Berlim, 15 de fevereiro de 2003. Mais de 500 mil pessoas, com faixas e cartazes contra a guerra, cruzam a porta de Brandemburgo no maior protesto pacifista da história da Alemanha. Entre eles, três ministros do gabinete do primeiro-ministro Gerhard Schröder. Depois a multidão dividiu-se pelos caminhos que partem do monumento, erguido para celebrar a vitória prussiana contra o exército napoleônico, e ocupou as ruas ao redor. Coladas a Brandemburgo estão a avenida Unter den Linden, sede dos principais bancos e seguradoras, e a Friedrich Straße, rua que abriga grifes famosas, como Gucci, Prada, Hugo Boss e a versão berlinense da Galerie Lafayette. Dali, a imagem refletida nas vitrines e nos grandes arranha-céus é de um país dinâmico, em pleno crescimento econômico. Porém, a apenas 15 minutos dessa Alemanha reluzente ficam os bairros de Neu Köln e Kreuzberg. Ali o que se vê é um país totalmente diferente ? e decadente. Neu Köln é o distrito alemão que mais abriga pessoas desempregadas que vivem às custas do Estado. Basta chegar à sede do Sozialamt, o serviço de proteção social, para dar de cara com um ambiente cinzento que se assemelha ao antigo mundo comunista. São dezenas de corredores e pequenos guichês ? um para cada letra do alfabeto ? onde, todos os dias, milhares de alemães esperam horas para receber pensões do Estado ou cadastrar seus nomes no sistema. Com 4,6 milhões de desempregados e o menor ritmo de crescimento em toda a Europa, a Alemanha, segunda potência industrial do mundo, é hoje um país em crise. Sua face saudável é a bandeira pacifista, que a colocou num campo oposto ao dos Estados Unidos e reforçou seu papel na geopolítica internacional. Mas a face doente é uma economia agonizante. ?Sem reformas profundas a Alemanha não voltará a crescer tão cedo?, disse à DINHEIRO Franz Josef Seidensticker, chefe do escritório da Bain & Co., uma das principais consultorias do mundo, em Munique. Entre 1995 e 2002, a média de expansão do PIB alemão foi de apenas 1,4%. No ano passado, mais de 37 mil empresas faliram ? o pior resultado em toda a Europa. E, em apenas dois anos, o valor de mercado das maiores corporações alemãs, que compoem o índice DAX, encolheu em 250 bilhões de euros ? o Neuer Markt, criado há seis anos para abrigar empresas de tecnologia, acaba de ser fechado melancolicamente.

O que Seidensticker e os outros líderes da comunidade empresarial pregam pode ser resumido em duas grandes iniciativas. A primeira é a reforma da Kündigungsschutz ? uma espécie de versão alemã da CLT, mas que oferece benefícios trabalhistas muito mais generosos. A segunda é a revisão do sistema de impostos, que financia o amplo sistema de proteção social com uma carga tributária próxima a 50% do PIB. Na Alemanha, quando uma pessoa fica sem trabalho, recebe primeiro um salário-desemprego, equivalente a 70% do valor ganho na ativa. Depois, caso não encontre nenhuma outra ocupação, ainda tem direito a um auxílio-desemprego. Num terceiro estágio, cai na malha da ajuda social. É por isso que, mesmo com uma economia estagnada, é ainda muito raro ver na Alemanha pessoas pedindo nas ruas. Mas esse modelo é, ao mesmo tempo, acusado de ser o principal responsável pelo desemprego ? próximo a 12%. ?Na Alemanha é arriscado contratar alguém porque é muito caro dispensar um funcionário?, conta Erik Bauer, dono de uma empresa de porte médio com 60 funcionários que faz a limpeza de edifícios em Stuttgart. As leis são tão rígidas que uma empresa com mais de seis funcionários só pode demitir com o consentimento da entidade que representa os empregados. Além disso, tem de comprovar a necessidade econômica do corte de pessoal. Na prática, o sistema acaba sendo generoso para uns e perverso para outros. Protege quem já está no mercado, mas prejudica quem quer entrar. O jornalista Alexander von Thoele conheceu bem os dois lados dessa moeda. Em 2001, quando deixou um emprego na DaimlerChrysler TV, que produz programas internos para todas as unidades do grupo, passou a receber uma ajuda mensal de 2,8 mil euros. O benefício durou um ano e meio. Depois, quando voltou a procurar um emprego, as portas se fecharam. ?Mandei mais de 200 currículos?, conta Von Thoele, que esteve prestes a ser chamado por uma empresa de tecnologia de Munique, mas recebeu um e-mail comunicando que não seria mais contratado em razão das incertezas econômicas e dos custos trabalhistas. Resultado: emigrou para a Suíça, onde trabalha numa das principais rádios do país. Hoje, apenas 30% dos jovens alemães têm esperança no futuro, segundo uma pesquisa do Allensbach Institute.

