07/08/2002 - 7:00
Na sociedade brasiliense, uma trajetória empresarial de sucesso tem grande valor. Conta muito mais, porém, a proximidade de um personagem com os principais círculos do poder. Quem consegue reunir as duas qualidades chega ao Olimpo nos salões da capital federal. É lá que se encontra José Lírio Ponte Aguiar. Dono de uma corretora imobiliária em Brasília, ele amealhou na última década um patrimônio contado na casa das dezenas de milhões de reais e impressiona a todos por sua carteira de clientes, repleta de figuras da primeira linha, do Palácio do Planalto ao Congresso Nacional. Seu prestígio pode ser medido pela freqüência nas festas que oferece em sua mansão no Lago Sul, devidamente acompanhadas pelo colunismo social local. Em pelo menos duas ocasiões, o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso foi recebido pelo anfitrião Lírio, assim como o senador Pedro Simon, os presidenciáveis José Serra, Ciro Gomes e Luiz Inácio Lula da Silva e os empresários Paulo Octávio e Wagner Canhedo. Lírio, aos 59 anos, é hoje também figura de proa no Rio de Janeiro. Uma foto sua estampa a capa da edição de julho da revista do exclusivo Jóquei Club carioca, na qual é apresentado como o ?campeão brasileiro em vitórias e prêmios?.
O corretor é o emergente do momento no Planalto, mas a exposição está lhe cobrando um alto preço. Em 22 de maio passado ele procurou, espontaneamente, a Procuradoria da República no Distrito Federal. Mais especificamente, o procurador da República Luiz Francisco Fernandes de Souza. Dizia ter informações de que estaria sendo alvo de uma investigação do Ministério Público Federal e dispôs-se a fazer, naquele mesmo momento, um depoimento ao procurador. A informação era correta. Souza e o colega Celso Antônio Três apuram há meses a origem do vistoso enriquecimento do empresário. Segundo os procuradores revelaram a DINHEIRO, há sete anos José Lírio tinha um patrimônio declarado de
R$ 500 mil. De lá para cá, o corretor comprou pelo menos 76 imóveis em seu próprio nome ? ou no de uma irmã aposentada ?, de acordo com pesquisa realizada pelo Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda. O valor total declarado nas escrituras, sem correções, é de exatos R$ 23.136.000,00. Há também sete veículos em seu nome, sendo três Mercedes e uma BMW. Ele é ainda um dos grandes criadores de cavalos de corrida do País. Possui 180 cavalos e mantém 128 cocheiras no Jóquei Club do Rio de Janeiro. Pelos cálculos de Souza e Três, seu patrimônio chega hoje à casa dos R$ 60 milhões.
José Lírio não renega seus feitos empresariais. No depoimento ao procurador Souza ? a que DINHEIRO teve acesso ? admitiu ter adquirido entre 80 e 100 imóveis nos últimos anos e explica como conseguiu amealhar tal patrimônio em período tão curto ? basicamente o período correspondente ao Plano Real. ?Basta considerar os seguintes fatos: não havia inflação comprometedora na década de 90. Desta forma, multiplicaram-se os negócios imobiliários?, afirma. Em entrevista à DINHEIRO, na quinta-feira 1º de agosto, disse que, em 1994, já possuía 58 imóveis, ?que valiam uns R$ 14 milhões?, embora não constem na sua declaração de bens daquele ano. ?No governo FHC, só comprei uns 40 imóveis e meu patrimônio, atualmente, não chega a R$ 25 milhões?, afirmou. Quanto ao fato de ter omitido informações à Receita Federal, as explicações constam no depoimento. ?No ano passado (…) foi até a Receita espontaneamente e pediu uma retificação nas suas declarações de Imposto de Renda e revelou-se devedor de cerca de um milhão de reais?. A dívida, diz, foi parcelada em 30 meses e está sendo paga. Assim, Lírio considera-se ?quite com a Receita?.
No ataque. O cearense José Lírio chegou a Brasília em 1961, calçando sandálias e carregando uma mala de papelão. E logo percebeu que o sucesso no centro do poder passava pela construção de uma eficiente rede de relacionamentos. ?Quem se encosta em cerca podre cai junto?, costuma dizer, a respeito de seu faro para escolher amigos poderosos. Sua ascensão, de fato, ocorre, no entanto, apenas a partir dos tempos da Assembléia Constituinte, em 1987. Ele organizava os jogos de futebol para congressistas na mansão do deputado Wigberto Vigão Tartucce. Um dos mais assíduos ?peladeiros? era o então senador José Richa ? fundador do PSDB e hoje na coordenação da campanha de José Serra ?, que caiu de encantos pelo corretor. Richa era sempre escalado no ataque. Aguardava a bola na ?banheira? e marcava de três a quatro gols por partida. A regra do impedimento não valia naqueles jogos. José Lírio, técnico do time, passava 90 minutos gritando: ?Joga a bola pro senador!?.
