A forma como as pessoas consomem audiovisual mudou muito nos últimos anos, seja de forma impositiva, com a pandemia, ou com o avanço da tecnologia e das plataformas de streaming. Endereçando essa questão, a O2 Play, distribuidora do Grupo O2, que tem como sócios os diretores Paulo Morelli e Fernando Meirelles e a produtora Andrea Barata Ribeiro, escala uma estratégia que combina a experiência do cinema com a acessibilidade do streaming, ao realizar parcerias com plataformas para disponibilizar produções autorais e cinema de arte nas telas grandes. Com dez anos de atuação, a distribuidora já lançou mais de 80 filmes nos cinemas. Segundo o diretor da O2 Play, Igor Kupstas, “uma das coisas que eu mais quero fazer é envelopar essa experiência em filmes que mudam a vida das pessoas.”

Como a diversidade de streamings mudou a distribuição de filmes?
Em 2020, começo de 2021, tive alguns licenciamentos muito bons, porque os streamings estavam abrindo e queriam conteúdo, o que ajudou a companhia a vender filmes com preço mais alto devido à demanda. Mas logo depois, na segunda metade de 2021, os streamings também retraíram um pouco, digerindo melhor o que compraram. Os streamings tentaram no começo ter algo exclusivo e com diversidade. Forçaram muito a quebra de janela na tentativa de ter algo que não vai para o cinema ou que vai logo para a plataforma, enquanto hoje as peças estão voltando um pouco mais ao lugar. Alguma janela é desejável. O cinema é importante e dá resultado.

Com o fim da pandemia, qual é o papel e a relevância do cinema tradicional?
A gente ainda vai precisar de algum tempo e de muita pesquisa para entender, de verdade, o que está acontecendo com esse hábito de ir ao cinema. O que a gente entende é que as pessoas tendem a ir já sabendo o que querem ver. O cinema perdeu aquele espaço de descoberta. Para aqueles filmes que não acontecem, ele está muito cruel, está muito difícil seguir em cartaz, porque tem muita competição. Isso piorou muito pós-pandemia.

Como fica e a relação da audiência do streaming e do cinema e a concorrência entre as duas plataformas?
Aftersun foi um fenômeno, pelo menos, para o circuito de artes. Depois que ele estreou na Mubi, cresceu na bilheteria. Isso é algo raríssimo. Hoje o público quer a experiência. Eu não vejo a entrada do filme na Mubi como algo que mate o filme no cinema, acho que em certos casos pode até ajudar. Mas isso vale para esses filmes muito especiais. Para outros filmes vamos ter algo mais nichado. Tem uma geração de fãs de cinema de arte, que tem uma educação diferente em relação às janelas. Ela acessa o streaming a qualquer momento no bolso, o que é incrível, mas também está descobrindo que só o acesso não é tudo quando se fala de cinema.

Qual é a capilaridade das salas de cinema para filmes de arte?
A gente sempre conversa com os grandes grupos exibidores quando a gente entende que o filme faz sentido para eles, porque às vezes o público não coincide com o momento. Eu não sei se hoje faz sentido esses filmes tentarem forçar além do nicho. Da nossa parte o desejo é sempre levar ao maior número possível, mas a estratégia comercial tem que ser do nicho. Acho que não cabe um filme fechado tentar abrir demais. A tendência é ser prejuízo para todo mundo.

Como é feita a promoção para levar esse público para as salas de cinema?
Temos tentado realçar a ideia da experiência na sala de cinema. Para Aftersun fizemos uma pré-estreia em São Paulo com a distribuição de brindes. No Crimes of the Future, fizemos uma pré-estreia com a presença do Roberto Sadovski (crítico) na qual falamos um pouco sobre o David Cronenberg (diretor do filme). Tentamos procurar coisas que saiam do comum, realçando a experiência. Uma das coisas que eu mais quero fazer é envelopar essa experiência em filmes que mudam a vida das pessoas, filmes importantes que às vezes quando a gente lança de uma forma tradicional se perdem nas salas ou não chegam ao público.

O modelo de experiência já foi aplicado em outra situação?
A gente fez um pouco isso com a mostra Amazônia no ano passado, com um filme chamado O Território e com Segredos do Putumayo, que é um documentário com o Stephen Rea, ator irlandês. O trouxemos para uma sessão de debate. Os produtores do filme O Território também estiveram numa sessão debate, a gente teve a honra de ter o João Moreira Salles fazendo um debate muito qualificado com a presença de pessoas das aldeias que estiveram no filme. Então para mim essas são sessões memoráveis. Acho que quem gosta de cinema, quem vê isso como algo que importa, sabe que é um grande evento.

O modelo de experiência cria uma lógica diferente de consumo, não tão pautada na velocidade. O público entende e aceita isso?
A gente está no mundo em que tudo pode. Então, se você quiser que o seu único consumo audiovisual seja o TikTok, vá em frente. Você vai ter horas de recortes de 15 segundos no teu cérebro. Mas também tem espaço para uma reflexão um pouco mais profunda. Quando a gente fala sobre os dois documentários sobre a Amazônia, não é algo que você passa no feed, ou surfando no streaming e vê um pouquinho do trailer e entende. É uma refeição completa. Nem tudo pode ser fast food.

Como monetizar o modelo de experiência?
Esse é o meu desafio hoje. Porque o fast food cresceu e é muito atraente. Mas será que dando um contexto para esse conteúdo diferente a gente também não dá um valor diferente? Acho que são filmes que podem mudar o mundo e fazer história. Não sei o quanto um vídeo simples fica na memória da humanidade. Quero ter filmes comerciais e lançar coisas maiores e ter alguns filmes que talvez comercialmente sejam muito pequenos, mas quero envelopar muito bem. Ter boas refeições.

Há diferença entre a distribuição de produções estrangeiras e nacionais?
Sem dúvida nenhuma é menos trabalhoso para nós ter um filme internacional que já tem muitos agentes trabalhando para esse filme crescer. Um filme brasileiro de ficção que não tem tudo isso é muito mais complexo. Vou lançar agora em maio O Homem Cordial, filme que esteve no Festival de Gramado. Nós ganhamos depois de muito tempo e paciência um dinheiro do fundo setorial para investir na campanha, temos em torno de R$ 300 mil para lançar esse filme. Isso me dá condição de comprar mídia, de ter uma equipe, de fazer assessoria de imprensa, de fazer ativações especiais. É tudo uma construção.

Como você vê o futuro do audiovisual?
Depois de tempos muito difíceis de pandemia e incertezas de apoio à política pública cultural, estamos ousando ser otimistas e isso está sendo muito bom. Tem alguns editais novos sendo publicados pela Ancine, que prometeu investimentos no setor neste ano. É claro que o dinheiro que vai sair este ano para produção, talvez só chegue no cinema em 2025, mas por isso que eu me digo otimista. Porque se depois de um período de escassez a gente está em uma fase boa, com mais investimentos em produção, a ideia é de que a distribuição cresça em um ou dois anos.