta o terrorismo internacional?
TODD ? O terrorismo internacional não existe. Há fenômenos isolados. O que se passa em relação aos palestinos não pode ser chamado de terrorismo. É resistência à ocupação. No Iraque, os atentados também estão inseridos num contexto de resistência. O terrorismo de 11 de setembro, é bom que se diga, foi vencido graças à colaboração de todos os países. Não é a ameaça terrorista que move os EUA.
DINHEIRO ? Mas e a Turquia?
TODD ? Os atentados de Istambul mostram que o fenômeno está circunscrito ao mundo muçulmano, embora os alvos fossem bri-
tânicos. Tudo vem sendo causado pela desordem criada pelos
EUA. E é muito triste, porque a Turquia se opôs à guerra e não
se vendeu aos americanos.
DINHEIRO ? Como e quando os americanos devem sair do Iraque? Não há risco de anarquia?
TODD ? A anarquia já está lá. O argumento da anarquia é uma
falácia americana para continuar no Iraque. Acho que se deve
definir rapidamente zonas xiitas, sunitas e curdas no país. Nada
pode ser pior do que a situação atual.
DINHEIRO ? Como o sr. avalia a eleição recente de Arnold Schwarzenegger na Califórnia?
TODD ? É a prova do apodrecimento da democracia americana. Schwarzenegger é um anão que exibe os músculos. Os EUA
tentam controlar o mundo pela musculatura militar.
?Arnold é a metáfora dos EUA. Um anão que tenta exibir sua musculatura?