13/10/2004 - 7:00
DINHEIRO ? O que vai ser da Nestlé depois que o Cade rejeitou a segunda proposta de fusão com a Garoto?
ELIZABETH FARINA ? O Conselho tomou a decisão de não aceitar a proposta que a empresa apresentou. Foi um resultado por maioria, não por unanimidade. A maioria considerou que a proposta da empresa era insuficiente para que o mercado readquirisse a situação de concorrência desejada. Portanto, caso encerrado dentro do Cade. Mas a Constituição garante que qualquer decisão administrativa de um órgão público pode ser levada aos tribunais. Isso agora é assunto exclusivo da empresa.
DINHEIRO ? A Nestlé já avisou que vai recorrer alegando decurso de prazo dentro do Cade.
FARINA ? A empresa pode alegar isso na Justiça. Dentro do Cade o tema já foi dis-
cutido. O entendimento dos conselheiros é que, se houve decurso de prazo, ele afeta somente a primeira etapa do processo, não tendo qualquer influência sobre o que acaba de ser julgado. Se eles encaminharem essa alegação, os tribunais vão decidir.
DINHEIRO ? A decisão de contrariar os interesses de uma multinacional do porte da Nestlé reforça o poder do Cade?
FARINA ? Não vejo esse caso como um divisor de águas. No passado, quando o órgão colocou restrições a outras empresas, também não estava querendo dizer amém para o poder econômico. Algumas restrições podem ser tão pesadas quanto a negativa de fusão de duas empresas. O resultado do caso Nestlé-Garoto chama atenção porque uma negativa desse porte nunca tinha acontecido. Mas será que precisam acontecer muitas para que o órgão ganhe reputação? Não. O que nos dá força são critérios coerentes, condução respeitosa dos casos e decisões consistentes.
DINHEIRO ? Como autora de um parecer da Nestlé, a senhora, de certa forma, também acabou derrotada…
FARINA ? Prefiro me pronunciar apenas como presidente, sustentando a decisão do colegiado, ainda que ele tenha decidido de forma diferente do que eu penso. Encaro isso como normal. No caso das companhias aéreas, também fui voto vencido.
DINHEIRO ? Há como reorganizar o setor aéreo brasileiro proibindo acordos operacionais entre as empresas e alinhamento de preços?
FARINA ? O Cade decidiu condenar as empresas por formação de cartel na ponte aérea Rio?São Paulo. Vou fazer cumprir essa decisão, apesar de continuar discor-
dando. Para comprovar a formação de cartel, seria preciso provar que as empresas realmente se reuniram para combinar preços. Isso é diferente de uma companhia copiar o preço da outra para evitar tomar prejuízo. Muitas vezes a racionalidade econômica obriga a empresa a seguir preços e práticas da empresa líder do ramo. Por isso, não poderia condenar as companhias aéreas por formação de cartel.
DINHEIRO ? Nos últimos tempos, o Cade tem se destacado mais pelas polêmicas entre conselheiros do que pelo resultado dos julgamentos. O Cade virou um circo?
FARINA ? Houve de fato algumas sessões muito tumultuadas por conta da relevância dos processos. Mas o Cade não é um circo. Parte das conturbações veio do Conselho anterior. Mas a exemplo do que costumam fazer os alunos da USP diante de um novo professor, avalio que alguns colegas e muitos advogados estão tentando testar os meus limites. Eu defini esse limite com clareza já na primeira sessão. Antes, os conselheiros chegavam nas sessões cada um num horário e os advogados já encostavam para fazer pedidos. Agora estamos chegando e saindo juntos. Houve muitas reações negativas. Já estou colocando ordem na casa, mas isso não significa que não haverá novos incidentes quando julgarmos interesses importantes.
DINHEIRO ? O subprocurador-geral da República junto ao Cade, Moacir Guimarães, acusa a senhora de não ter experiência jurídica para presidir o órgão. E que seu desempenho comparado ao do ex-presidente João Grandino Rodas deixa a desejar. Como a sra. responde a essas críticas?
FARINA ? O fato de eu não ter experiência jurídica não é novidade. Sou professora de Economia e minha experiência nos tribunais tem dois meses. A Lei de Defesa da Concorrência não exige formação jurídica. Para isso, tenho assessoria. O fato é que de todos os ex-presidentes do Cade, o único com experiência jurídica foi o Grandino, que era juiz de carreira. Ainda assim, a sessão mais conturbada de todas foi a última conduzida por ele.
DINHEIRO ? A sra. acha que está gastando mais energia administrando os egos do que o órgão?
DINHEIRO ? Ego inflado não é prerrogativa do Cade. Somos seis conselheiros. Vim de um Departamento de Economia com 74 acadêmicos, dentre eles vários ex-ministros e ex-presidentes do Banco Central. Francamente, existe uma exacerbação das confusões que ocorrem por aqui. Escondidos atrás dos desarranjos, os conselheiros têm trabalhado muito na reconstrução de um órgão mais sereno. Estamos redesenhando o regimento interno e também tenho ido muito à Casa Civil e ao Ministério da Fazenda atrás de um plano de carreira para os funcionários.
