A carta de demissão divulgada na terça-feira 11 pela ministra da Cultura, Marta Suplicy, pegou de surpresa os assessores mais graduados do Palácio do Planalto. Nem tanto pela sua saída, que já era esperada, mas pelas críticas à área econômica disparadas 12 horas após a presidenta Dilma Rousseff ter partido para uma viagem à Austrália, onde participaria de um encontro do G20. “Todos nós, brasileiros, desejamos, neste momento, que a senhora seja iluminada ao escolher sua nova equipe de trabalho, a começar por uma equipe econômica independente, experiente e comprovada, que resgate a confiança e credibilidade ao seu governo e que, acima de tudo, esteja comprometida com uma nova agenda de estabilidade e crescimento para o nosso país”, afirmou Marta.

O petardo deu voz a uma ala do PT, liderada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está insatisfeita com os rumos da economia. O incômodo com o novo governo Dilma, que ainda nem começou oficialmente, tem crescido à medida em que a presidenta contraria o seu discurso de campanha e abre o saco de maldades, com alta de juros, reajuste da gasolina e divulgação de dados negativos, sem deixar claro se a economia passará por ajustes estruturais. Na prática, a sorridente candidata Dilma Rousseff, exaltada na propaganda eleitoral, não existe mais.

A falta de credibilidade apontada pela senadora petista de São Paulo – Marta retomou o seu mandato no Senado Federal – ficou ainda mais acentuada na mesma terça-feira 11, quando a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, entregou ao Congresso um projeto alterando as regras do superávit primário previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Com a arrecadação crescendo menos do que os gastos, tornou-se impossível cumprir a meta fiscal prevista para este ano. No acumulado dos primeiros nove meses, o rombo é de R$ 15,2 bilhões para uma meta cheia, sem os descontos, de R$ 116 bilhões.

Analistas do mercado já alertavam há meses que seria impossível cumprir o esforço fiscal, mas foi somente na semana seguinte ao segundo turno que o secretário do Tesouro, Arno Augustin, admitiu que seria necessário alterar a lei. O que se esperava era que o governo reduzisse o superávit de 1,55% do PIB, o equivalente a R$ 81 bilhões após os descontos dos investimentos em obras de infraestrutura e das desonerações tributárias. O que aconteceu foi pior. Para a perplexidade de todos, o projeto levado ao Congresso pela ministra do Planejamento, Miriam Belchior, exibia uma manobra fiscal muito mais criativa que as adotadas nos últimos anos, quando o governo contabilizou empréstimos do Tesouro ao BNDES como crédito, antecipou receitas de dividendos das estatais e adiou pagamentos.

Em vez de alterar a meta, o governo criou um novo desconto que é maior que a própria meta. Somando as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e as desonerações da folha de pagamentos, o abatimento chega a R$ 130,4 bilhões, mais do que a economia prometida inicialmente, de R$ 116 bilhões. Na prática, o governo pode registrar um déficit e “festejar” o cumprimento da meta como se fosse um superávit. “Queremos fazer o melhor superávit primário possível, mas não temos como cravar uma meta no momento porque dependemos do comportamento da receita, que está errática neste ano”, disse a ministra aos integrantes da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional.

Entre os especialistas, a mudança foi recebida com estupefação. “Todo mundo sabia que a meta fiscal não seria cumprida, mas a maneira como eles fizeram foi totalmente inesperada”, diz o economista Felipe Salto, especialista em contas públicas da consultoria Tendências. “Não faz sentido deduzir as desonerações, já que é uma receita que não houve.” O baixo crescimento da economia mundial é a justificativa do governo para tentar “embe lezar” os números brasileiros. “Dos países do G-20, 17 têm déficit.

Nós não, nós estamos até numa situação um pouco melhor”, disse a presidenta em Doha, no Catar, a caminho da reunião de cúpula do G20, ao ser questionada se a mudança na LDO não evidenciava o fracasso da política fiscal. “Nós estamos ali no zero”, afirmou, lembrando que o Brasil tem uma das menores dívidas líquidas em relação ao PIB do mundo, de 35%. Na verdade, a dívida líquida, que caiu nos últimos dez anos, agora voltou a subir, e chegou a 35,9% do PIB, em setembro. A dívida bruta, que é a base de comparação utilizada internacionalmente, está em 61,7%.

“A meta de superávit era justamente para que a dívida fosse reduzida, agora virou uma coisa sem propósito”, diz Salto. Como o novo orçamento deve ser aprovado ainda neste ano para que o governo não incorra em crime de responsabilidade fiscal, a expectativa do Executivo era de que fosse aprovado rapidamente pelo Congresso. Na semana passada, não conseguiu. O relator, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), prometeu colocar seu relatório na pauta da Comissão na quarta-feira 19. A oposição já reclamou. Mas não é o único obstáculo. O governo também terá de convencer parte da base aliada, como o PMDB, que tem a segunda maior bancada tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado.

O senador Aécio Neves (PSDB-MG), candidato derrotado a presidente da República, já disse que é contra a alteração. “O governo é obrigado a cumprir a lei”, afirmou na quarta-feira 12, ameaçando questionar a mudança na Justiça, se o projeto for aprovado pelos parlamentares. “Não pode deixar de cumprir e depois mudar a lei.” O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ironizou a medida, dizendo que nem o ex-jogador Pelé conseguiria driblar a meta fiscal. “É um drible que não dá certo, vai mostrar a incompetência de bem gerir a economia do Brasil, é um gol contra, não tem sentido”, afirmou FHC.

