12/05/2004 - 7:00
ESTÁGIO Stefano cuidou dos negócios no Brasil em 2000
A crônica de uma das mais espetaculares farsas do capitalismo moderno, que produziu um rombo de 14 bilhões de euros, foi escrita no Brasil. Está registrada em letras miúdas, nas 80 páginas de um diário de folhas corroídas pelo tempo. Seu autor é Stefano Tanzi, filho de Calisto Tanzi, criador da Parmalat. O diário, obtido com exclusividade pela DINHEIRO, foi escrito no primeiro semestre de 2000, quando Stefano morou em São Paulo e conduziu as operações do grupo na América Latina.
ESQUEMA PALMEIRAS Stefano era fanático por futebol. Anotou a venda de Asprilla (à esq.) e o salário de Alex
Nele, Stefano registrou sua angústia com os resultados ruins e anotou transações com jogadores de futebol. Em suas confissões, também rascunhou um plano de atuação da Parmalat na telefonia através da empresa Tecnosistemi, criada para instalar a rede da TIM, uma subsidiária da Telecom Italia na área de celulares. Hoje, a Tecnosistemi está em concordata. A empresa deixou um calote de R$ 100 milhões com bancos nacionais e é o foco de uma investigação sobre pagamentos de propinas a autoridades públicas. Apreendido pelos policiais italianos na mansão dos Tanzi em Collechio, vilarejo italiano que foi palco da batalha do Monte Castelo, a última dos pracinhas brasileiros na II Guerra Mundial, o diário é uma peça importante nas investigações conduzidas pelos procuradores italianos e pela juíza Antonella Iofredi, de Parma. Isso porque a Parmalat anunciou aos investidores que o crescimento das vendas e dos lucros no Brasil havia sido próximo a 15% em 2000. Mas entre o que foi dito ao mercado e o que efetivamente aconteceu há uma grande distância. Enquanto os balanços fajutados apontaram lucros, o diário de Tanzi revelou quedas dramáticas nas vendas e prejuízos em toda a América Latina. As fraudes começavam a se avolumar.
RUÍNA ESCONDIDA Aos investidores, a empresa dizia que as vendas cresciam. No diário, Stefano anotava queda de receita em vários negócios da Parmalat
No dia 16 de fevereiro, Stefano fez anotações sobre a Etti, empresa de molhos de tomate que acabara de ser adquirida pela Parmalat. ?Há um problema de controle e contabilidade. Parece que não eram desonestos, mas incompetentes.? Em 27 de março, apontou que o faturamento da Batavo, outra subsidiária do grupo, seria reduzido de R$ 352 milhões para R$ 298 milhões. Stefano queixou-se ainda de reduções de venda em várias marcas de leites especiais que haviam sido lançadas. E escreveu que havia ociosidade de até 50% nas fábricas e um problema na estrutura de preços da empresa. Em seguida, fez uma revelação: ?Falei com Gianni sobre dinheiro?. O Gianni em questão era Gianni Grisendi, que presidiu a Parmalat nos anos 90 e deixou a empresa para se tornar acionista da Tecnosistemi e presidente da própria TIM, antes de se envolver em mais uma confusão com tempero italiano: a da Bombril. Hoje, com seus bens bloqueados, Grisendi está sendo investigado por fraude, lavagem de dinheiro e evasão de divisas num processo que corre na 42ª Vara Cível de São Paulo. Muitos outros personagens do diário, porém, conectavam-se à empresa indiretamente. Eram jogadores de futebol. Stefano, que presidiu a equipe do Parma, listou a venda de dois atletas de um time que foi patrocinado pela Parmalat: o Palmeiras. Eram o atacante colombiano Asprilla e o lateral-esquerdo Júnior. Mencionou também o contrato publicitário de Ronaldinho, que teria ganho R$ 5,5 milhões para atuar na campanha publicitária dos mamíferos, que vestia crianças como animais de pelúcia. E citou ainda a renovação de contrato do meia Alex, hoje no Cruzeiro, que ganhava R$ 390 mil por ano e pedia R$ 2,5 milhões. Tamanho interesse pelo futebol se explica. Os procuradores italianos estão convictos de que as transações com jogadores eram um meio de desviar dinheiro. Como o valor dos passes não correspondia à realidade, suspeita-se que parte retornava às contas dos Tanzi em paraísos fiscais.
