16/11/2005 - 8:00
Uma mostra dramática do que a tão discutida desigualdade social ? essa já em escala global ? pode produzir foi vista, semana passada, na França, palco de tudo que é beleza e turismo, mas temporariamente transformada num inferno. Era a própria Paris, que sempre ventilou o bem estar, a eqüidade e civilidade que estava em chamas, como um caldeirão em pressão máxima. A partir de seus arrabaldes, a crise, o quebra-quebra e o caos atingiam na semana passada 300 cidades. Nuvens de incêndios, automóveis destruídos, depredações e confrontos com a polícia. O retrato do caos, que tinha no fundo um conflito eminentemente econômico. Os imigrantes, na esmagadora maioria africanos e do oriente médio, que desejavam experimentar as benesses do primeiro mundo e viviam em absoluto estado de miséria frente aos bem-nascidos franceses, davam um recado: não vão mais tolerar isso. E partiram para a ignorância pura e simples. Índices de desemprego na inacreditável faixa de 40% entre a população masculina de 15 a 25 anos de idade, salários até 10% menores em qualquer categoria, a quase ausência de benefícios sociais foram os temperos que vinham há muito alimentando essa camada de franceses excluídos. Eram, eles mesmos, tratados pelo ministro do interior da França, Nicolas Sarkozy, com o inadequado epíteto de ?escória?.
Não deu para evitar. O confronto entre aqueles que se auto-intitulam como ?cachorros dentro de casa? e a outra banda que simplesmente ignora suas necessidades caminha em gradativo recrudescimento, sem data para terminar. Única resposta oficial: repressão ? e, por tabela, mais caos. No limite, Paris e arredores se viram obrigados a declarar ?estado de emergência?, restringindo direitos civis, com busca e apreensões indiscriminadas e proibição de reuniões. Paris não era mais uma festa, como um dia sonhou o escritor americano Ernest Hemingway. Nem Paris, nem Nice, nem Cannes, nada na Costa Azul, para a perplexidade dos que sonharam com suas localidades mágicas. E a questão que se apresenta ao mundo global: se até a França sucumbiu aos efeitos da desigualdade econômica e social, o que vai restar?
Já se sabe o quanto é fácil iniciar a desordem. Os tumultos que levaram a duas semanas ininterruptas de crise social na França, com a queima nas madrugadas de 6 mil veículos e a prisão de 1,5 mil jovens, tiveram início a partir da morte de dois deles. Perseguidos pela polícia em Clichy-sous-Bois, perto de Paris, eles tentaram pular um muro e morreram eletrocutados. Os gendarmes negam a perseguição, mas entre a massa excluída ninguém acreditou neles. A revanche teve início e, na semana passada, já se irradiava para fora do país. Carros foram incendiados na Bélgica, a Espanha entrou em regime de atenção e, na Inglaterra, o primeiro-ministro Tony Blair manifestou oficialmente sua preocupação. Os jovens imigrantes franceses estão mostrando o quanto é fácil inflamar a Europa. Toma-se nas mãos uma garrafa de cerveja vazia, coloca-se gasolina, acende-se um pavio e basta lançar. Na segunda 7, quando as labaredas ardiam forte na França, o primeiro-ministro Dominique de Villepin desencavou uma legislação da década de 1950, usada nas antigas colônias do país. Era o estado de emergência. Mesmo assim, não havia garantia de que a violência seria refreada. Cogitava-se acionar o exército e, como medida estruturante, acenou-se, somente, com a possibilidade de contratar mais funcionários públicos entre os imigrantes. Muito pouco. ?Queremos trabalhar, fazer esportes e nos divertir como todo jovem de Paris?, disse um dos revoltosos, resumindo uma das equações mais complexas do nosso tempo.