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Sentado na varanda de uma mansão na Península dos Ministros do Lago Sul de Brasília, o bunker em que se refugiou nos últimos vinte dias, Daniel Valente Dantas tira o paletó e afrouxa a sua gravata. Bem mais magro do que de costume, ele começa a discorrer sobre as entranhas da República na tarde da quinta-feira 22. A voz é mansa como a de um monge. As frases são pausadas. Seu raciocínio vem repleto de silogismos e citações de São Tomás ? a quem só chama, com certa intimidade, de Aquino.

?Sou do bem?, disse à DINHEIRO. Um dia antes, o banqueiro baiano, um dos empresários mais controvertidos do País, havia experimentado emoções fortes. Durate 12 horas, ele depôs numa sessão conjunta da CPMI dos Correios e da CPI do Mensalão. Foi chamado por alguns parlamentares de ?Lúcifer?, ?gênio do mal?, ?maior corruptor da história do País? e viu deputados se estapearem. Obrigado a se sentar numa cadeira dura, sem comer ou beber, respondeu 250 perguntas dos membros das comissões e chegou a sofrer um princípio de hipotermia. ?Não havia jantado na noite anterior e não tive tempo de tomar café no dia do depoimento?, revelou. O ataque mais duro, que deflagrou o pugilato entre tucanos e petistas, partiu da senadora Ideli Salvatti (PT-SC). ?O senhor é diabólico?, disparou Ideli. ?Se 10% do que dizem a seu respeito for verdade, o senhor já deveria estar preso?. Muitos dos pecados atribuídos a Dantas foram até impressos num dossiê apócrifo que era livremente distribuído aos parlamentares na véspera do depoimento. O cenário era de guerra, mas, ao fim e ao cabo, o banqueiro recebeu tratamento ameno dos parlamentares. Ele entrou tenso na CPI e saiu exausto, mas sentindo-se vitorioso. Assim como outros figurões que o antecederam, também Dantas emergiu do interrogatório do tamanho que entrara.

Mas o que fez deste banqueiro de 50 anos um homem tão controvertido? Poucos empresários brasileiros conseguiram amealhar tanto dinheiro em tão pouco tempo ? seu banco de investimento, criado há menos de 20 anos, administra ativos de US$ 8 bilhões. Mais raros ainda são aqueles que se envolveram em confusões societárias tão sangrentas. Dantas, que tem fama de frio e impiedoso, foi o único que conseguiu construir seu formidável poder através de uma complexa engenharia que lhe dá o controle de empresas nas quais a maior parte do capital vem de terceiros: o Citibank e os fundos de pensão, ex-parceiros que hoje o juram de morte. ?Estruturas desse tipo são comuns no mundo inteiro?, defende-se. ?Só venho sendo atacado porque cuido de um cofre valioso e as paredes que o protegem são finas?. Sérgio Rosa, o presidente do Previ, fundo de pensão do Banco do Brasil, tem opinião formada sobre o adversário: ?Ele é menos brilhante do que obsessivo?, diz a amigos. A principal característica de Dantas, segundo Rosa, é o empenho em estudar os inimigos, munindo-se de informações que permitam ?ataques laterais?. Na semana passada, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Edson Vidigal, acusava o banqueiro de estar por trás de denúncias contra ele na imprensa. Seria, diz Vidigal, uma retribuição por uma sentença contrária ao Opportunity. ?Me atribuem coisas que não sou capaz de fazer?, rebate Dantas.

A ascensão meteórica de Dantas começou nos anos 80, quando foi apontado como aluno prodígio pelo ex-ministro Mário Henrique Simonsen. Tal ligação o aproximou de John Reed, homem do Citibank que acompanhava a renegociação da dívida externa brasileira. Naquele momento, Dantas surgia como financista talentoso, a quem se previa sucesso no mercado financeiro, mas jamais o papel de protagonista no maior evento dos negócios no Brasil: a privatização das telecomunicações, em 1998. A este posto o banqueiro foi guindado numa manobra arquitetada dentro do próprio governo, o vendedor das teles. Para acirrar a concorrência e obter melhor preço pelos lotes oferecidos, o então presidente do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros, colocou em campo o gigantesco capital dos fundos de pensão. Amarrou associações a influentes grupos nacionais em consórcios e lançou-os à disputa. A idéia inicial era de que esses consórcios fossem figurantes, com lances que ajudassem a alavancar ofertas de concorrentes estrangeiros, tidos como favoritos. Mas a manobra fugiu ao controle. Dois dos consórcios que tinham os fundos como sócios minoritários arremataram áreas importantes. Um deles tinha Dantas à frente e ficou com a Brasil Telecom adquirida em conjunto com os fundos, o Citi e a Telecom Italia. Foi aí que ficou demonstrada a capacidade do banqueiro em vislumbrar oportunidades, atrair investidores com caixa alto e costurar acordos que lhe davam controle absoluto sobre as companhias. A estratégia de Dantas passava por um profundo conhecimento dos bastidores do poder. Para obtê-los, levou para o Opportunity quadros como Pérsio Arida, um ex-presidente do Banco Central, e Elena Landau, a ex-diretora do BNDES que respondia pela área de privatizações. Até hoje, um de seus principais amigos e aliados é o advogado Luiz Octavio da Motta Veiga, que presidiu a Petrobras no governo Collor. Tais relações renderam um questionamento específico na sessão da CPI da semana passada: ?Como o senhor pode dizer que construiu suas empresas sem influência política, tendo trabalhado com essas pessoas??, indagou o deputado Jorge Bittar (PT-RJ).