OS CONSELHEIROS Calisto (acima) e Tonna trataram do plano de sociedade com a TIM e da criação da Tecnosistemi e da Eudósia, empresas de equipamentos
?Parlare com Boss?. O diário de Tanzi também contém revelações sobre a estrutura de poder na Parmalat. Sempre que se via diante de uma decisão difícil, Stefano anotava ?parlare com Boss? ou ?parlare com Fausto?. O boss ? chefe em inglês ? era seu pai Calisto. O segundo homem na hierarquia era Fausto Tonna, ex-diretor financeiro. Hoje os dois, assim como Stefano e outros 18 executivos ligados às fraudes, estão presos na Itália. Um dos episódios em que era necessário tratar com o chefe dizia respeito à telefonia. Em março, Stefano escreveu sobre a compra de licenças de telefonia celular no Brasil pela TIM e sugeriu que a Parmalat deveria adquirir 1% do negócio. Além disso, desenhou um esquema sobre as participações acionárias na Tecnosistemi e na Eudósia, empresas que implantaram praticamente toda a rede de GSM da TIM. Em vários países do
mundo, os executivos que montaram as filiais da Tecnosistemi
haviam atuado antes na Parmalat. Foi o caso de Grisendi, no Brasil, e Rubens Vicente, no Peru. À Justiça, Grisendi disse ter aberto a Tecnosistemi a pedido de Calisto Tanzi. E em todos os lugares, a empresa quebrou, deixando um rombo milionário com bancos e fornecedores. Seu fundador, Mario Mutti, era amigo íntimo de
Tanzi e também está sendo investigado.
BRAÇO DIREITO Gianni Grisendi chefiou a Parmalat e a TIM. É um dos principais nomes citados no diário
Desde que foi criada, em 1977, a Parmalat Brasil jamais registrou lucros verdadeiros. Em média, a empresa recebeu aportes anuais de R$ 100 milhões da matriz, que eram usados para mascarar os resultados ruins. ?Era um subsídio, uma espécie de mesada?, disse à DINHEIRO o executivo Nelson Bastos, que, em abril deste ano, foi nomeado presidente do Conselho da Parmalat pelos credores. Sua conta é que, em todos esses anos, tenham entrado R$ 3 bilhões no País. Era um dinheiro que vinha dos pequenos acionistas minoritários italianos e dos banqueiros que financiaram a expansão da Parmalat. Isso não significa, porém, que o Brasil tenha se beneficiado com a farsa montada pela família Tanzi. O que se suspeita, na Justiça do Brasil e da Itália, é que parte dos recursos tenha retornado ao bolso dos controladores após aquisições superfaturadas de empresas e remessas ilegais de dinheiro. A CPI do Banestado, por exemplo, levantou indícios de desvios de até US$ 1 bilhão. As empresas
usadas para as fraudes seriam a Carital e a Winshaw, ambas
sediadas em paraísos fiscais no Caribe. Só a Winshaw movimentou cerca de US$ 2 bilhões. A tese de muitos procuradores é que,
depois da Operação Mãos Limpas, feita em 1993, as empresas italianas tenham passado a usar países como o Brasil para ?internacionalizar? suas práticas de corrupção.
CALOTE TELEFÔNICO
SOUZA: “A TIM não pagou o que nos deve”
Uma herança amarga do escândalo Parmalat respingou na Telecom Italia. A operadora se tornou ré numa ação que corre na 14a Vara Cível de São Paulo e foi iniciada no dia 22 de abril deste ano. Nela, a Tecnosistemi, criada no Brasil a pedido da família Tanzi e registrada no diário de Stefano, decidiu cobrar uma indenização milionária da TIM. A alegação é que a empresa italiana não teria honrado os pagamentos pela implantação de parte da rede de telefonia celular. Sem receber, a Tecnosistemi entrou em concordata e deixou um rombo de R$ 100 milhões. Seus principais credores são o Santander/Banespa e a empresa de equipamentos Saturnia, de Sorocaba, no interior paulista. ?A TIM implantou parte de sua rede GSM sem pagar pelos serviços?, disse à DINHEIRO o advogado Carlos Eduardo de Souza, sócio do escritório Montani, Rodrigues, Serpejante, que acionou a operadora italiana. Na ação, aponta-se uma dívida de R$ 24,5 milhões. Além disso, a Tecnosistemi reivindica uma indenização por perdas e danos. ?A empresa foi criada para atender quase que exclusivamente a TIM?, afirmou Souza. ?Muitos dos funcionários tinham crachás e trabalhavam lá dentro.? Num comunicado público, a Telecom Italia anunciou que a relação com a Tecnosistemi foi rompida em decorrência de falhas do fornecedor. Mas o processo pode custar caro aos italianos. Isso porque a ação revela um vínculo societário entre a Tecnosistemi e a Olivetti, subsidiária da Telecom Italia. Com esse argumento, mais de 200 ex-funcionários da Tecnosistemi entraram com ações trabalhistas contra a operadora. Além disso, alguns bancos estudam fazer o mesmo. ?Se as empresas foram sócias, a coisa muda de figura e a TIM poderá ser responsabilizada?, disse um dos credores à DINHEIRO.
