17/08/2005 - 7:00
DINHEIRO ? Há meses o dólar vem caindo e o saldo comercial continua crescendo. O que explica esse paradoxo?
GUSTAVO FRANCO ? A primeira observação é que a relação entre câmbio e exportação é muito menos óbvia do que parece. É mais complexa do que as pessoas imaginam.
DINHEIRO ? Quando o dólar caiu de R$ 3,20 para R$ 2,80, os exportadores começaram a prever o caos. Depois, caiu para R$ 2,60, R$ 2,40, R$ 2,30 … onde isso vai parar?
FRANCO ? Nada no horizonte indica uma interrupção no processo de valorização do real. Só vejo novas quedas do dólar. Dadas as condições atuais, que incluem o superávit comercial, a taxa de juros brasileira e o ingresso de capitais, é essa a tendência. Quanto às queixas dos exportadores, isso faz parte da tradição brasileira. Para eles, a moeda está sempre valorizada. Para entender o que está acontecendo hoje é preciso recuar alguns anos no tempo.
DINHEIRO ? Por quê?
FRANCO ? De 1994, quando introduzimos a banda cambial, até 1999, as exportações mantiveram algum ritmo de crescimento. Mas estava também acontecendo uma mudança estrutural na economia brasileira. A produtividade crescia a taxas superiores a 8% ao ano. A soma de privatização, valorização cambial e abertura às importações permitiu a atualização produtiva da indústria.
DINHEIRO ? Sem essa modernização, o Brasil não estaria vivendo hoje esse boom de exportações?
FRANCO ? Seguramente. A produtividade cresceu de forma dramática até o fim da década de 90. Aquela indústria antiga, envelhecida, não seria capaz de estar exportando tanto. Mas as mudanças estruturais vão além disso. Algo muito importante, que costuma ser ignorado, foi o aumento do comércio intra-firma.
DINHEIRO ? Qual o efeito disso?
FRANCO ? Entre 1995 e 2000, entraram no Brasil pouco mais de US$ 100 bilhões. Até então, o estoque de capital estrangeiro era de US$ 45 bilhões. Ou seja, em cinco anos, entrou mais do dobro do que já havia. As multinacionais ampliaram dramaticamente o comércio entre matriz e subsidiária. Até 1999, todo o crescimento das exportações podia ser explicado pela expansão do comércio intra-firma. E isso continuou nos anos seguintes.
DINHEIRO ? A desvalorização cambial de 1999 não foi o fator chave para alavancar o comércio?
FRANCO ? Em 1999 e 2000, a reação das empresas exportadoras não foi tão forte. Mas quando o câmbio deu a grande pancada em 2002, com a incerteza em torno da sucessão presidencial, as filiais das multinacionais instaladas no Brasil engajaram-se de vez na rede global de produção das corporações globais. Para empresas estrangeiras, o protecionismo praticamente não existe. Elas sempre encontram formas de driblar barreiras comerciais.
DINHEIRO ? A pancada cambial foi então necessária?
FRANCO ? Foi o que fez o elefante se mexer. Depois que ele começa a andar, dificilmente pára. Mas mesmo considerando a importância do elemento cambial, ele teria caído no vazio se, anteriormente, não tivesse havido uma modificação estrutural na economia brasileira.
DINHEIRO ? Sua política cambial, que durou até 1999, desvalorizava o real de forma suave. Hoje, se ela tivesse sido mantida, como estaria a relação entre dólar e real?
FRANCO ? Isso sempre depende da escolha do índice. Mas os boletins da Funcex mostram que o câmbio real hoje, usando uma cesta de moedas, está em 82% do que estava em agosto de 1994. Ou seja: ele está mais valorizado do que quando começou o real.
DINHEIRO ? Tendo em vista as crises do passado, a onda de apreciação cambial não é perigosa para o País?
FRANCO ? Hoje, como na minha época, o mercado cambial está extremamente ofertado. Há muita liquidez. Mas no meu tempo o desafio era combater uma inflação de 5.000% ao ano. Atualmente, ela é de 6% ao ano. Lá, havia a necessidade e a urgência de uma âncora cambial. Isso não existe mais. A moeda forte fez bem ao Brasil, tanto do ponto de vista da inflação quanto do ponto de vista da indústria, que ficou mais eficiente. Hoje, é difícil justificar um câmbio tão apreciado.
DINHEIRO ? O câmbio forte não teria o efeito benéfico de aprofundar os ajustes na indústria e aumentar o intercâmbio da economia com o resto do mundo?
FRANCO ? Tem ainda um outro argumento. Com moeda forte, os salários são maiores. Por isso, sempre me espantou que, no Brasil, a esquerda fosse contra uma moeda forte. Mas, no tocante à indústria, o imperativo da produtividade já não é tão forte. A indústria brasileira já está atualizada. O problema que eu vejo no câmbio hoje diz respeito à volatilidade.
DINHEIRO ? O câmbio flutua demais?
FRANCO ? Eu acredito que sim. Hoje, o importador não se anima muito a operar no Brasil em razão da imensa volatilidade. O risco cambial é uma variável totalmente nova, que atrapalha muito. Para o empresário local, a volatilidade funciona até como uma barreira tarifária. A empresa compra insumos locais porque é mais seguro. Daqui um ano, um similar importado pode dobrar de preço.