Sua entrada na sociedade carioca também tem episódios folclóricos. Ironizado por seus trajes (usa muito sapatos brancos e camisas de babalaô congolês), ele abriu portas circulando com uma amiga famosa, a ex-miss Brasil Marta Rocha. Hoje, já não precisa recorrer a artifícios. Na sexta-feira, 2 de agosto, véspera do Grande Prêmio Brasil de Turfe, ofereceria um churrasco para os sócios do Jóquei Club do Rio. ?Sou o cara mais querido da Gávea?, disse na semana passada à DINHEIRO. O turfe, afirmou aos procuradores, não lhe rende dinheiro, mas ajuda na rede de contatos. ?Cavalo é o vírus transmissor da amizade?, explicou.
Confiança. Foi o ex-senador Richa quem levou José Lírio para a intimidade da cúpula do PSDB. Apresentou-o a FHC, Serra, ao ex-governador paulista Mário Covas e ao ex-ministro Élcio Álvares. Agradável, Lírio acabou conquistando a amizade de vários deles. Covas, por exemplo, divertia-se tanto com ele que passou a ser seu hóspede na casa do Lago Sul sempre que ia a Brasília. O prefeito de Sobral, Cid Gomes, irmão do candidato Ciro Gomes, também. ?Ele costumava emprestar a casa ao PSDB e ao PMDB?, conta o senador Pedro Simon. ?Estive várias vezes lá em companhia do doutor Ulysses Guimarães. Lírio era muito amigo do Covas e do Richa, parecia um sujeito serviçal, mas do bem?, completa Simon. Para os dois tucanos, o corretor atuou como profissional. Para Covas, afirma ter comprado uma sala em Brasília. Já para Richa, foram negociações com dois imóveis. A imobiliária de Lírio prestou serviços, ainda, para as construtoras de dois outros empresários-políticos: o ex-deputado Sergio Naya e o ex-senador Luiz Estevão.
A filha de FHC, Luciana Cardoso, chegou a escolher Lírio como homem de confiança. ?Almoçávamos juntos regularmente?, conta Lírio à DINHEIRO. ?Mas não nos vemos há dois anos e meio, desde que lhe pedi uns favores e ela não pôde atender?, diz. A amizade propiciou negócios entre os dois. Em 21 de setembro de 1994, Luciana outorgou a Lírio uma procuração para vender dois apartamentos em Brasília e para ?comprar quaisquer imóveis nesta capital?. Pelo documento, lavrado no Cartório do 1º Ofício de Notas e Protesto do Distrito Federal, Luciana repassa ao corretor poderes que lhe haviam sido conferidos, em outra procuração, por seus pais, o então senador FHC e dona Ruth Cardoso. Ainda válido, de acordo com os procuradores Souza e Três, o papel é um dos trunfos do empresário. Um de seus amigos mais próximos, o empresário José Celso Gontijo, dono da Via Engenharia, contou à DINHEIRO tê-lo visto exibir a procuração a potenciais clientes para conquistar a sua confiança.
A rede de amizades de Lírio impressionou, da mesma forma, os representantes do Ministério Público. Chamou a atenção do procurador Luiz Francisco de Souza, por exemplo, uma transação imobiliária realizada pelo corretor e sua cliente Luciana Cardoso. Em seu depoimento, Lírio afirmou ter, de fato, vendido os dois imóveis pertencentes ao casal Cardoso. Em paralelo, comprou um apartamento de três quartos para a filha do presidente, onde ela mora. Como o dinheiro não foi suficiente para concluir a transação, Fernando Henrique teria completado com R$ 20 mil em espécie, ?auferidos com palestras?, esclareceu o corretor aos procuradores. O imóvel comprado para Luciana (onde ela vive até hoje) fica em um dos bons endereços da cidade, a Superquadra Sul 105, bloco E. O que intriga os procuradores é o fato de, em 1996, o corretor ter passado a escritura desse imóvel para seu próprio nome, recolhendo os devidos impostos e, apenas dois dias depois, ter repassado para o nome de Luciana, pagando novamente os tributos de transferência imobiliária. Por que essa triangulação? Segundo o depoimento do corretor, o imóvel estaria com problemas ?por ser proveniente de espólio?. Em 2000, Luciana comprou mais um apartamento, ao lado do anterior. Juntos, os dois imóveis têm área interna de 285 m2, com seis quartos e dois salões.