Ao lado de um problema trabalhista de solução quase impossível, a economia alemã foi duramente atingida pelos gastos da reunificação. Desde 1990, foram investidos mais de US$ 700 bilhões na parte oriental da Alemanha. Ainda assim, aquela região, que tinha 14,6 milhões de habitantes antes de ser incorporada ao capitalismo, hoje tem apenas 12 milhões. ?A mão-de-obra jovem e mais qualificada migrou para o lado ocidental?, conta o pesquisador Danilo von Sperling, que reside em Dresden, uma das principais cidades da parte oriental, onde conclui seu doutorado. Dresden recebeu nos últimos anos investimentos bilionários de empresas como Siemens, AMD e Volkswagen ? como a moderníssima fábrica transparente do novo modelo Phaeton. Ainda assim, o desemprego na Alemanha do Leste é duas vezes maior do que na parte ocidental. Um tom paradoxal ao problema é a questão demográfica. As projeções indicam que, mantido o ritmo atual de natalidade, dentro de 30 anos a Alemanha terá 20 milhões de habitantes a menos ? a população cairia de 82,5 milhões para 62,5 milhões. Haveria menos receitas e mais aposentados.

O país que deu o grande empurrão para que os países europeus ajustassem seus déficits e aderissem ao euro tem hoje os piores resultados fiscais do Velho Continente e os mais baixos indicadores de aceitação política. Hoje, apenas 30% aprovam o chanceler Schröder e seu partido social-democrata acaba de perder as eleições em duas províncias importantes: Hesse e a Baixa Saxônia. Sua grande cartada para retomar a popularidade é o pacifismo, uma vez que 89% dos alemães são contra a guerra ? o maior índice da Europa. ?A Alemanha era um gigante econômico, mas um anão diplomático?, avalia Danilo von Sperling. ?Hoje a economia vai mal, mas o país angariou a simpatia internacional e pode começar a ter um papel geopolítico de peso.? Ainda hoje, o governo americano mantém mais de 50 mil militares na Alemanha, comandados a partir das bases de Stuttgart. É uma herança da Segunda Guerra Mundial. Além disso, os Estados Unidos são o segundo parceiro comercial da Alemanha e têm um déficit anual com o país da ordem de US$ 25 bilhões por ano. Por tudo isso, a aposta de Schröder, ao contestar frontalmente a posição americana, dividiu a Alemanha. A imprensa conservadora, capitaneada por veículos como Die Zeit, Focus e Frankfurter Allgemeiner, elegeu Schröder como um alvo preferencial. Outras publicações, como Der Spiegel, o elogiam pela coragem e pela postura pacifista. O que os críticos apontam como o grande risco é a possibilidade de retaliações por parte dos Estados Unidos ? um fenômeno que já começou a acontecer. Há duas semanas, a agência de defesa americana cancelou a compra de US$ 36 milhões em tanques de guerra, que seriam fornecidos pela alemã KMW. ?Mesmo sem sanções diretas, os Estados Unidos podem insuflar internamente uma mentalidade antigermânica?, diz o consultor Franz Josef Seidensticker. ?E isso seria péssimo.?