08/01/2025 - 6:43
As instituições brasileiras foram colocadas diante de uma prova de fogo inédita com os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. Muitos se questionaram: elas iriam sucumbir à pressão, negociar uma pacificação via anistia ou processar e punir os responsáveis?
Dois anos após as imagens de bolsonaristas quebrando vidraças correrem o mundo, a resposta do Judiciário aponta para o terceiro caminho. Isso começou a ficar claro com o destino da massa de radicais que invadiu os palácios: das 1.552 pessoas denunciadas, 58% já foram responsabilizadas – 371 receberam condenações de até 17 anos de prisão e outras 527 confessaram os crimes e assinaram acordos com o Ministério Público.
A grande novidade dos últimos meses, porém, é que o alto escalão parece não estar a salvo das investigações. Em novembro, a Polícia Federal (PF) concluiu que os atos golpistas seriam parte de um plano mais amplo para derrubar o então recém-empossado governo de Luiz Inácio Lula da Silva e trazer Jair Bolsonaro de volta ao poder. O inquérito indiciou Bolsonaro, ex-ministros do seu governo e o presidente do PL, seu partido, por crimes graves contra o Estado de Direito.
E pela primeira vez na história do país, um general quatro estrelas da reserva foi preso preventivamente em dezembro – Walter Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro em 2022. A PF afirma ter provas de que sua casa sediou uma reunião para discutir um plano para matar Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Ainda há um caminho à frente para avaliar as acusações. A Procuradoria-Geral da República precisa decidir se denuncia os indiciados, que então seriam julgados pelo STF. Mas a divulgação do inquérito já teve outro efeito: esfriar o debate no Congresso sobre uma possível anistia aos condenados por atos golpistas, e afastar ainda mais a chance de Bolsonaro, declarado inelegível até 2030, reverter a decisão e concorrer em 2026.
Bolsonaro nega que tenha tentado um golpe e afirma estar sendo perseguido por Moraes, e a defesa de Braga Netto diz que ele “não tomou conhecimento de documento que tratou de suposto golpe e muito menos do planejamento de assassinato de alguém”. Os demais indiciados também negam ter participado de atividades criminosas.
Virada histórica na relação com militares?
Braga Netto não foi o único militar de alta patente entre as 36 pessoas indicadas pela PF.
Também figuram na lista o general da reserva Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que seria responsável pelo suposto núcleo de inteligência do plano golpista; o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa e ex-comandante do Exército, que teria atuado para disseminar a versão de que a eleição de 2022 fora fraudada; e o almirante da reserva Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, que teria colocado suas tropas à disposição para um eventual golpe, segundo o inquérito.
O indiciamento desses militares e a prisão preventiva de Braga Netto, autorizada por Moraes, sugerem que o sistema de Justiça não está com pudores de avançar contra a caserna, avalia para a DW o cientista político Pedro Lima, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos coordenadores do Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (Nudeb).
“Há um simbolismo muito grande em ter um general preso, mais de 40 anos depois de o Brasil ter feito uma transição [da ditadura para a democracia] pelo alto, com garantias aos que cometeram crimes”, afirma. “E também tem peso político a extrema direita e o próprio Bolsonaro se verem às voltas com a Justiça. Pode ser um momento de virada de como tratamos os militares, do ponto de vista institucional e também cultural.”
Heloísa Fernandes Câmara, professora de teoria do Estado do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição, tem avaliação semelhante: “Isso não tem precedentes e representa o começo de uma responsabilização mais ampla – de fato chegar a quem estava coordenando os atos, e não só a quem foi para as ruas.”
Ela avalia que a maneira como o Judiciário está tratando os atos golpistas pode deixar uma lição ao país: “Não utilizar anistia como mecanismo de uma falsa pacificação”. Em retrospecto, ela considera que a falta de responsabilização de agentes da ditadura deixa sequelas até hoje na democracia, como a militarização da segurança pública.
Ruptura de paradigma
Mas a resposta do Judiciário não representa todo o aparato institucional brasileiro, pontua Rubens Glezer, professor da FGV Direito SP e coordenador do grupo de pesquisa Supremo em Pauta. Líderes importantes do Congresso se movimentaram para debater uma anistia aos golpistas, e mesmo o ministro da Defesa, José Múcio, defendeu o perdão aos “casos leves” do 8 de janeiro de 2023.
“Naquela linha do ‘deixa disso, aconteceu, deixa os velhinhos voltarem para casa, deixa o Exército ver quem ele quer punir'”, afirma. “Isso só não ocorreu por conta do Supremo, e o ator-chave foi Alexandre de Mores. Ele não está operando na tradição da conciliação política, e a prisão do Braga Netto foi o epítome disso.”
Glezer avalia que a responsabilização dos golpistas e a prisão de um general quatro estrelas da reserva representa uma ruptura de paradigma tão grande como havia sido a Lava Jato, mas “com outra qualidade, outro peso institucional e outro tipo de prova”.
