04/08/2025 - 8:10
Autor dinamarquês de contos de fadas morto há 150 anos teve suas histórias incorporadas ao imaginário do país e segue influenciando a literatura nacional.Um filhote diferente dos demais do ninho é chamado de patinho feio e, depois, adulto se torna um belo cisne. Sem uma perna, com defeito de fabricação, um soldadinho de brinquedo se encanta por uma bailarina de papel. Uma jovem sereia apaixonada por um príncipe humano.
Certamente você já leu, ouviu ou mesmo assistiu a essas histórias. Embora pareçam dessas obras que passam por tradição oral, sem origem definida, elas têm por trás um autor: o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), prolífico escritor que se tornou mundialmente conhecido por ter criado mais de 150 contos de fadas.
“As histórias de Andersen […] fazem parte de uma tradição, consolidada a partir de culturas europeias, de organizar em compêndios histórias da tradição oral”, diz a especialista Ana Crelia Penha Dias, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). “Ele revolucionou o gênero quando incorporou às histórias coletadas não só um olhar mais poético para a construção das personagens, como também, e principalmente por isso, porque criou histórias, ou seja, tornou-se original ao compor, a partir da experiência com o gênero, narrativas autorais.”
Andersen teve uma infância pobre no interior da Dinamarca e, ainda criança, trabalhou como tecelão e alfaiate. Mais tarde, já morando na capital Copenhague, passou a ganhar a vida como escritor de peças teatrais, relatos de viagens, romances, poemas e, claro, os contos de fada que lhe confeririam fama.
“A importância de Hans Christian Andersen para a literatura infantil é quase senso comum, principalmente pela dimensão psicológica que adensa à construção da atmosfera e dos personagens”, explica a professora.
Ainda no século 19, suas obras começaram a ser traduzidas, sobretudo para o alemão, o francês e o inglês – mas também há registros de textos que circularam em português europeu. “É possível que histórias dele tenham circulado aqui no Brasil, em coletâneas”, afirma o escritor e jornalista especialista em literatura infantil Tino Freitas.
De acordo com Dias, as traduções e adaptações de obras estrangeiras voltadas para crianças começaram a pipocar no Brasil a partir dessa época, “com a necessidade de se pensar em uma literatura” dirigida para as escolas.
Priorizou-se “a apropriação de obras do folclore europeu”, conta a pesquisadora. E alguns livros desse período, coletâneas, trazem já algumas adaptações de obras do Andersen, como Histórias do Arco da Velha, de 1896, assinado por Viriato Padilha, pseudônimo do jornalista Aníbal Mascarenhas (1866-1924).
O primeiro livro infantil em cores
Mas a chegada com destaque de Andersen ao país se deu apenas em 1915 – 40 anos após sua morte, ocorrida em 4 de agosto de 1875. Foi quando a Melhoramentos estreou como editora, ainda como uma firma independente chamada Weiszflog Irmãos.
A primeira obra publicada entrou para a história também como o primeiro livro infantil em cores lançado no Brasil. Era O Patinho Feio, de Andersen, em tradução do professor Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925) com ilustrações do tcheco Franz Richter (1872-1964).
“Foi a entrada do Andersen no Brasil por um brasileiro. Ele [Barreto] era professor e achava que a escola deveria oferecer aos alunos boas obras de literatura”, conta a tradutora, pedagoga e letróloga Ana Maria Martins da Costa Santos Langkilde, diretora-fundadora do Instituto Hans Christian Andersen e ex-professora na Universidade Estadual Paulista.
O Patinho Feio inaugurou uma coleção de literatura infantil publicada por aquela editora. Sobre essa estreia da série por uma obra estrangeira, há uma explicação histórica. “Naquele momento o mercado editorial brasileiro não tinha se estruturado [para o universo infantil]. Até isso acontecer, com autores e ilustradores contribuindo com obras autorais, o mercado foi bastante preenchido com a importação de obras estrangeiras. E isso foi muito feito com contos de fada”, explica a jornalista Giovana Franzolin, criadora do projeto Grandes Livrinhos.
Mais do que um sucesso editorial e comercial, a empreitada marcaria uma guinada na visão sobre a importância de uma literatura feita para crianças. Como diz Freitas, o mérito da criação de Andersen na contemporaneidade está no fato de ele ter “semeado leitores”: suas histórias caíram no gosto popular infantil a ponto de despertar o gosto pela leitura, abrindo de certa forma espaço para outros autores e outros estilos.
A coleção da Melhoramentos acabou sendo amplamente utilizada por escolas e bibliotecas do país, o que explica um primeiro boom da obra de Andersen no Brasil.
Um “Andersen brasileiro”
Mas, como lembram os especialistas, o sucesso do dinamarquês só seria consolidado a partir da década de seguinte. Com o protagonismo de um outro escritor, o brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948).
“Em carta que ele trocou com um amigo, ele disse que as crianças brasileiras precisavam de uma boa literatura e ele seria o ‘Andersen brasileiro'”, conta Santos Langkilde.
