As montadoras brasileiras, nos últimos anos, observaram a deterioração da economia da Argentina mais pelo noticiário do que pelos seus balanços. A gradual retração das exportações para o país da presidente Cristina Kirchner era compensada pelo forte crescimento das vendas no mercado interno. No entanto, Brasil e Argentina – guardadas as devidas proporções – jogam, agora, no mesmo time: o dos mercados em queda. O grupo francês PSA Peugeot Citroën, por exemplo, gigante com faturamento global de € 54,1 bilhões, em 2013, reduziu em mais de 50% seus embarques ao país vizinho neste ano. Para o presidente da companhia na América Latina, o português Carlos Gomes, as fabricantes de automóveis terão de olhar para outros mercados para reencontrar o equilíbrio financeiro. “O Mercosul está construído sobre bases muito frágeis e não nos permite tomar determinadas decisões”, afirma Gomes, que falou com exclusividade à DINHEIRO:

DINHEIRO – Depois de um ciclo de quase uma década de crescimento, este tem sido um ano muito ruim para as montadoras. Como o sr. avalia essa reviravolta?
CARLOS GOMES –
Estamos, na verdade, no segundo ano consecutivo de retração. Em 2013, o mercado já foi um pouco menor do que em 2012. É claro que a queda do ano passado não teve a amplitude da retração deste ano. Foi menor. Acredito que estejamos vivendo uma nova realidade do mercado, um novo patamar, não apenas uma questão pontual. O crescimento econômico está abaixo do que é necessário para fazer a nossa indústria crescer.

DINHEIRO – O que houve nos últimos anos que faltou neste?
GOMES –
Nos últimos dez anos, houve crescimento da economia, aumento da renda, ampliação da classe média, redução dos juros. Tudo isso contribuiu para o ciclo de alta. Sem a continuidade desses fatores, estamos vivendo o período de baixa, que deve durar uns três anos. Prevemos que, em 2015, não haverá crescimento. Dada a atual conjuntura, dificilmente o mercado de veículos irá se expandir no ano que vem. No nosso entender, não há condições para crescer.

DINHEIRO – A PSA anunciou investimento de R$ 3,7 bilhões no País há pouco tempo. O sr. reconhece que a companhia superestimou o Brasil?
GOMES –
O plano de investimento foi formulado quando o País estava bem melhor. Se soubéssemos, naquela época, como o mercado estaria hoje, alguns investimentos não teriam sido feitos. Mas esse programa, que termina em 2015, vai ser cumprido. O que vai acontecer é que o próximo ciclo de investimentos irá reavaliar as prioridades. Provavelmente, algumas tecnologias que poderiam vir ao Brasil logo irão demorar mais tempo para chegar.

DINHEIRO – A redução do IPI, que funcionou bem, inicialmente, não conseguiu manter as vendas aquecidas. O que o novo governo poderá fazer para estimular o setor novamente?
GOMES –
A redução do IPI, assim como todas as medidas pontuais de estímulo, sem mudanças estruturais, não resulta em efeito positivo no longo prazo. Servem apenas para antecipar uma determinada demanda, para depois nos fazer sofrer lá na frente. Esse tipo de medida não nos permite trabalhar de forma estruturada. Por isso, não sou a favor de decisões que não sejam permanentes e conjunturais. Para sobreviver, é preciso produzir melhor e mais barato. Portanto, é essencial que se faça uma reforma da atual estrutura tributária. Só assim teremos um ganho importante e condições de competir de igual para igual, daqui a cinco ou dez anos.

DINHEIRO – A reforma tributária já não virou uma utopia no País?
GOMES –
Esse pleito da indústria pela reforma tributária tem sido avalizado até pelo próprio governo Dilma, além de ter sido uma das bandeiras de campanha de Aécio Neves, do PSDB. Ou seja, todos os brasileiros estão convencidos de que a reforma tributária é mais do que necessária. Por isso, não entendo por que até agora não foi feita e por que não é colocada como prioridade número 1 do governo.

DINHEIRO – O governo tentou, sem sucesso, reduzir o custo da energia elétrica. Isso não comprova que algumas bandeiras da indústria são, por enquanto, impossíveis de sair do papel?
GOMES –
Ainda não entendi muito bem a questão do custo da energia. Não sei qual é a reforma que está sendo proposta. Em princípio, o governo anunciou que iria reduzir o custo da energia em 20%. Agora, disse que vai subir em 25%. Para mim, e para a maioria dos industriais brasileiros, não está claro aonde o governo quer chegar com isso e qual é a mudança que pretende fazer na matriz energética. O fato é que produzir no País é muito mais caro do que em outras partes do mundo.