DINHEIRO ? Seria saudável reintroduzir uma banda, ou um tipo de câmbio mais administrado?
FRANCO ? Nós compramos muito apressadamente a superioridade do câmbio totalmente flutuante sobre todos os outros tipos de regime. E muitos se esquecem de que vários países preferem uma flutuação administrada.
DINHEIRO ? Por exemplo?
FRANCO ? O México tem um programa de opções cambiais que eles usam com regularidade no mercado de câmbio para amortecer os choques. Eles não trabalham com bandas. Trabalham com bóias. Isso não impede as ondas, mas evita oscilações bruscas. Se não mudarmos nada, o câmbio não vai parar de cair. Vai desabar mais ainda.
DINHEIRO ? Para R$ 2,20, R$ 2,00?
FRANCO ? Não arrisco dizer. Mas, com esse mix de política econômica, não tem como não cair.
DINHEIRO ? Nesse mix, há a maior taxa de juros do mundo. Ela não distorce a taxa de câmbio, ao atrair capital especulativo?
FRANCO ? Distorce, com certeza. Mas a primeira pergunta é: as condições fiscais permitem que a taxa de juros seja menor? Segunda pergunta: teríamos outras maneiras de reduzir a inflação que não seja através dessa política monetária?
DINHEIRO ? E não há outras alternativas?
FRANCO ? Há um grande debate a se fazer. Eu, pessoalmente, acho que a inflação de hoje não é a mesma criatura do meu tempo. Em 1997 e 1998, chegamos a uma taxa perto de zero. Depois de 1999, nunca conseguimos cair abaixo de 6%. Será que não tem algo novo, pertinente ao regime de flutuação, que criou um viés inflacionário na economia? Eu diria que sim.
DINHEIRO ? Por quê?
FRANCO ? Quem faz contabilidade num cenário de grande volatilidade cambial põe margem. Se você tem insumos importados nos custos e faz operações de hedge para se proteger, isso custa dinheiro. Ainda mais quando o Banco Central retira papéis cambiais de circulação.
DINHEIRO ? O Brasil não está pagando um preço caro por ter indexado os contratos dos serviços públicos ao IGP-M?
FRANCO ? Não é bem assim. Se fosse dólar no lugar do IGP, os preços estariam caindo. O problema é que, no Brasil, os concessionários estão atolados de obrigações que não têm a ver propriamente com a prestação dos serviços.
DINHEIRO ? Dias atrás, Lula disse que o superávit comercial de US$ 40 bilhões é exagerado. Ele está certo?
FRANCO ? O que a teoria econômica ensina é que, quando se tem um superávit externo tão elevado, como é o caso do Brasil de hoje, está se exportando poupança. Isso não faz muito sentido para um país como o Brasil, que precisa de poupança externa para crescer.
DINHEIRO ? Esse superávit comercial não reflete um consumo estagnado no mercado interno?
FRANCO ? Reflete mais a estagnação dos investimentos do que do consumo. Estamos exportando poupança porque os empresários não estão achando bom uso dos recursos em investimentos locais.
DINHEIRO ? Hoje, o Brasil é um retardatário em matéria de crescimento. O que falta fazer?
FRANCO ? É simples. Nossa taxa de investimentos é de 18% do PIB, enquanto na China é 34%.
DINHEIRO ? Mas eles não têm a nossa taxa de juros.
FRANCO ? Como também não têm a nossa dívida e o nosso déficit público.
DINHEIRO ? Nesse contexto, o sr. apóia a proposta de déficit zero do deputado Delfim Netto?
FRANCO ? Tudo que caminhe nessa direção é saudável. No entanto, sempre que alguém no Brasil defendeu o encolhimento do Estado e a redução de gastos públicos, entidades como a Fiesp, que têm o deputado Delfim como uma espécie de porta-voz, protestaram. Por isso, eu estranho e fico até desconfiado ao vê-lo defender o déficit zero.
DINHEIRO ? A crise política traz riscos de turbulências no cenário econômico?
FRANCO ? Desta vez, a crise política não contaminou em nada a economia. Pelo contrário. Algo que contribuiu para isso foi a própria conversão do PT a princípios que o partido atacava na oposição. Ficou claro que não há espaço para experimentalismos.
DINHEIRO ? Mas e se a crise se agravar e chegar ao presidente Lula? Haveria algum risco com o vice José Alencar?
FRANCO ? Não vejo esse risco. Por mais que ele tenha idéias não convencionais, como o PT tinha no passado, a capacidade de manobra é muito pequena. A realidade do mundo globalizado limita a capacidade de tirocínio dos governantes. Não se tem autonomia para fazer bobagem.
DINHEIRO ? A Argentina testou uma saída heterodoxa e a inflação já começa a bater em dois dígitos.
FRANCO ? Pois é. Não tem almoço grátis. Esse negócio de desafiar as leis da economia é sempre muito bom nos primeiros cinco minutos do primeiro tempo. Mas, depois, quando vem a conta, é uma tragédia.