A engenhosidade dos contratos formulados por Dantas faz par com sua vocação para os litígios. Consórcios como o que arrematou a Brasil Telecom geralmente são feitos com planejamento de longo prazo. O casamento do Opportunity com seus sócios na empresa, no entanto, acabou em divórcio precoce. Em 2003, os fundos de pensão o destituíram da gestão de seus recursos. Em março deste ano, foi a vez do Citibank, que abriu uma ação indenizatória de US$ 300 milhões. Sem o suporte dos antigos aliados, Dantas fechou um acordo com os italianos, pelo qual poderá receber R$ 1,2 bilhão. Nesta semana, na sexta-feira 30, os fundos e o Citi, que também negociam a venda de suas ações para a Telecom Italia, tentarão realizar uma assembléia para alijar o Opportunity dos negócios. ?A Petros investiu em 1998, em valor corrigido pela inflação, R$ 90 milhões. Hoje, estes investimentos estão valorados em R$ 47 milhões. Dantas é um mau gestor?, acusa Wagner Pinheiro, o presidente do fundo de pensão da Petrobras, o Petros. O banqueiro diz que os fundos atuam para transferir o controle da Brasil Telecom para a Telemar, outra concessionária de telefonia. ?Usam a defesa dos aposentados como manto retórico para defender interesse privado?, diz.

Seja como for, o fato é que o combate ao poder do Opportunity, que começara no governo Fernando Henrique, chegou ao auge no governo Lula. O banqueiro diz que afastá-lo das telefônicas converteu-se em prioridade federal. ?Era uma fixação, um objeto de desejo?, confirma o senador Heráclito Fortes (PFL-PI). Tal tarefa seria capitaneada pelo ex-ministro Luiz Gushiken, graças ao seu poder de influência sobre os fundos de pensão. Nos momentos mais dramáticos desse confronto, Dantas foi acusado de espionagem, em razão do caso Kroll, e teve sua prisão pedida pela Polícia Federal em diversas ocasiões. Por trás disso, Dantas vê Gushiken e os petistas. O ex-ministro nega a situação por completo. Na semana passada, depois do depoimento de Dantas, ele insistia em que os conflitos com o banqueiro começaram ainda no governo FHC e seriam reflexo do desejo legítimo dos fundos de retomar o controle sobre seus bilionários investimentos ? que, segundo Gushiken, Dantas teria açambarcado indevidamente. De acordo com essa visão, Dantas desfrutaria de um poder desproporcional aos seus investimentos, que teria sido obtido graças a sua influência sobre governos anteriores. Impassível, o banqueiro se disse perseguido não só pelos petistas, como também pelos tucanos. ?Tudo começou quando quiseram nos obrigar a pagar mais pela Companhia Riograndense de Telecomunicações?, revela. ?Depois disso, como nós tentamos resistir, passaram a achar que não servíamos mais?. O caso rumoroso da CRT aconteceu em 2001. Naquele ano, a empresa foi vendida por US$ 800 milhões, quando o preço justo, segundo o Opportunity, seria de US$ 550 milhões.

