Presidente do Banco do Brics, Marcos Troyjo enaltece o papel do comércio exterior no PIB brasileiro, que representou 39% das riquezas produzidas no último ano, mas alerta sobre necessidade de diversificação para um crescimento de longo prazo.

Nos últimos anos, o brasileiro se acostumou com respostas vagas, dúbias e números questionáveis de autoridades. Mas esse não é o modus operandi de Marcos Troyjo, presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês) e ex-integrante da equipe econômica do governo Bolsonaro. Otimista, mas sempre lastreado na realidade, ele traz dados para falar do espaço que o Brasil tem para crescer no comércio global, em especial com a expansão da demanda por alimentos dos países em desenvolvimento. Mas esse crescimento, para ser sustentável, não pode vir sozinho ou depender apenas do agronegócio. É preciso mudar parâmetros. Deixar de falar de reindustrialização e tratar sobre neoindustrializar. Parar de temer a desglobalização e olhar as novas demandas dos países. Entender as diferenças dos membros do Brics não como um muro abissal, mas como chance de encontrar interesses em comum. Tudo isso deve ser parte de um projeto de longo prazo, estruturado e pautado em números.

MELHORES DA DINHEIRO — Por uma série de combinações, que vão desde pandemia até a guerra na Ucrânia, tivemos no Brasil mais um ano de economia patinando, como vem acontecendo na última década. Como o senhor enxerga o momento atual e as expectativas de curto prazo?

MARCOS TROYJO — Se você fizer uma análise dos países que tiveram mais êxito dos anos 80 para cá, como Alemanha e Japão, o Chile, a Coreia do Sul, todos têm em comum uma característica muito forte: são países que se adaptaram competitivamente à globalização. Utilizaram o comércio exterior e o fluxo de investimento estrangeiro direto como as principais alavancas para o crescimento.

E não foi o caminho brasileiro…
O Brasil ficou muito vinculado a um modelo que só conduziu a um isolamento nas cadeias globais de valor. Isolamento do ponto de vista dos fluxos dinâmicos do comércio exterior. Uma postura muito protecionista e em alguns setores quase que de reserva de mercado. Essa é uma espécie de pedra fundamental do atraso da economia brasileira. É como se o Brasil durante um período importante estivesse se escondendo da globalização.

Qual o preço dessa postura?
Ao final do ano 2018 eu fui secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais e vi um estudo do Banco Mundial sobre abertura de economias. Quanto cada país exporta e importa em relação ao PIB. E em 2018 o Brasil tinha cerca de 9% do PIB representado por importações. Só três países do mundo tinham coeficiente inferior — Cuba, Sudão e Turcomenistão. É quase como se a gente conseguisse estabelecer duas verticais: os países que mergulharam na globalização e os países que permaneceram ensimesmados. Infelizmente o Brasil ficou na segunda vertente. E isso com várias outras características, como baixa produtividade da economia.

Mas a partir da pandemia muitos países começaram a questionar cadeias de suprimentos que não estavam sob controle, ou tão próximas ou ajustáveis rapidamente. O tema da desglobalização dá uma renascida, não?
Tivemos dois fenômenos desglobalizantes. A recessão de 2008 nos Estados Unidos e a crise dos passivos soberamos nas economias mediterrâneas, em 2011. Nesses momentos já se falava sobre o mundo do ‘cada um por si’. Naquele momento eu usei o termo desglobalização. Não como o contrário à globalização, mas da forma como usamos desaceleração. Quando um veículo está desacelerando não significa que ele está parado, mas sim que ele se move mais lentamente. Nesse sentido a desglobalização não significa o fim da globalização, apenas que o nevoeiro está forte.

“Em 2021 nós tivemos pela primeira vez neste século uma corrente de comércio que, proporcionalmente ao PIB, foi superior à corrente de comércio da China”

Algo reversível?
Sim. Mesmo com essas tendências de desglobalização, a adaptação competitiva ao cenário internacional continua sendo um imperativo. Os riscos são outros e as oportunidades, também. Por exemplo: existe uma distância entre a vontade de desglobalização e as possibilidades concretas de que isso venha a acontecer. Ninguém está abandonando completamente a eficiência que a globalização trouxe. Mas pelo atual cenário os países estão diminuindo a velocidade da globalização e criando novas rotas.

