Embora defenda o aproveitamento das diferentes tecnologias no setor automotivo, executivo entende que o Brasil precisa acompanhar a transformação mundial e direcionar a sua política industrial para a eletrificação

São 25 anos de atuação no mercado automotivo brasileiro em gigantes como Ford, Toyota e, atualmente, Great Wall Motors (GWM). Desde março deste ano, o executivo Ricardo Bastos incluiu uma nova responsabilidade à desafiante rotina na montadora chinesa: presidir a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). A entidade busca assegurar o desenvolvimento da eletromobilidade no País. Uma tarefa árdua, apesar de resultados animadores.

O número de carros étricos comercializados saltou de 117 (2012) para 49.245 (2022). No total, circulam no País 158.678 veículos eletrificados. “Temos crescido em média 50% a cada ano. Mas acredito que chegaremos à marca de 500 mil unidades até 2026”, disse.

Para isso, segundo ele, serão necessárias políticas públicas, como a manutenção da alíquota zero do imposto de importação, e início da produção em escala.

DINHEIRO — Qual o balanço do trabalho realizado pela ABVE até agora?
RICARDO BASTOS — É preciso ter em mente que o principal objetivo da eletromobilidade é atender o meio ambiente. Mas estamos falando de um produto que tem uma finalidade social importante: o veículo. Você tem caminhões, ônibus, precisa transportar pessoas, mercadorias, enfim, esse é o desafio que temos enfrentado.

E como estamos nesse contexto?
Olhando o que está acontecendo no mundo, há países como a China, que deu um salto gigantesco para a eletrificação e hoje lidera a eletrificação no mundo. O país deve fechar este ano com quase 30% de vendas de veículos eletrificados.

O Brasil está bem distante disso, certo?
O Brasil demorou uns quatro anos para passar das 1 mil unidades vendidas em um ano [1.091, em 2016]. Em 2022, chegamos a quase 50 mil, falando só de automóveis e comerciais leves. Uma aceleração muito grande, em torno de 50%. Este ano estamos prevendo mais 50%. Devemos fechar com 75 mil veículos comercializados.

Percentualmente esse é um bom número, mas na prática ainda é pouco, não?
Considerando que o Brasil vai comercializar 2 milhões de veículos [total], estamos falando de algo ainda muito pequeno. Pouco mais de 3,5% do mercado. Mas já é importante.

Há outros complicadores?
A ABVE também trabalha muito forte na infraestrutura. As pessoas têm uma preocupação de saber onde vão carregar o veículo, como funciona a bateria… Na ABVE temos empresas como Raízen, CPFL e Enel, que estão olhando o mercado de energia, e também temos gente de infraestrutura, de carregamento, de bateria.

Qual a realidade no restante do mundo?
A Europa está avançando muito rapidamente também pela questão ambiental. Os Estados Unidos estão um pouquinho atrás.

Há algum diferencial para o Brasil?
Quando você olha somente Europa e China, eles não têm uma matriz energética tão limpa quanto a nossa, têm que queimar carvão, petróleo, gás. Temos biocombustíveis, energia eólica, solar e tudo mais. É a oportunidade de utilizar essas tecnologias, essas matrizes energéticas, no transporte.

Como a ABVE pode auxiliar nisso, em dar tração a essas mudanças?
Trabalhamos para viabilizar as tecnologias que estão vindo para colocar o Brasil nesta corrida tecnológica, nesta corrida em razão do meio ambiente. Queremos não só que o País tenha acesso, mas que desenvolva a sua indústria, que hoje é de combustão. E também temos oportunidades com o hidrogênio. O veículo a hidrogênio verde nada mais é do que um modelo elétrico, só que com características diferentes. O Brasil pode dar um salto nessa corrida.

De que forma?
Acho que, inicialmente, um caminho que pode vir mais forte seria o de veículos a hidrogênio para carga. O modelo não precisa de muita bateria, mas de alguns tanques para carregar o hidrogênio. Ele se aproxima muito do caminhão convencional do ponto de vista de capacidade de carga e resolve algumas questões de autonomia.

Algumas montadoras defendem o veículo elétrico puro, outras o híbrido… As diferentes posições interferem no desenvolvimento da eletrificação no Brasil?
O que pode atrapalhar, obviamente, é seguir em direção a uma tecnologia que deixaria o País atrasado. Hoje o mundo está indo para a eletrificação. O Brasil não pode achar que vai ficar produzindo carro a combustão para sempre e sendo competitivo, porque talvez a gente não tenha espaço no mundo.

Países da Europa têm anunciado prazos para o fim da produção de carros a combustão. Acredita que isso vá acontecer no Brasil?
Não queremos que o Brasil proíba veículos a combustão. Não precisamos dessa medida radical. O que o País precisa é fazer uma escolha. Hoje existem incentivos em algumas regiões. Não temos, infelizmente, a mesma riqueza de uma China, que pode dar bilhões em incentivo para a eletrificação. Ou mesmo de uma Europa ou dos EUA, que subsidiam em 7 mil euros e US$ 7,5 mil para cada carro elétrico.

Qual o caminho para o Brasil?
Temos condições de dar alguns incentivos.

O aumento da procura pelos modelos eletrificados será natural?
Sim. O que acontece? Desde a década de 1980 existe no Brasil um programa chamado Proconve [Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores], com metas de emissões cada vez mais severas. E entendemos que esse caminho vai ser cada vez mais em direção à emissão zero no escapamento.