Contudo, ele recomenda que o STF adote uma postura de maior comedimento em relação a decisões de alto impacto na sociedade que tensionem o equilíbrio entre os três poderes. Além das ações sobre os atos golpistas, ele menciona as decisões recentes do ministro Flávio Dino que alteram o regime de pagamento de emendas parlamentares.
“Isso acaba tendo um custo para a própria corte”, diz, ponderando que há dois tipos de crítica ao tribunal: uma que busca aprimorá-lo para que ele se atenha ao seu mandato constitucional e eleve sua transparência, e outra que no fundo gostaria de extinguir a independência da instituição.
Não foi só o Supremo que tomou a dianteira. Heloísa Câmara, da UFPR, cita o exemplo dos Estados Unidos, que reelegeu Donald Trump apesar da invasão do Capitólio por seus apoiadores em janeiro de 2021, para reforçar a relevância da Justiça Eleitoral – que tem um rito processual mais célere do que a Justiça Comum e declarou Bolsonaro inelegível até 2030 por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante uma reunião convocada por ele com embaixadores no Palácio da Alvorada para atacar as urnas eletrônicas.
Como fica a direita extremista
Um ponto de interrogação é o que acontecerá com Bolsonaro. Qual será sua relevância para a direita brasileira? Ele será responsabilizado pelos atos golpistas? Mesmo que o ex-presidente seja condenado, a análise da conveniência de sua prisão é complexa, afirma Lima, da UFRJ.
“A prisão de um líder político envolve um cálculo político, não é só uma questão de rigor jurídico. E tenho impressão que as instituições e o STF vão pensar se vale a pena”, afirma. “Do ponto de vista institucional e político, você não quer transformar Bolsonaro num mártir. Sob o ponto de vista da salvaguarda da democracia e do isolamento dos operadores da extrema direita, talvez seja interessante mantê-lo inelegível, mas não necessariamente prendê-lo.”
Outro aspecto do 8 de Janeiro foi acentuar uma divisão do campo da direita que já vinha ocorrendo durante o governo Bolsonaro, abrindo espaço para a “direita mais democrática” se divorciar da “direita extremada e autoritária”, avalia Glezer, da FGV.
O que ficou claro após essa decantação foi que um percentual relevante do eleitorado segue radicalizado. E, como ocorreu em algumas cidades brasileiras na eleição passada, é possível que a direita se divida em dois candidatos ao Planalto em 2028, um extremista e outro mais tradicional.
Como a população avalia os atos golpistas
Duas pesquisas de opinião divulgadas nesta segunda-feira (06/01) abordam a percepção dos brasileiros sobre os atos golpistas.
A maioria desaprova a invasão das sedes dos Três Poderes e é contra uma anistia aos que cometeram crimes no 8 de Janeiro. Mas cerca de um terço da população defende o perdão judicial a essas pessoas, e há uma clara divisão sobre a avaliação do papel de Bolsonaro nos atos.
O levantamento da Genial/Quaest aponta que, entre os eleitores de Bolsonaro na última eleição, 55% não acham que ele teve algum tipo de influência sobre os atos golpistas em Brasília. Percentual relevante, mas bem menor do que em dezembro de 2023, quando a fatia representava 81% do seu eleitorado. Entre a população em geral, 50% consideram que Bolsonaro teve algum tipo de influência sobre os atos, e 39% avaliam que não.
Quando questionados se aprovam ou desaprovam as invasões das sedes dos três poderes, 86% desaprovam – queda de três pontos percentuais em relação a dezembro de 2023 e de oito pontos percentuais sobre fevereiro de 2023. Outros 7% dos brasileiros aprovam as invasões, alta de um ponto percentual em relação a dezembro de 2023 e de três pontos sobre fevereiro de 2023.
Outra pesquisa, do Datafolha, aponta percentuais semelhantes sobre o envolvimento de Bolsonaro nos atos: a maioria dos brasileiros (52%) considera que Bolsonaro tentou se manter na Presidência por meio de um golpe, três pontos a menos do que em março de 2024. Já outros 39% avaliam que Bolsonaro não tentou se manter no poder dessa forma.
Entre os que avaliam que Bolsonaro não tentou se manter no poder por meio de um golpe, os percentuais mais altos estão entre os mais instruídos (47%), com renda familiar mensal acima de 5 salários mínimos (49%), moradores da região Sul (50%), evangélicos (52%) e eleitores de Bolsonaro em 2022 (73%).
Questionados sobre uma eventual anistia aos envolvidos nos ataques na Praça dos Três Poderes, 62% dos brasileiros são contrários e 33%, a favor, segundo o Datafolha. Entre os que são contra a anistia, destacam-se os eleitores de Lula em 2022, com 72%. Entre os eleitores de Bolsonaro, 45% defendem a anistia.
“Abraço” em volta da Praça dos Três Poderes
Nesta quarta-feira haverá um ato na Praça dos Três Poderes, com a presença de Lula e de representantes do Legislativo e do Judiciário, para marcar os dois anos da depredação de suas sedes. Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica também devem ir, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, não confirmaram presença.
Na ocasião serão recolocadas em seus locais obras de arte danificadas durante a invasão e haverá um abraço simbólico ao redor da praça, organizado por movimentos sociais.