A partir dos anos 1920, Lobato passou a traduzir também textos do autor dinamarquês. Ele lançou Contos de Andersen e, em seguida, Novos Contos de Andersen. “Se não foi o grande responsável pela popularização de Andersen no Brasil, com certeza foi o grande contribuidor”, acredita a especialista Franzolin.
“Ele conseguiu fazer com que a obra chegasse a mais leitores. Pela capilaridade de Monteiro Lobato, Andersen acabou se popularizando mais”, completa Freitas.
Segundo a pesquisadora Dias, a grande circulação se dava pelos papéis político, literário e educacional de Lobato na tradução, adaptação e divulgação de obras de autores estrangeiros.
Naquela época, o escritor se firmava como o primeiro gigante da literatura infantojuvenil brasileira com o universo do Sítio do Pica-pau Amarelo, que se tornaria sua mais famosa criação. Ele conseguia, assim, como desejava, se tornar uma espécie de Andersen brasileiro – ambientado em um cotidiano que trazia uma autenticidade local, sobretudo ligada ao interior paulista de onde Lobato era originário.
Ao mesmo tempo, histórias como O Patinho Feio, A Pequena Sereia e O Soldadinho de Chumbo, estavam cada vez mais incorporadas ao mundo das crianças brasileiras. Os contos de fada eram recitados em casa e ensinados nas escolas, e esses livrinhos infantis eram presença obrigatória em toda biblioteca pública.
Indústria cultural
Há uma terceira fase que consolida de vez Andersen no cânone literário brasileiro. É um movimento que ecoa a indústria cultural global, evidentemente – os livros passam a ganhar representações em outras mídias, em outras formas de arte.
No Brasil, tornou-se um hit a Coleção Disquinho, uma série de vinis lançada em 1960 pela gravadora Continental com histórias infantis. Era um projeto caprichado, com músicas de João de Barro (1907-2006), orquestradas por Radamés Gnattali (1906-1988). E entre os contos infantis selecionados estavam, é claro, clássicos de Andersen.
“As famílias de classe média compravam esse material e passaram a ouvir com as crianças essas histórias, em uma experiência nova”, comenta Freitas. “A coleção foi um grande motor para a popularização dessas histórias.”
Houve também o impacto das imagens, tanto do cinema quanto da televisão. Andersen se tornou multimídia em uma série de produções, releituras e referências na programação voltada às crianças.
No âmbito internacional, mas com imensa influência sobre a cultura brasileira, a americana The Walt Disney Company bebeu muito na fonte do dinamarquês, tanto indiretamente, quanto diretamente – caso de filmes como A Pequena Sereia, de 1989.
A importância global do autor pode ser medida também pelo fato de ele emprestar o nome para aquele que é considerado o Nobel da literatura infantil. O Prêmio Hans Christian Andersen é concedido bienalmente desde 1956 – em 1982 foi vencido pela brasileira Lygia Bojunga e, em 2000, por Ana Maria Machado; em 2014, o brasileiro Roger Mello ganhou o prêmio como ilustrador.
Influência
Entre os autores brasileiros; a referência dos contos de fadas clássicos do dinamarquês se tornou quase um paradigma, ainda que muitas vezes de forma indireta. Quem foi que não leu Flicts, de Ziraldo (1932-2024), e não se lembrou do rejeitado patinho que depois se torna um belo cisne?
Mas o escritor Freitas acredita que a maior influência mesmo das obras de Andersen sobre a literatura nacional foi a criação de um público cativo, “leitores que vão se direcionar para essas histórias infantis”. Ou seja: ele abriu um nicho que antes não era explorado. “Foi um cara que contagiou leitores. E isso contagiou outros escritores”, aponta. “Suas histórias emocionam os leitores que, então; ficam sedentos por novas histórias.”
Santos Langkilde cita Ruth Rocha e Pedro Bandeira como autores “que acabaram buscando nele suporte”, inclusive com “intertextualidade com alguns contos do Andersen”. Para Freitas, alguém que conseguiu ser um “Andersen de saias” no Brasil foi a Marina Colasanti (1937-2025), escritora que teve uma “produção autoral universal”.
Um aspecto ressaltado por especialistas é que as histórias do dinamarquês vão na contramão do senso comum de que história infantil precisa ter final feliz. Contos como A Pequena Vendedora de Fósforos são tristes. Isso pode ter influenciado também escritores posteriores a ele.
“Ler Andersen na infância é deparar-se com a condição trágica da existência, que é a morte. Certamente isso pode ter encorajado autores a pensar em produzir literatura infantil fora desse padrão de conciliação pedagógica e final feliz”, afirma a professora Dias.
Mesmo com toda essa importância, Santos Langkilde acredita que o autor em si é um ilustre desconhecido no Brasil. “As obras dele são conhecidas. Ele, não”, crava ela. “As pessoas não relacionam as histórias ao autor.”