27/07/2004 - 7:00
Há sete aparelhos de controle remoto de televisão em cima da mesinha de madeira. Os retratos dos netos dividem espaço com o telefone, de fios emaranhados. Uma caixa de lenços de papel já aberta é indício de vida ali perto. Na parede, a emoldurar a simplicidade dos objetos familiares, desponta Antropofagia, de 1929, o óleo sobre tela de 1,26 metro por 1,42 metro de Tarsila do Amaral. O quadro, ícone do modernismo, é avaliado pelo colecionador argentino Eduardo Constantini em US$ 3 milhões. Ele sabe o que diz: em 2000, Constantini pagou US$ 1,5 milhão pelo Abaporu, também de Tarsila, na transação mais cara de todos os tempos para uma obra de arte brasileira. A cena doméstica, impressionante pelo contraste do cotidiano com uma peça histórica, é da residência de José e Paulina Nemirovsky, na rua Guadalupe, nos Jardins, em São Paulo. Desde a semana passada, com a assinatura de um acordo de comodato entre a Fundação Nemirovsky e o governo do Estado de São Paulo, o quadro passa para o controle da administração estadual durante cinco anos, renováveis por outros cinco.
Ele faz parte de uma coleção de 200 peças que será exibida, por lotes, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, a partir de agosto. Em suas dependências, no início dos anos 70, torturava-se e matava-se no porão do DOI-Codi. A partir de agora, será a sede de uma idéia comovente, o avesso da ditadura ? a cessão de um tesouro privado para o âmbito público. Antropofagia sairá da sala de estar dos Nemirovsky para um salão de imenso pé direito, entre a Sala São Paulo e a Estação da Luz. ?É uma bela iniciativa de inclusão cultural?, diz Cláudia Costin, secretária de Cultura e uma das principais personagens da iniciativa. Trata-se de uma relíquia. ?É a mais importante coleção modernista do Brasil?, diz a curadora Maria Alice Milliet, presidente da Fundação Nemirovsky. Há exemplares raros de Portinari, Di Cavalcanti e Lasar Segall, entre outros. ?Não há erro na escolha?, resume a curadora.
A coleção é obra da obsessão de um médico ginecologista nascido na Argentina em 1914, filho de pais russos. José Nemirovsky, falecido em 1987, abandonou a medicina em duas etapas. Ao conhecer Paulina Pistrak, filha de Isaac Pistrak, sócio de León Feffer nos primeiros tempos da Companhia Suzano (papéis e celulose), ele entrou nos negócios da empresa. Durante 15 anos, tornou-se grande especialista no cultivo de eucaliptos. Depois, nos anos 70, o fascínio pelas artes o levou a construir um ateliê e a freqüentar cursos nos EUA. Com a morte de José, coube a Paulina, já Nemirovsky, administrar o acervo. ?Foram 30 anos de dedicação?, costuma dizer Paulina, hoje com 81 anos, discreta, quase anônima. Ela pouco sai de casa, com saúde frágil, e quando o faz bate ponto no escritório da Fundação, perto da casa-museu.
Antoní Gaudí. A residência da rua Guadalupe é o retrato de um pedaço da burguesia paulistana dos anos 70. Tinha muito dinheiro e bom gosto, nesta ordem. O arquiteto Jorge Zalszupin, autor do projeto, era amigo do casal. Em meio a um amplo jardim, repleto de buganvílias e rolinhas, construiu uma casa de concreto e paredes tortas, ao estilo modernista do catalão Antoní Gaudí. A residência ficou pronta em 1975, quando os Nemirovsky já tinham montado grande parte da coleção. Como, então, pendurar telas em paredes curvas? A seis mãos, o projeto cresceu, em boa parte, a partir dos quadros. Como eles vieram antes, e tratava-se de acomodá-los, tinham a primazia. Era preciso arrumar um canto para tudo. ?O museu Guggenheim, em Nova York, é todo circular e ali estão as telas pousadas nas paredes?, diz Maria Alice. ?É mais ou menos isso o que eles fizeram na rua Guadalupe.?
Em algum momento das negociações com o Estado, pensou-se em abrir a residência para visitação. A idéia foi engavetada. Com o acervo subindo às paredes da Estação Pinacoteca em blocos, a casa de Paulina nunca ficará totalmente vazia. ?Há vida ali dentro, e precisamos respeitá-la?, diz Maria Alice. É justo. As telas contam a história da persistência de um casal como poucos no Brasil. José e Paulina realizaram, nos anos 60, concorridos leilões para amealhar a verba que resultaria na construção do Hospital Albert Einstein. Têm, portanto, histórico de benemerência. Talvez seja pouco se comparado à generosidade tornada definitiva na semana passada. É um gesto que os põe em pé de igualdade com ricaços americanos que tomaram o mesmo caminho. São nomes como William Randolph Hearst, Andrew Mellon, John D. Rockefeller e Henry Clay Frick. Magnata do aço, Frick (1849-1919), deixou para a posteridade 1.100 obras. Há telas de Rembrandt, El Greco e Bellini. O acervo transformou-se numa galeria em Nova York, a estupenda Frick Collection. Ao morrer, ele legou ainda US$ 15 milhões para a administração do museu. Os Nemirovsky pertencem a essa estirpe.