A dentista aposentada Vera Alfredo, de 76 anos, conviveu por quase 50 anos com uma úlcera venosa na perna que teimava em não fechar. A ferida abriu após infecção contraída ao dar a luz ao primeiro filho, quando tinha 25 anos. Tentou diversos tratamentos, passou por 16 cirurgias, mas nada resolvia. “Trabalhei por 37 anos em pé, como dentista, com essa úlcera aberta, tendo de fazer curativos todo dia. Não podia ir à praia, nunca usei saia, vestido.”

Até um dia ouvir um chamado na TV por voluntários para um teste clínico na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. Era investigado um novo tratamento para esse tipo de ferida persistente, o selante de fibrina, à base de veneno de cascavel e sangue de búfalo.

Esse é um caso de sucesso em uma área ainda pouco avançada no País, a pesquisa translacional, em que se converge a ciência básica, do laboratório, à aplicada, com potencial para o desenvolvimento de novos produtos de uso medicinal. Da natureza ao paciente, como resumem os pesquisadores.

O selante surgiu de pesquisas do Centro de Estudos de Veneno de Animais Peçonhentos (Cevap) da Unesp. Está na fase 2, de testes clínicos, em que se avalia a segurança do produto

Foi testado em 40 pacientes com feridas semelhantes às de Vera.

Em outubro, os pesquisadores enviaram relatório à Anvisa. Ainda falta a fase 3, que de fato medirá a eficácia em número bem maior de pessoas, cerca de 400. E essa é a parte mais difícil.

São poucos os casos de pesquisas brasileiras de substâncias com potencial de se tornarem novos remédios – muitas oriundas da rica biodiversidade do País – que conseguem transpor a bancada do laboratório para as farmácias. Quando isso ocorre, geralmente é pela indústria farmacêutica estrangeira.

Entre problemas clássicos de burocracia e falta de verba, um gargalo importante é a dificuldade de fazer a tal fase 3. Isso porque a produção de amostras para testar o produto em centenas ou milhares de pessoas é complexa e cara e acaba dependendo de parcerias com a indústria.

Promessa

Os aprendizados dos pesquisadores com o selante e outros produtos deram a chance de abrir um pouco esse caminho. Convênio fechado entre o Ministério da Saúde e a Unesp liberou R$ 11 milhões para construir uma fábrica-escola no câmpus de Botucatu para produzir amostras de medicamentos biológicos. A expectativa é de que as obras comecem em meados de 2019, com conclusão prevista para 2021.

“Hoje não temos capacidade farmacêutica instalada no Brasil, seja pública ou privada. Importamos até Novalgina”, diz o infectologista Benedito Barraviera, pesquisador do Cevap.

Para produzir amostras para testes, explica, as farmacêuticas precisam criar ou separar uma linha de produção para isso – um risco de prejuízo. Com isso, ninguém provê amostras para testes das faculdades.

A expectativa é de que a fábrica-piloto preencha essa lacuna. “O objetivo é atender ensaios clínicos, de produtos como os que desenvolvemos aqui e de outros medicamentos biológicos”, complementa o veterinário Rui Seabra, diretor do Cevap. “Por um lado, será possível avançar em estudos que estão na bancada dos laboratórios das universidades. Por outro, vai ajudar a fortalecer e indústria farmacêutica nacional.”

É o Ministério da Saúde que vai encaminhar os futuros clientes. “São vários projetos no Brasil inteiro que hoje não estão em teste clínico por causa desse gargalo da dificuldade de produzir amostras”, diz Barraviera. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.