Após anos de confusões e encrencas, o banqueiro baiano de olhos azuis, a quem os inimigos chamam de Frank Sinatra, já prepara sua retirada. ?Saio da telefonia e não quero mais me envolver com governos?, diz. Bisneto de um industrial baiano, Dantas foi criado à moda vitoriana pela avó, que vivera na Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. ?Sempre fui educado para trabalhar, trabalhar e trabalhar?, diz. Seu mantra é uma frase de Benjamin Franklin, um dos pais fundadores da democracia americana. O lema diz ?industry and frugality?, ou seja, labor árduo e frugalidade, o que ele tenta seguir na vida prática. Vegetariano, Dantas é tido como um tipo até certo ponto estranho pelos amigos. Embora bilionário, usa apenas um modelo de terno escuro, com a mesma gravata azul. Varia apenas as camisas, ora brancas, ora azuis. ?Ele poderia viver com muito pouco?, espanta-se o investidor Naji Nahas, que negociou, pela Telecom Italia, a compra das ações do Opportunity na Brasil Telecom. Uma de suas manias é convencer os amigos de que é possível viajar sem malas, qualquer que seja o destino e a duração da viagem. ?O segredo é usar um sapato só e entrar no avião já de terno?, ensina. Empolgado, interrompe a entrevista, vai ao quarto e retorna com uma camisa, dobrada de maneira especial, com a gola ao contrário. ?Assim cabem mais na mala?, diz. E a decisão de parar de reduzir o consumo de carnes veio há um ano, por recomendação de um cardiologista. Em vez de apenas reduzir, Dantas as eliminou do cardápio. Sendo assim, por que tanto dinheiro? Por que tanta disputa? ?Pelo prazer do processo e pela responsabilidade de fazer a coisa certa?, ele mesmo responde.

No dia seguinte ao seu depoimento, Dantas não parecia estar particularmente incomodado com os ataques que havia sofrido. ?Alguns parlamentares tinham dúvidas sinceras; outros encenavam seus papéis?, diz ele. ?Olhei bem nos olhos deles e não senti muita rejeição?. O fato é que, com o depoimento, o banqueiro acabou no lucro. ?Para ele foi bom, porque baixou a fumaça que havia em torno do personagem?, disse à DINHEIRO o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP). ?Para a CPI, de pouco valeu?. Outro parlamentar, José Carlos Aleluia (PFL-BA), foi até irônico. ?Havia um desequilíbrio de forças?, disse ele. ?Enquanto o depoente tem um QI de 140, o dos parlamentares é bem mais baixo?. A principal dúvida dos parlamentares dizia respeito aos gastos de R$ 145 milhões da Telemig e da Amazônia Celular com as agências do publicitário Marcos Valério. ?Foram gastos só de publicidade, que nada têm a ver com o mensalão?, disse Dantas, que apontou uma incoerência na acusação. ?Ninguém paga sem ser favorecido?.

Havia, porém, uma outra tese na CPMI. Mesmo que não estivesse corrompendo o governo para obter favores, ele poderia estar sendo achacado para manter seu poder de influência sobre os fundos de pensão. A ancorar tal conjectura, a suspeita de que o antigo núcleo duro do governo Lula estivesse dividido. De um lado, Luiz Gushiken, implacável na luta contra Dantas. De outro, José Dirceu, mais flexível aos seus apelos. Dantas também refutou a tese do achaque. ?Dirceu me disse apenas que procurasse o Cássio Casseb, ex-presidente do Banco do Brasil, para resolver o problema. E o Casseb queria que renunciássemos aos nossos direitos?. Outra conseqüência do depoimento de Dantas é a abertura de novos focos de investigação pela CPMI. ?Não há como não convocarmos o Casseb?, diz o deputado Faria de Sá. ?Havia dois esquemas: o do Gushiken e o do Dirceu?, disse o deputado Eduardo Paes (PSDB-RJ), que protagonizou a briga com Ideli Salvatti. Naquele momento, Dantas não conseguiu conter um leve sorriso, que escapou pelo canto de sua boca. Um dia depois, comparava-se a Winston Churchill, primeiro-ministro inglês que resistiu à invasão nazista. ?A França se entregou, Churchill resistiu?, disse. E aonde Daniel Dantas pretende chegar? ?Aonde um jornalista quer chegar quando tenta fazer uma boa reportagem??, devolve a pergunta. ?A lugar nenhum. Vocês querem apenas fazer uma boa matéria. E depois outra, e mais outra, e mais outra…?. Daniel Dantas sorri. Sim, o predador também sorri de vez em quando.

Daniel Dantas na opinião de Daniel Dantas
Na quinta 22, o banqueiro concedeu uma entrevista exclusiva
à DINHEIRO. ?Não sou gênio, nem do mal?, disse.

DINHEIRO ? O sr. foi chamado na CPI de ?Lúcifer?, ?gênio do mal? e ?maior corruptor da história do País?. Isso o abala?
DANIEL DANTAS
? Quem convive comigo não tem essa impressão. Pelo contrário. E fora do meu círculo de amizades, as pessoas experientes sabem que essa imagem é distorcida, criada para influenciar decisões judiciais. Nunca percebi nenhum olhar de reprovação.

