“Mas só depois de ganhar.” Luiz Inácio Lula da Silva deixava uma sala onde estava reunido com o alto comando do Partido dos Trabalhadores, mas dirigia-se a alguém do lado de dentro. Era a tarde de quarta-feira 2, véspera do derradeiro debate na TV entre os quatro candidatos à Presidência, e a frase de Lula, apesar de solta no ar, revelava a preocupação na reta final da mais bem-sucedida campanha de sua já longa carreira política: não deixar que a euforia, mãe do relaxamento nesses casos, tomasse conta do ambiente. A advertência de Lula podia ter uma dose de humildade, cautela ou até pragmatismo.

Mas quem entrasse no comitê da campanha, um enorme edifício no bairro da Vila Mariana, São Paulo, nos dias anteriores ao primeiro turno, notaria a intensa mobilização da militância petista para decidir a eleição logo no domingo 6. A ?arrancada final? tinha duas fortes motivações. A primeira era liquidar a parada o quanto antes e evitar o segundo turno, uma aposta sempre arriscada. A segunda era evitar que a onda de estabilidade da economia se transformasse em um vagalhão nas três semanas que separam os dois escrutínios. Havia, assim, dois PTs trabalhando simultaneamente nas últimas semanas da mais emocionante eleição presidencial da história republicana. Um deles conduzia a campanha, dava entrevistas à imprensa, promovia comícios gigantescos e organizava diversos encontros. O outro trabalhava silenciosamente, distante dos holofotes da imprensa, e sua função era articular apoios junto a políticos e empresários, sondar possíveis ocupantes de ministérios e cargos estratégicos e desenhar o organograma de um governo que parecia cada vez mais próximo. Lula tinha compromissos nas duas agendas. Alternava passeatas com reuniões a portas fechadas com os mais legítimos representantes do capital. O que se via em qualquer uma dessas ocasiões era um Lula desenvolto, bem humorado e seguro de suas opiniões. Com a mesma determinação cumprimentou operários de macacão nas portas do sindicato em São Bernardo do Campo e discutiu temas econômicos com empresários. ?Lula demonstrou, sobretudo nos últimos momentos, que seu lema é o diálogo entre capital e trabalho?, diz o candidato a vice-presidente José de Alencar. A elaboração dessa agenda foi a pauta de uma reunião ocorrida duas semanas antes do primeiro turno. O grupo era formado por Lula e cerca de 10 de seus mais importantes colaboradores, como José Dirceu, Antônio Palocci, Guido Mantega e Luiz Gushiken. O encontro se estendeu por quatro horas e havia um clima de otimismo mas de certa tensão pela proximidade do pleito. O objetivo era traçar a estratégia da reta final da campanha. Um capítulo especial foi dedicado ao relacionamento com os empresários. ?Eles não garantem votos, mas podem tirá-los?, disse um dos participantes durante o encontro. ?Precisamos conversar e evitar declarações alarmantes por parte deles.?

Uma força-tarefa foi criada. Mantega foi encarregado de falar com banqueiros. Luís Marinho, candidato a vice-governador de São Paulo, falaria com executivos da indústria automobilística. Os frutos foram colhidos já nos dias seguintes. Na sexta-feira 27, Lula sentou-se com Walter Wieland, presidente da General Motors e um dos poucos executivos do setor que não conhecia pessoalmente. Numa sala de reuniões de um hotel em São Paulo, Lula estava mais à vontade do que nunca. Contou ?causos? sobre pescaria e seu passado nas portas das montadoras. O encontro, cuja duração seria de 30 minutos, estendeu-se por 1h15. Wieland escutou o que gostaria de escutar ? possibilidade de queda nos juros e apoio às exportações ? e saiu de lá com uma boa impressão do candidato petista. O tom foi o mesmo da reunião com Lázaro de Mello Brandão, do Bradesco. Ali, Lula ouviu perguntas sobre a possível manutenção de Armínio Fraga no comando da instituição. É um assunto recorrente e Lula, em geral, lança mão de uma mesma resposta protocolar. ?Nada tenho contra o Armínio. Mas há no País várias outras pessoas capazes de comandar o BC.? Nos últimos dias, porém, a frase foi seguida por uma manifestação mais forte: ?A verdade é que Armínio não está dando conta do recado, pois o dólar chegou perto dos R$ 4.?