DINHEIRO – Se o custo de produzir no País é tão alto, por que há tantas montadoras anunciando investimentos e novas fábricas?
GOMES –
O custo de se produzir no Brasil é, obviamente, um problema. Qualquer que seja o próximo governo, a redução do custo de produção da indústria é o grande desafio. A única coisa que queremos é ter condições de disputar com os outros países. Nós precisaríamos ter condições de exportar mais, de vender em toda a América Latina, pelo menos. O mercado latino-americano é de quase 6 milhões de veículos. Mas é fato que não há futuro para a indústria brasileira de automóveis se ela não for competitiva e se ela não tiver como ambição sair de suas fronteiras, uma vez que o mercado interno nunca será suficiente para fechar a conta.

DINHEIRO – Qual deverá ser a política industrial do novo governo?
GOMES –
Só o novo governo poderá responder a essa pergunta. E eu não posso falar por toda a indústria. Posso falar pela PSA, e ainda assim já é difícil. O que é preciso assinalar é que a indústria automobilística é importante demais para a economia brasileira e, portanto, precisa receber atenção. Há, ainda, um grande potencial de crescimento. A proporção de habitantes por automóvel no Brasil é de 15,6. Esse número está muito inferior às taxas da Europa e dos Estados Unidos, além de ser menor até em nossos vizinhos na América Latina. Além disso, o nosso setor é um termômetro da saúde econômica de um país. Quando não estamos bem, a economia não está bem. Há dois elementos que determinam a situação difícil de hoje, o mercado está encolhendo e o custo de produção está subindo. O pior dos mundos. Deveria ser o contrário. O mercado crescendo e o custo diminuindo.

DINHEIRO – O governo é o único responsável pelo mau momento do mercado interno?
GOMES –
Obviamente, o Brasil não é responsável pelo que acontece fora de suas portas. Houve uma crise mundial, da qual o País não tem culpa. Mas o governo é, sim, responsável pela condução do mercado interno, que está indo muito mal, atualmente.

DINHEIRO – O tamanho do mercado brasileiro não compensa even­tuais ciclos de baixa?
GOMES –
Por mais que estejamos felizes e satisfeitos pelo fato de o mercado brasileiro ser o quarto ou o quinto maior do mundo, com mais de 3 milhões de carros vendidos todos os anos, as vendas internas não são suficientes para cobrir todos os custos.

DINHEIRO – Mas os nossos vizinhos na América do Sul estão mal…
GOMES –
Sim, esse fato faz com que a situação seja ainda mais complicada. Nossas exportações para a Argentina caíram mais de 50% no primeiro semestre.

DINHEIRO – A redução dos custos depende mais do governo do que das empresas?
GOMES –
É preciso acontecer uma transformação filosófica no País. Uma coisa curiosa que acontece no Brasil é que as empresas fixam os preços de venda levando em conta a soma do custo mais margem de lucro. Aceitam o fator custo como se fosse uma fatalidade, uma consequência. Repassam esse custo, e pronto. Isso faz com que toda a cadeia, de certa forma, vá aumentando os preços. Já as margens são, geralmente, determinadas pelo aumento da concorrência.

DINHEIRO – Mas qual seria a fórmula ideal, senão a soma do custo e da margem?
GOMES –
Deve-se, primeiro, determinar um preço final para o produto, levando-se em conta uma projeção de custo e uma média de margem. A partir daí, fazer o custo se ajustar ao seu produto. Não o contrário. Quando se faz isso, o custo é uma variável atacada o tempo todo. No final, conseguimos ter um produto com preço competitivo ao cliente final. É o que estamos fazendo, principalmente nos últimos dois anos.

DINHEIRO – Como a PSA está conseguindo reduzir os custos? Demitindo?
GOMES –
A redução de estrutura é um dos fatores para diminuir os custos. Em tempos como este, precisamos fazer mais com menos pessoas, otimizando as estruturas. Demitimos 650 trabalhadores de nossa fábrica de Porto Real, no Rio de Janeiro, quando decidimos fechar o terceiro turno de produção. Em 2013, a unidade produziu 150 mil unidades. Neste ano serão cerca de 95 mil. Na Argentina, o terceiro turno também foi encerrado. Além disso, estamos substituindo componentes importados por nacionais e trabalhamos fortemente para reduzir outros custos comerciais, operacionais e de logística.

DINHEIRO – Se a saída para as montadoras é exportar mais, olhar para os mercados vizinhos não parece ser uma alternativa razoável…
GOMES –
A Argentina e a Venezuela são mercados para os quais o Brasil já olhava. A Argentina, aliás, é o único grande mercado de exportação de automóveis do Brasil. O que eu proponho é que se olhe para mercados novos. O Mercosul está construído sobre bases muito frágeis e não nos permite tomar determinadas decisões. É preciso olhar para mais longe. Os países andinos, como Peru, Chile e Colômbia, com cerca de 100 milhões de habitantes e mais de 1 milhão de veículos vendidos por ano, estão apresentando taxas de crescimento muito interessantes. Esses números são bem melhores do que os da Argentina. Além disso, há muitas opções fora da região, como a África. A Europa está se recuperando. Lá, nossas vendas voltaram a crescer. O Brasil precisa estabelecer acordos bilaterais e se libertar da prisão do Mercosul.