E como aumentar as vendas?
Um caminho é a inclusão de frotistas. A entrega, por exemplo, pode ser feita em um pequeno caminhão eletrificado. Passa a ser um diferencial, assim como os veículos de aplicativos. Isso sem contar as empresas corporativas que estão buscando veículos eletrificados por causa de metas ESG. É o público novo que vai seguir para o eletrificado e que pode nos ajudar a dar saltos nas vendas. Mas a gente precisa ter não só o mercado. Precisamos ter a produção local.

“O veículo a hidrogênio verde nada mais é do que um modelo elétrico, só que com características diferentes. O Brasil pode dar um salto nessa corrida”

O fator preço ainda pesa?
O preço do carro eletrificado vem caindo enquanto o do carro a combustão vem subindo. Muitos estados estão tirando o IPVA, que é de pelo menos 3%, de diferença, mas a gente tem também o custo do quilômetro rodado. O veículo eletrificado, com base no preço da energia e tudo mais, pode custar às vezes de 10% a 20% do custo do quilômetro rodado de um veículo a combustão. Então, resolvida a questão do investimento inicial, o custo do quilômetro rodado passa a ser muito interessante.

Diante do crescimento das vendas no Brasil é possível fazer uma estimativa do tamanho do mercado em dois, três anos?
Com relação à frota circulante, o Brasil vai chegar perto de 200 mil unidades este ano. E eu acredito que em até três anos, em 2026, a gente atinja as 500 mil, com vendas anuais próximas a 200 mil.

Existem conversas para a manutenção da alíquota de importação?
Esse é o pleito que a ABVE apresentou ao governo. Sabemos que há outras empresas, associações, com pleitos diferentes, querendo inclusive fechar esse mercado.

O híbrido seria um começo?
O Brasil já tem um pouquinho de produção nacional. Várias empresas têm anunciado investimentos. No ano que vem, vamos ter produção no Brasil de veículos híbridos mais completos, mais próximos do veículo elétrico puro. Mas para o País chegar a isso não queremos nenhum sobressalto. Se hoje o governo fizer uma mudança, do tamanho que for, no imposto de importação, o recado que será dado para o setor, para a sociedade, enfim, para as empresas, é que o Brasil não quer eletrificação.

Qual seria o tempo ideal?
Talvez por mais um ou dois anos.

Há outros pleitos?
O programa Rota 2030, que completa agora cinco anos. Nessa primeira fase traz alguns benefícios para a eletrificação, mas pequenos. Estamos prontos para que o Rota 2030 contenha ingredientes, principalmente quando a gente fala de incentivos às melhores tecnologias.

Até que ponto a falta de um plano nacional atrapalha o desenvolvimento do setor e o que pode ser feito?
A gente gostaria que as políticas públicas já tivessem sido implementadas. Hoje temos alguns pontos para serem definidos, como a forma de tributação. A Reforma Tributária vai definir isso mais à frente. Mas até lá alguns ajustes podem ser feitos.

O ritmo de instalação das estruturas de carregamento dos veículos está adequado ao crescimento do mercado?
Sinto que poderia ser maior, ser melhor, se tivéssemos um avanço mais homogêneo no Brasil. Hoje está mais concentrado no Sudeste e no Sul. E obviamente ninguém vai querer investir na compra de um carro eletrificado se não souber onde pode carregar. Eu gostaria de ver mais coisas no Nordeste, no Centro-Oeste. Brasília está quase como uma ilha.

Criou polêmica recentemente a decisão do Inmetro de reduzir a autonomia dos carros elétricos. Qual a opinião da ABVE a respeito?
Inicialmente, a gente considera o PBEV [Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular] muito importante com o objetivo de fornecer informações para o consumidor da autonomia e da eficiência energética dos veículos. Mas a metodologia adotada no programa foi obviamente desenhada para veículos a combustão.

“Obviamente ninguém vai querer investir na compra de um carro eletrificado se não souber onde pode carregar”

O que vocês fizeram?
Apresentamos ao Inmetro a nossa preocupação com os números que estão sendo colocados na etiqueta e no programa em relação aos modelos plug-in. O híbrido convencional simples sem plug-in está bem representado, a metodologia cobre, até porque ele tem um funcionamento muito próximo ao do veículo a combustão. Mas quando a gente vai para os eletrificados, a metodologia não está boa. E o desconto de 30% [na autonomia] aplicado é muito pesado.

O que está sendo feito?
Nos comprometemos com o Inmetro de fazer a nossa proposta de como corrigir isso. O ponto para nós é que o consumidor não consegue pelo número que está na etiqueta ver o seu veículo tendo a autonomia indicada. Ele está fazendo mais. O que nós queremos no final é que o consumidor olhe a etiqueta e realmente encontre o que vai ter no carro, o que vai receber.

A troca de governo nas esferas nacional e estadual influencia na proposta de desenvolvimento da eletrificação?
A mudança do governo federal deixou um pouco mais claro dentro da estrutura quem são os interlocutores e a forma de atuar. No estado de São Paulo também [com a troca de governador]. Acho que a interlocução está ótima. Nós precisamos realmente agora transformar tudo isso em medidas concretas para que o Brasil avance no segmento.