A OPERAÇÃO RESGATE
Novo presidente da Parmalat prepara a venda de ativos
e diz que tem três meses para começar a lucrar
NELSON BASTOS: Indicado por credores
Um dos livros de cabeceira de Nelson Bastos, novo presidente da Parmalat, é um diário. Foi escrito por Donald Crowhurst, navegador inglês que construiu um barco e sonhava em vencer a volta ao mundo. Depois de zarpar, Crowhurst logo viu que seria impossível conquistar a prova. Começou a falsear as coordenadas geográficas. Depois, quando notou que a fraude seria descoberta, decidiu se matar e seu barco foi encontrado vagando pelo oceano. Casos assim, na visão de Bastos, explicam a mente de alguns empresários. No início, eles acreditam em seus sonhos ? e o da família Tanzi era criar ?a Coca-Cola do leite?. Quando o sonho se revela inatingível, começam as fraudes. Em seu histórico empresarial, Bastos criou a Gradiente e saneou várias companhias. Na Parmalat, quer reconquistar a confiança do mercado e mostrar que a nova empresa pertence aos credores e nada tem a ver com os Tanzi, que estão presos e fora do negócio. ?É preciso separar a empresa do acionista.?
DINHEIRO ? Quais são seus planos?
NELSON BASTOS ? Fazer com que o negócio Parmalat, formado pelos seus ativos, funcionários, distribuidores e clientes sobreviva, independentemente do que ocorreu com os ex-controladores, que já não têm mais nada a ver com a empresa.
DINHEIRO ? O que será feito para recuperar os prejuízos e os recursos que foram desviados?
BASTOS ? Ainda não temos evidência de remessas ilegais e lavagem. Temos evidência de que entrou muito dinheiro no Brasil, algo em torno de R$ 3 bilhões. Esses recursos financiaram os investimentos e as perdas operacionais da Parmalat durante todos os anos. A empresa recebia uma mesada de R$ 100 milhões por ano da Itália, que mascarava a situação.
DINHEIRO ? Os balanços, auditados pela Deloitte, não apresentavam prejuízos?
BASTOS ? Não. Mostravam um ligeiro lucro operacional.
DINHEIRO ? Isso era correto?
BASTOS ? Não era convencional e eu, se fosse conselheiro à época, não teria aprovado os balanços.
DINHEIRO ? O que será feito?
BASTOS ? Estamos negociando a contratação da PriceWaterhouse para auditar novamente os balanços. Todas as transações superiores a US$ 100 mil serão mapeadas. Vamos qualificar a movimentação financeira da empresa. É um trabalho de autópsia.
DINHEIRO ? E o futuro?
BASTOS ? Temos que fazer a empresa voltar a gerar um lucro operacional em três meses. É essa a essência do trabalho de turnaround. O foco da Parmalat não será mais ganhar participação de mercado. Será gerar rentabilidade satisfatória para os acionistas.
DINHEIRO ? Há escassez de produtos Parmalat nos supermercados. Isso significa que a oferta de leite será reduzida?
BASTOS ? Nós comprávamos 50 milhões de litros de leite por dia. Depois da crise, criou-se uma percepção falsa: a da iminente dissolução da Parmalat. Com isso, o volume caiu para 9 milhões de litros. Mas em maio já será de 20 milhões. Esse é o nosso termômetro interno, que mostra recuperação. Os produtores e os clientes estão voltando.
DINHEIRO ? Haverá demissões e fechamentos de fábricas?
BASTOS ? O quadro de pessoal já foi reduzido em 20%. Demitimos também, por princípio, os executivos que eram ligados ao passado. Quanto às fábricas, é preciso avaliar que ativos têm condições ou não de gerar retorno. Na área de sucos, por exemplo, a escala da Parmalat é muito pequena e somos deficitários.
DINHEIRO ? Isso significa que a marca Santal será vendida?
BASTOS ? Estamos avaliando.
DINHEIRO ? Em relação ao leite, a marca não foi contaminada pela crise?
BASTOS ? Os clientes e os produtores ainda percebem a Parmalat como uma empresa de alta qualidade. O nível de conforto para os consumidores é muito maior do que o que estamos ofertando. Mas vamos priorizar os canais de venda que nos dêem maior retorno. Temos que colocar esse negócio de novo de pé.
DINHEIRO ? Como ficou o ambiente interno depois da crise?
BASTOS ? A Parmalat desperta a paixão dos funcionários. Com a crise, surgiu um ambiente altamente depressivo. Mas hoje a situação se reverteu. Com a retomada das vendas, todos demonstram muita vontade de superar os problemas e têm orgulho da qualidade industrial dos produtos. A empresa vai sobreviver.