E o Brasil tem aproveitado esse movimento?
Há muitas formas de calcular o grau de abertura da economia, e nenhuma delas é perfeita, mas existe uma análise muito utilizada que é a soma das exportações e das importações em relação ao PIB. O Brasil oscilou desde os anos 80 entre 18% e 25% do PIB. No ano passado, saltou para 39% e tivemos pela primeira vez neste século uma corrente de comércio que, proporcionalmente ao PIB, foi superior à da China. Isso se dá pelo aumento das importações, o que significa que o Brasil está abrindo seu mercado, mas também pelo aumento significativo das exportações. Mostra que há uma faceta do novo capítulo da globalização que o Brasil está aproveitando. E pode aproveitar muito mais, como o setor de alimentos tem feito.

E essa mudança do Brasil tem mais a ver com o posicionamento de governo ou com o conjunto de regras de desregulamentações? O que está por trás disso?
São várias coisas. Nos últimos três anos e meio se prestou mais atenção ao comércio exterior como fonte de crescimento, o que nós não tivemos em momentos anteriores. Quando houve a crise das dívidas dos países latino-americanos, nos anos 80, ficou famosa a frase “exportar é o que importa”. Isso porque o Brasil tinha um passivo soberano grande em dólar. No início dos anos 80, para combater o efeito da inflação americana, o Fed [Banco Central dos EUA] jogou os juros fortemente para cima, e muito do passivo soberano brasileiro estava denominado em taxas flutuantes. Ou seja, o serviço da dívida ficou hipertrofiado. E como pagar isso? Aumentando as exportações. O Brasil volta a esse foco de proteção do mercado interno. Mas isso mudou. Nos últimos três anos houve uma postura liberal construtiva. Passou-se a ter o entendimento mais claro de que o comércio exterior talvez tenha sido a grande fórmula de sucesso das economias no mundo pós-guerra.

E qual é o bem mais promissor, o mais valioso, na cadeia global hoje? Que segmento é decisivo?
Agora outra conjuntura ganha dimensão. O Brasil é um dos quatro grandes produtores agrícolas do mundo. Há um estoque muito elevado de países com grande contingente populacional e que crescem a taxas econômicas muito altas a partir de uma renda média relativamente baixa.

E um potencial aumento dessa renda leva a um aumento do consumo, em especial de alimentos?
Sim. Quando essa renda aumentar, as pessoas vão consumir mais alimentos. A economia, a literatura e a experiência mostram que esses aumentos vertiginosos da renda per capita a partir de um nível mais baixo é acompanhado de uma grande multiplicação da ingestão de calorias. Ou seja, o Brasil tem uma oportunidade espetacular. É por isso que há números e comparações impressionantes. Hoje o Brasil exporta mais para a Tailândia do que para a França. Mais para Malásia do que para Itália. Mais para China do que para os Estados Unidos e a União Europeia juntos.

E isso é uma vantagem competitiva para o Brasil.
A mim parece ser um panorama muito favorável.

Outro setor além do agro pode se aproveitar desse momento?
Cada vez mais eu acho que essas divisões que nos ensinaram nas escolas de economia [setores primário, secundário e terciário] são insuficientes para descrever a realidade. É como se houvesse um lençol freático. Uma estrutura por debaixo onde o nome do jogo é agregação de valor. E por isso essas divisões não fazem mais sentido. O que importa é a agregação de valor.

A pergunta a ser feita é qual?
Qual é o montante de tecnologia e de conhecimento que você incorpora àquela atividade.

E qual o processo de transformação que o Brasil precisa passar para chegar lá?
Existe uma oportunidade concreta de viver uma neoindustrialização, que é diferente de reindustrialização, já que envolve agregar novos valores à manufatura tradicional. A equação da produtividade é a soma de empreendedorismo, conhecimento técnico, inovação e capital. E o desenho global hoje oferece ao Brasil a oportunidade de grande acumulação de capital para diversificação da economia. Se não tivéssemos essa vantagem competitiva tudo o mais seria difícil. Não é preciso escolher serviços ou agricultura. Indústria ou outra coisa. É preciso diversificar a economia.

A percepção atual é de que a imagem do Brasil no exterior foi arranhada, em especial pela questão ambiental. Isso pode ter impacto negativo no comércio exterior?
Tudo isso precisa ser entendido à luz de que existe uma competição mundial. Claro que isso não pode ser desculpa para que a gente não faça o dever de casa, que não continue melhorando as nossas práticas ambientais e de recursos naturais. Mas existe uma competição muito grande lá fora. Eu me lembro de uma entrevista do Carlos Alberto Parreira [técnico da Seleção Brasileira campeã do mundo em 1994]e perguntaram se ele achava que o Brasil estava jogando bonito ou feio. Ele disse: ‘Eu aprendi a ver o jogo pelos números. Quantas vezes o adversário chutou no meu gol?’. Então vamos ver alguns números. No ano passado o Brasil foi o quarto maior destino mundial de investimento estrangeiro direto. A participação do comércio exterior no PIB foi de 39%, a mais alta da história do País. Exportamos US$ 280 bilhões, um recorde. A corrente comercial foi de US$ 500 bilhões, também um recorde. O superávit foi de US$ 60 bilhões, outro recorde histórico.