A imagem ruim influiu na Justiça?
O juiz é treinado para julgar apenas o direito. Mas é muito difícil separar o direito do bem e do mal. Quando uma das partes passa a encarnar o mal, isso influi na decisão.

Nessa disputa pelo controle da Brasil Telecom não há nenhuma questão ética?
Não, só há interesses comerciais. O controle da empresa vale muito dinheiro. E só houve um desequilíbrio na disputa quando os governos decidiram agir em favor de algumas das partes.

Muitos no governo atual o vêem como homem dos tucanos.
Quando os tucanos estavam no poder, eu tinha era explicar que eu não era homem do Antônio Carlos Magalhães e do PFL. Agora, dizem que sou tucano e anti-PT. No próximo governo, vão me chamar de petista. Só não fui destruído pelo governo atual graças a muita tenacidade.

O sr. se considera perseguido?
Basta ver a tonelada de acusações na imprensa a meu respeito. No mundo empresarial, nós decidimos em cima de indícios. Basta um sentimento bom ou ruim para ir para um lado ou outro. No mundo jurídico, você precisa de provas. Mas isso demora muito. A imprensa fica no meio do caminho. O julgamento é feito com base em algo que pode parecer um indício mas não tem a consistência de uma prova.

É indício o fato de suas empresas terem depositado R$ 145 milhões nas agências do publicitário Marcos Valério?
É muito incoerência achar que eu poderia pagar o mensalão. A Telemig é uma empresa de varejo, que precisa de publicidade. Uma pessoa bem intencionada veria quanto a Vivo ou a Claro gastam e analisaria se o gasto da Telemig é desproporcional. Se fosse, poderia avaliar que uma eventual sobra teria outra finalidade. Mas o fato é que a Telemig gasta menos em propaganda e tem mais participação de mercado. Outra coisa: na corrupção, você tem que ter um pagamento e um benefício. No nosso caso, não há vestígio de benefício. Se o gasto da Telemig tivesse ido para o mensalão, a frase coerente seria: ‘Foi a maior extorsão da história’.

E foi? Houve achaque?
Não. Não nos pediram dinheiro.

Mas se diz que o governo estava dividido. José Dirceu o ajudou?
Não. Eu tive uma reunião com ele, que me mandou procurar o Cássio Casseb, então presidente do Banco do Brasil. O Casseb disse que nós teríamos que renunciar a todos os nossos direitos.

Como o sr. avalia seu depoimento?
A verdade começou a vir para a superfície. Mas reconheço que é mais fácil provar que não houve corrupção do que provar que não houve achaque. Na corrupção, tem que ter a vantagem.

Algo como a Land Rover do PT?
É, nem nosso maior inimigo conseguiu mostrar uma vírgula de benefício que eu tenha tido do PT. Quando a tese da corrupção caiu por falta de coerência, surgiu a conjectura do achaque. Só que para eu estar sendo achacado, o fenômeno tinha parar. Senão, era um perigo.

Como assim, um perigo?
Achaque permanente? Mensal? Onde já se viu? Isso não existe.

E a imagem do empresário que não consegue manter uma sociedade duradoura? Ela o perturba?
De maneira alguma. Veja, os italianos, os canadenses, os fundos de pensão tentaram tomar o controle. Eu uso a imagem do avião. Fui contratado para pilotar de um ponto a outro. Um passageiro não pode, no meio do vôo, seqüestrar o avião e mudar o destino à revelia dos outros.

O governo justifica suas ações, alegando a defesa do interesse comum ou do patrimônio dos fundos de pensão.
Se fosse uma ação contra vários, tudo bem. Mas contra um? Já houve perseguições coletivas ao longo da história. A Alemanha, alegando um bem coletivo, perseguiu os judeus. Mas não perseguiu só o Jacob.

Suas decisões, às vezes arriscadas, são racionais ou intuitivas?
A intuição precede. A razão vem depois para checar se aquela intuição cabe na realidade. São Tomás de Aquino dizia que a intuição é a forma mais sublime de inteligência. Ela é mais sofisticada, mais antiga.

E qual será o seu futuro depois dessa briga?
Nós nunca quisemos essa briga. Mas nunca nos acovardamos a ponto de entregarmos aquilo que o Cássio Casseb nos pediu.

E com quem fica a Brasil Telecom?
A Telecom Italia acaba comprando. Não vejo nenhuma outra alternativa.

E o sr. sai com R$ 1,2 bilhão no bolso?
O dinheiro é dos investidores do Opportunity. Vamos investir em algo.

Em que negócio?
Logo saberei.