FALSAS PROMESSAS Mas não é apenas a oposição que critica as manobras do governo. O Tribunal de Contas da União (TCU), órgão do Legislativo encarregado de fiscalizar o Executivo, aprovou na quarta-feira 12, uma auditoria concluindo que, no ano passado, descontando receitas atípicas, restos a pagar, dividendos de estatais e renegociação de dívidas, o governo federal teve um déficit primário de R$ 43,3 bilhões, o equivalente a 0,9% do PIB. As contas já haviam sido aprovadas no início do ano, com críticas a esses pontos e recomendações para que fossem evitados.

O que o governo fez agora, na avaliação do presidente do TCU, Augusto Nardes, foi usar o “jeitinho brasileiro” na contabilidade pública. “É uma improvisação que nós gostaríamos que não acontecesse no País”, afirmou Nardes. O descumprimento da meta fiscal abala ainda mais a confiança dos mercados e dos investidores no País. Não é, no entanto, o único problema do período pós-eleitoral. Várias outras promessas feitas durante a campanha estão sendo ignoradas agora. “O governo pratica um brutal estelionato eleitoral”, afirma Samuel Pessôa, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da consultoria Reliance.

No discurso de campanha, Dilma criticou a oposição por causa das “medidas impopulares” que o economista Armínio Fraga, ministro da Fazenda no caso de vitória de Aécio, dizia serem necessárias para colocar a casa em ordem. Uma delas, a alta de juros, foi praticada três dias após o segundo turno, quando o Banco Central, preocupado com a inflação acima do teto da meta, de 6,5%, aumentou a taxa Selic em 0,25 ponto, para 11,25%. Na mesma semana, o governo autorizou a Petrobras a subir o preço da gasolina e do diesel. “A gasolina deveria ter sido reajustada há muito tempo para aliviar o caixa da Petrobras”, diz Luiz Gonzaga Belluzzo, diretor da Faculdades Campinas (Facamp).

“Mas no caso dos juros, não acho que o calendário eleitoral tenha influenciado a decisão do Banco Central.” Os preços da energia elétrica também subiram. Nas últimas semanas, inúmeras notícias negativas para o governo, que vinham sendo adiadas, finalmente vieram a público. Desde outubro, estava pronto um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrando que a pobreza extrema parou de cair, mas a sua divulgação só foi autorizada pelo governo após o fechamento das urnas. Outro dado negativo que ficou sob embargo eleitoral foi o aumento do desmatamento na Amazônia.

Durante a campanha, Dilma disse que a derrubada da floresta havia diminuído, embora entidades ambientalistas afirmassem o contrário. “Esperou-se a eleição para começar a dar as más notícias”, diz Pessôa. Durante a campanha eleitoral, Dilma também acusou diversas vezes o governo de São Paulo, nas mãos do PSDB há 20 anos, de não aceitar a ajuda federal no combate à crise da falta d’água. Na segunda-feira 10, o governador Geraldo Alckmin foi ao Palácio do Planalto pedir R$ 3,5 bilhões em recursos do Tesouro a fundo perdido ou através de financiamento estatal para investimentos em oito projetos hídricos.

Logo após o encontro, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, convocou a imprensa para minimizar o alcance dos planos do governo paulista. “Essas obras são mais de curto e médio prazo”, afirmou Miriam. “Essa proposta não apresentou nada que se refira às obras mais estruturantes de longo prazo.” A ministra condicionou o apoio federal a um maior detalhamento dos projetos. Constrangido e sem nenhum centavo liberado, Alckmin aceitou a sugestão de criação de um grupo de trabalho com representantes da União e do Estado que avaliará, na segunda-feira 17, a viabilidade das obras.

“O palanque acabou”, disse Alckmin. “Quem foi eleito foi eleito para governar. Oposição se faz no Parlamento.” A dificuldade em conciliar as promessas de candidata com os primeiros atos de governo já chegou também a aliados. Na terça-feira 11, o ex-presidente Lula participou de um encontro da Central Única dos Trabalhadores (CUT) para discutir o papel dos sindicatos no segundo mandato de Dilma. “O movimento tem um papel fundamental de fazer pressão para que a pauta da classe trabalhadora seja atendida”, disse Vagner Freitas, presidente da CUT, citando temas como o fim do fator previdenciário e a redução da jornada de trabalho.

“O movimento sindical também precisa sair do chão de fábrica, sair da luta economicista e retomar a luta política”, afirmou Lula, que opera freneticamente nos bastidores para emplacar um nome mais conservador no Ministério da Fazenda, como o do ex-presidente do BC Henrique Meirelles. Ao manter o suspense sobre o próximo comandante da economia e, simultaneamente, abrir o saco de maldades criticado durante a campanha, a presidenta Dilma alimenta a incerteza sobre o futuro. “Vejo um governo ‘mais do mesmo’”, afirmou André Esteves, dono do BTG Pactual, que participou do Fórum de Empreendedores do Grupo de Líderes Empresariais (Lide), na semana passada.

“A confiança caiu muito e, em economias complexas e modernas, como é o caso da brasileira, a gente precisa recuperar a confiança de investir – para o crescimento voltar.” No começo do mês, a Ordem dos Economistas do Brasil (OEB) promoveu um evento, em São Paulo, para debater o futuro do País. A opinião quase unânime dos cerca de cem participantes era de que a falta de credibilidade da política econômica coloca em risco o selo de “bom pagador” concedido pelas agências de classificação de risco ao País. “Em meio a um grau de deterioração da reputação e da credibilidade longo e profundo, o Brasil provavelmente vai perder o grau de investimento em algum momento do próximo ano”, afirmou Roberto Padovani, economista-chefe da Votorantim Corretora. A máscara já caiu.