O caminho rumo às elites empresariais foi pavimentado ao longo dos últimos 18 meses. Houve encontros históricos, como na Febraban e na Bovespa. Em maio, poucos dias antes do encontro dos candidatos com Fernando Henrique, Lula convocou 20 empresários para uma reunião no Hotel Mercure, em São Paulo. Depois de rápida introdução, o petista fez a pergunta que nortearia o encontro: ?O que os senhores gostariam de falar ao presidente em uma ocasião como essa?? A conversa se prolongou por três horas. A catequização rendeu ao PT diversas conversões na reta final. A declaração de voto do empresário Eugênio Staub foi uma espécie de sinal verde para uma avalanche de declarações favoráveis a Lula. Até então, Staub era considerado fiel eleitor de José Serra. ?O PSDB não gosta de empresários. Sua gestão econômica foi irresponsável?, afirma Staub. A grande surpresa, porém, ficou reservada para a segunda 30. Em palestra em Washington, o banqueiro Roberto Setubal, dono do Itaú, saiu em defesa de um eventual governo Lula. ?A transição será mais tranqüila do que o mercado imagina?, disse ele, diante de uma platéia estupefata. ?O PT não governará sozinho e o PSDB é um aliado natural.?

A frase é uma boa pista sobre as possíveis alianças políticas costuradas pelo PT em caso de vitória. Afinal, nem mesmo nos momentos mais tensos da campanha, o partido fechou os canais que o ligavam ao Palácio do Planalto. Representantes do partido mantêm conversas com interlocutores de todos os ministérios em torno de uma infinidade de temas, cujo conjunto foi batizado de Agenda 100. Na reunião para preparar a reta final da campanha, José Dirceu ficou encarregado de aprofundar os contatos que já vinha mantendo com Fernando Henrique. Quase diariamente, os dois trocam telefonemas e informações. Dirceu é voz ativa nas mais sigilosas e restritas conversas que ocorrem nos últimos dias no partido. Nelas, discute-se os possíveis nomes que podem compor o eventual governo petista. As maiores atenções voltavam-se para a área econômica. Há aqueles que querem nomes sem a carteirinha do PT para comandar o Ministério da Fazenda e o Banco Central. Paulo Vieira da Cunha, do Lehman Brothers, Henri Phillipe Reichstul, ex-presidente da Petrobras, e Henrique Meirelles, ex-presidente mundial do Fleet Boston, apareciam nas bolsas de apostas. Meirelles teria a simpatia de Dirceu. Os dois se conheceram em junho em almoço organizado pelo diplomata Marcos Troyjo, vice-presidente do Brazilinvest. Meirelles estava em dúvida se concorria ao Senado ou à Câmara de Deputados pelo PSDB de Goiás, sua terra natal. Dirceu recomendou a segunda hipótese. Hoje, Meirelles aparece nas pesquisas como um dos três deputados mais votados do Estado. O encontro terminou em clima de grande empatia entre os dois.

 

Um mês depois, Troyjo organizou a visita de Dirceu aos principais bancos de investimentos americanos. O chefe de Troyjo, o empresário Mário Garnero, controlador do Brazilinvest, é outro nome freqüente nas listas de ministeriáveis. Dono de uma agenda na qual brilham nomes como de George Bush, o pai, Garnero, um dos mais bem relacionados empresários no mundo de negócios internacional, é cotado para o Itamaraty ou para a embaixada brasileira em Washington.

Antes do anúncio dos nomes, porém, Antônio Palocci terá de concluir uma tarefa na qual mergulhou recentemente: o desenho da estrutura de uma eventual governo petista. Palocci sequer confirma a existência do trabalho, mas no comitê de Lula comenta-se que as mudanças seriam profundas. As pastas de Minas e Energia, Comunicações e Transportes seriam reunidos em um único ministério, o da Infra-estrutura, modelo já utilizado durante a gestão de Fernando Collor. Bancos estatais, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, assumiriam papel mais voltado para o fomento e seriam deslocados da Fazenda para o Desenvolvimento. Antes de transformar o esboço em desenho definitivo, Lula quer discuti-lo com representantes da sociedade, inclusive empresários e assim reforçar o lema da campanha: a união do capital com o trabalho, objetivo de uma revolução feita com palavras e diálogo.