Surpresa. Insatisfeitos com o depoimento de José Lírio, Souza e Três procuram mais detalhes da operação. Eles revelaram à DINHEIRO que pretendem convocar Luciana Cardoso para dar explicações sobre a aquisição dos dois apartamentos, com base na Lei da Improbidade Administrativa, artigo 9, inciso VII. ?Por ser funcionária pública, Luciana Cardoso é obrigada a provar a origem lícita de seus bens?, disse o procurador Celso Três. ?Se não provar, os bens podem ser seqüestrados?. Luiz Francisco de Souza é ainda mais incisivo: ?Podemos pedir a quebra do sigilo bancário e o bloqueio de bens para impedir que ela se desfaça dos imóveis?. Designado para falar em nome da família Cardoso, José Lucena Dantas, chefe de gabinete da Presidência da República, disse à DINHEIRO na tarde da quinta-feira 1º de agosto que o Planalto vai aguardar a chegada da convocação do Ministério Público para se pronunciar sobre um eventual depoimento de Luciana Cardoso. Dantas afirmou que ?Luciana está surpresa com o fato de a procuração ainda estar válida? e que ela procuraria o cartório ainda na manhã da sexta-feira 2 para anulá-la. Sobre a compra do apartamento, disse que Luciana solicitou os serviços de Lírio porque, na época, com um filho recém-nascido, não queria envolver-se com a burocracia inerente ao mercado imobiliário. Luciana possui ainda outro apartamento vizinho. Foi adquirido, segundo Dantas, em 2000 por R$ 200 mil, sendo R$ 100 mil à vista e o restante financiado pela Caixa Econômica Federal. Os R$ 100 mil da entrada foram, segundo Dantas, emprestados pelo presidente Fernando Henrique (R$ 30 mil) e Paulo Henrique Cardoso (R$ 70 mil), irmão de Luciana. O financiamento ainda está sendo pago, com prestações mensais no valor de R$ 1.480 (valor de agosto de 2002).
Outros importantes parceiros e clientes de Lírio podem vir a ser convocados, de acordo com os procuradores. Vários deles foram citados em um novo depoimento colhido na semana passada por Souza e Três. Quem esteve no Ministério Público, na tarde da terça-feira 30, foi o empresário da construção Sebastião Valadares, que no passado realizou uma série de transações com o corretor mas hoje aparece na lista de seus desafetos. Os dois brigaram há um ano por causa de um negócio de terras. José Lírio deixou essa briga registrada em seu depoimento. Convidado para depor como testemunha, Valadares disse que José Lírio começou a ?ostentar riqueza sem origem explicável? a partir de 1995. Disse ainda que a riqueza foi crescendo ?na relação direta com a amizade? do corretor com o falecido governador Mário Covas. Segundo o depoimento de três horas ? a que DINHEIRO teve acesso com exclusividade ?, José Lírio ?intermediava negócios e lobbies? junto ao governo de São Paulo.
Doido por amigos. Os episódios relatados pelo empresário que mais chamaram a atenção dos procuradores envolvem a Vasp e a Via Engenharia, de Gontijo ? que mantém contratos para a construção de casas populares com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) do governo de São Paulo, e é sócia minoritária do consórcio AutoBan, concessionária que administra as rodovias estaduais paulistas Bandeirantes e Anhangüera. Sobre a Vasp, Valadares acusou José Lírio de ter intermediado a renegociação de uma dívida de R$ 900 milhões junto ao Banespa, ?dilatando a mais de 60 meses, com juros privilegiados e prazo de carência?. Procurado, o presidente da Vasp, Wagner Canhedo, não respondeu à DINHEIRO. Sobre a Via Engenharia, Valadares acusou José Lírio de receber comissões sobre o faturamento do pedágio da AutoBan. Valadares afirmou ainda que, em 1997, José Lírio teria adquirido quatro apartamentos da Via, com pagamento à vista e em espécie. ?Coincidentemente, nesta data, em São Paulo, a Via foi vencedora na licitação dos pedágios?, diz no depoimento.
DINHEIRO procurou nos cartórios os endereços indicados por Valadares. Encontrou quatro escrituras de apartamentos no bairro do Sudoeste, vendidos pela Via a José Lírio, todos com data de 4 de junho de 1999 (data da entrega das chaves), pagos à vista, no valor de R$ 400 mil a unidade. Gontijo, dono da Via, confirma a negociação. ?Vendi uns 20 apartamentos ao Lírio?, afirma. Mas garante jamais ter pago comissão ao amigo por qualquer transação envolvendo o governo de São Paulo. Lírio, por sua vez, orgulha-se de ter apresentado Gontijo a Covas ? ?Eles se conheceram na minha casa?, contou à DINHEIRO ? e admite ter intercedido, em nome da empreiteira, junto ao então governador em pelo menos uma ocasião, sem sucesso. Da mesma forma, Lírio confirma ter pedido a Covas, em nome de Canhedo, condições especiais para negociação de uma dívida da Vasp junto à Fazenda Estadual de São Paulo. ?Covas não fazia nada de errado, nem para a mãe dele?, diz. Procurada por DINHEIRO, Lila Covas, viúva do ex-governador, mandou dizer, através de um assessor: ?José Lírio é um amigo da família?. Para o corretor, esse é seu verdadeiro patrimônio. ?Sou doido por amigos?, diz.