E neste ano?
Todos os indicadores estão 20% acima do ano passado. Se você pegar o superávit comercial brasileiro acumulado desde primeiro de janeiro de 2019 está próximo de US$ 200 bilhões. Você lembra quando do ministro da Economia [Paulo Guedes] dizia que iria conseguir R$ 1 trilhão com reformas? Pois bem. Em quatro anos foi o comércio exterior que chegou a esse R$ 1 trilhão.

“O comércio bilateral há 20 anos era de US$ 1 bilhão ao ano. Hoje é US$ 1 bilhão a cada 60 horas”

O senhor é um forte conhecedor do Brics. Qual o potencial do Brasil nessa seara no médio prazo?
O Brasil é o único país que faz parte do Brics, do G20 e está em processo de adesão formal à OCDE. É um jogador em diferentes tabuleiros. O único que tem essas três características. O Brics começou como um sinônimo de como se daria o crescimento mundial no futuro. E isso está se cumprindo. Cada vez mais o Brics ocupa uma fatia crescente do PIB global. É algo muito saliente nos casos de China e Índia e um pouco menos no de Brasil, Rússia e África do Sul. Mas vamos comparar o G7, das sete maiores economias do mundo, com o E7, os sete maiores emergentes (China, Índia, Brasil, Indonésia, Rússia, México e Turquia). Hoje o E7 tem um PIB 20% superior ao do G7, quando olhado sob a paridade do poder de compra. E há também uma questão de agenda. Pense lá em 2005, quantas vezes o presidente brasileiro e o primeiro-ministro indiano se encontrariam? Pouquíssimas. Agora, esses encontros são mais comuns, mais pessoais. Quatro ou cinco vezes por ano. Na ONU, na cúpula do Brics, no G20…

A tirar pelo que acontece no mundo neste momento, é possível ver quão diferente os países do Brics são entre si.
Sim. A China é muito diferente da Índia, que é muito diferente da Rússia, que é diferente do Brasil e assim por diante. Mas os interesses coincidem. E você constrói os consensos para que outros interesses também se alinhem. Os investimentos em infraestrutura e os recursos disponíveis para o desenvolvimento sustentável são exemplos. O comércio bilateral [do Brasil] há 20 anos era de US$ 1 bilhão ao ano. Hoje ele é de US$ 1 bilhão a cada 60 horas. Ano passado o Brasil foi o principal destino do investimento estrangeiro direto da China.

Já em relação ao Mercosul, a percepção que temos é de que o acordo com a União Europeia está engavetado. Concorda?
O acordo está concluído. É um acordo que está fechado, e é o maior acordo entre blocos econômicos da história do comércio mundial. Ele envolve não apenas tarifas e cotas, mas também uma série de outras questões que vão de garantias ambientais, propriedade intelectual, regras de origem. É complexo, abrangente, moderno e sofisticado.

Por que a demora, então?
É natural que um tratado desse quilate passe pelas turbulências dos ciclos políticos eleitorais em cada um dos países membros da União Europeia e do Brasil. Mas tenho a impressão de que a conjuntura internacional vai acabar acelerando a aprovação do acordo.

Se pudesse pensar em um legado, algo que traga de seus pais e que impactasse as pessoas que te conhecem, qual escolheria?
Meus pais são de classe média, mas sempre investiram e me incentivaram muito ao estudo. Desde pequeno eu sempre gostei muito desse tema, do papel do Brasil, do papel do mundo, e do lugar do Brasil no mundo. Fui estudante de intercâmbio nos Estados Unidos quando tinha 15 anos de idade. E sempre foi uma honra falar em nome do Brasil ou falar sobre o Brasil. Isso acabou criando uma experiência formativa que eu carrego até hoje: a ideia de que o Brasil é um país ainda pouco conhecido do mundo, pouco exposto ao mundo. E o contrário também é verdadeiro. O mundo é uma realidade distante para o Brasil, que é um país que tem dimensões territoriais continentais. Mas acho que meu legado é tentar aumentar a participação do papel do Brasil no mundo.