DINHEIRO ? Depois da Nestlé, quais os próximos itens na agenda de polêmicas?
FARINA ? O caso Braskem é um processo importante. Deve ser pautado em duas semanas. O da Brasil Telecom está prestes a ser votado. Outra novidade é a possível concentração de mercado de suco de laranja, com a venda de duas fábricas da Cargill para a Cutrale e a Citrosuco.
DINHEIRO ? O governo começou a preparar mudanças na Lei de Defesa da Concorrência. O que precisa mudar?
FARINA ? As mudanças ainda estão sendo discutidas, mas acho que a direção geral que pretendem dar é muito boa. A intenção é racionalizar as atividades dos três órgãos oficiais de defesa da concorrência, o Cade, a Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), da Fazenda. O plano é fundir os três órgãos num só e dar consistência para se fazer controle prévio de atos de concentração e melhorar a resposta do sistema.
DINHEIRO ? Esses três órgãos, Cade, SDE e Seae, estão batendo cabeça, como muitos empresários reclamam?
FARINA ? Isso é um diagnóstico absolutamente geral, embora eu ache que, nesse momento, estamos trabalhando bem. Porém, um desenho como esse gera a possibilidade de conflito, superposição e morosidade. Tem-se visões diferentes da mesma atuação sob a mesma legislação, equipes que competem entre si, em vez de cooperar. No passado já foi pior.
DINHEIRO ? Por que os empresários brasileiros não cultivam o hábito de procurar órgãos de defesa da concorrência? Perda de tempo e dinheiro?
FARINA ? O empresário reage a incentivos e regras. Estamos falando de um conjunto de regras das quais defesa da concorrência é uma parte, regulação é outra, as leis e sua implementação são mais outra parte. A política macroeconômica oferece um cenário adicional. O empresário olha esse conjunto. Cada vez mais ele tem visto o sistema brasileiro de defesa da concorrência como um mecanismo ao qual ele pode recorrer quando se sente lesado por uma estratégia anticompetitiva. Além disso, existe muita confusão entre direito do consumidor, defesa da concorrência e relações comerciais entre partes. Essas áreas apresentam zonas sobrepostas.
DINHEIRO ? As fusões e aquisições da década de 90 não teriam gerado, em alguns setores, uma concentração de mercado nociva?
FARINA ? A abertura comercial, combinada com a desregulamentação e a entrada de capital estrangeiro, provocou uma reestruturação positiva no País. Aumentou a concorrência e mudou os limites de atuação econômica das empresas. Isso fez com que várias empresas consolidadas no Brasil tivessem sua posição de hegemonia ameaçada. Houve transferência de propriedade e concentração em vários setores de maneira mais ou menos generalizada. Mas a minha avaliação dessa reestruturação é positiva, ainda que tenha gerado concentração em vários setores. A concentração em si não é um mal, desde que você tenha empresas que sejam eficientes e que haja concorrência.
DINHEIRO ? Como a sra. avalia o caso da telefonia? Em muitas situações parece que o setor saiu de um monopólio estatal para um quase monopólio privado.
FARINA ? A telefonia é um caso particular. Trata-se de uma estrutura em transformação. Saímos de um setor totalmente operado pelo Estado e fomos em direção a um modelo privado com regulação estatal. O maior desafio para a regulação e a agência de concorrência é acompanhar as conseqüências de mudanças tecnológicas muito rápidas que existem nessa área.
DINHEIRO ? Os órgãos da concorrência já constataram a formação de cartéis em várias áreas, como de medicamentos e de combustíveis. O que o Cade vai fazer sobre isso?
FARINA ? O sistema brasileiro da concorrência está atuando nessa área. Não se trata de um problema do Brasil. Os grandes cartéis conhecidos são internacionais e transfronteiras. A SDE tem focado fortemente nessa área, é lá que se faz investigação e instrução de processos de cartel para o Cade julgar. No meu ponto de vista, a atividade mais importante da defesa da concorrência está exatamente na conduta e não na análise dos atos de concentração. Onde se pode ser mais importante é exatamente na atividade repressiva de condutas anticompetitivas. Cartel é uma delas, existem outras como venda casada e preços predatórios.
DINHEIRO ? O Cade tem que julgar todos os negócios entre empresas que faturam acima de R$ 400 milhões. A sra. concorda com esse critério?
FARINA ? Eu acho que esse filtro deixa passar muita coisa. Se uma empresa que tem um pequeno escritório no Brasil adquire, no Brasil, uma outra empresa pequena, do ponto de vista interno trata-se de um negócio entre um escritório de representação e uma empresa média. Porém, se esse escritório está vinculado a uma empresa, de qualquer parte do mundo, que tenha mais de R$ 400 milhões de faturamento, o que é fácil de ocorrer, esse ato de concentração tem que ser submetido ao Cade. O impacto dele sobre a concorrência é zero. Esse caso, que é o típico, poderia estar excluído com o uso de um filtro mais eficiente.