Eles eram Silvas comuns. Levavam vidas humildes, enfrentavam dificuldades financeiras e até se divertiam. Hoje, três anos depois da chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, a vida virou para os irmãos e parentes mais próximos do presidente. Para pior. Ao se tornarem os Lula da Silva, saíram do anonimato e passaram a sentir, um a um, todos os ônus da fama. Tornaram-se alvo de assédio. Da solução de encrencas com a Receita Federal à liberação de cargas silvestres nas delegacias do Ibama, eles têm sido chamados para resolver quase tudo. A procura despertou suspeitas. A família começou a ser monitorada de perto. Plantões de vigilância se ergueram diante de suas casas, amigos têm sido procurados para dedurar seus movimentos e abordagens ríspidas se sucederam. Sob os estilhaços da crise que balança o governo do irmão famoso, os Silva sucumbiram. Mortes, doenças e aflições econômicas invadiram o seu dia-a-dia. Eles que acreditaram estar a um passo do paraíso quando Lula se elegeu presidente, se descobriram dentro de um pesadelo sem data para terminar. ?Nossa vida virou um inferno de angústia e depressão?, desabafa Frei Chico, o irmão que levou Lula para o sindicalismo e guiou os primeiros passos de sua carreira. ?Estamos sendo perseguidos?.

O mais recente golpe na vida da família teve como alvo Genival Inácio da Silva, o Vavá. Ex-metalúrgico, conhecido em São Bernardo como um homem bem humorado que costuma prestar serviços comunitários, ele foi acusado de fazer lobby a favor de um empresário português. A visita dele com o empresário ao Palácio do Planalto ganhou tintas de escândalo. Seu minúsculo escritório, que divide com um advogado, teve o lixo remexido e documentos roubados. Para Vavá, que vive com os rendimentos de sua aposentadoria, o resultado do cerco foi uma crise de hipertensão e uma operação, semanas atrás, para a retirada das veias safenas, na qual teve uma parada cardíaca. Hoje, está com noventa pontos em cada uma das pernas. Seu primo-irmão João Florêncio, encarregado de montar um memorial para Lula em Garanhuns, acaba de falecer, fulminado por um enfarte. A família sustenta que o principal motivo foi o abatimento provocado pela situação em que se encontra o presidente, a quem Florêncio era muito ligado.

Na periferia de São Paulo, mais um Lula da Silva, a irmã caçula do presidente, não consegue realizar seu único sonho. Ruth quer fazer um muro à volta de sua casa humilde, para proteger a si, ao marido e à única filha, mas não consegue comprar tijolos e cimento com o salário de R$ 452,32 de agente escolar numa escola municipal. Conhecida na família como Tiana, começou o governo do irmão na posição de auxiliar de merendeira, com a tarefa de lavar panelas. Com uma tendinite provada pelo esforço repetitivo, foi transferida para a limpeza de salas. Ela não se lamenta. ?Tenho pena é do Lula?, diz. ?Ele sim está segurando uma barra pesada que pouca gente agüentaria?. Perto de sua casa mora o irmão Jaime. Aos 68 anos, ele também não consegue juntar o dinheiro suficiente para construir um cômodo sobre a laje. Com problemas nas articulações das pernas, sem plano privado de saúde, ele se levanta todos os dias às cinco da manhã para trabalhar numa metalúrgica. Recebe três salários mínimos por mês. Maria Moreno da Silva, a irmã do presidente conhecida como Maria Baixinha, igualmente enfrenta um destino duro. Depois da morte do marido, abatido pelo câncer dois anos atrás, deprimiu-se e descontrolou-se na alimentação. Na sexta-feira 4, Maria foi submetida a uma delicada operação no intestino. Até a véspera, nenhum dos irmãos havia conseguido dar a notícia ao presidente.

No assédio ao qual tem sido submetidos, os irmãos Frei Chico e Vavá já se sentiram como agências ambulantes de empregos. Conhecidos em São Bernardo e São Caetano, eles vinham sendo parados nas ruas por desconhecidos com currículos debaixo do braço. No momento, Vavá não tem saído de casa, mas Frei Chico, que voltou a andar recentemente após ter sofrido um enfarte que inutilizou suas duas pontes de safena, já volta a sofrer marcação sob pressão. Na terça-feira 1, foi procurado por um amigo que teve um caminhão apreendido numa estrada com uma carga ilegal de passarinhos. ?É incrível que a esta altura alguém ache que mande alguma coisa?, irrita-se ele. Para barrar qualquer possibilidade, o próprio Lula determinou, no início da gestão, que nenhuma autarquia ou ministério atendesse pedidos chegados com a chancela de familiares. Pelo que se vê, fora da máquina administrativa muita gente não acredita que os Silva não têm super-poderes.

O certo é que os irmãos nunca estiveram tão distantes de Lula como agora. ?Para visitar meu pai, meu tio precisou chegar aqui de madrugada, praticamente em segredo?, conta a sobrinha Andréa, a respeito da rápida visita que o presidente fez ao irmão Vavá, em recuperação da retirada das safenas. Na outra direção, os irmãos também não podem ir normalmente à Brasília. No aniversário de Lula, em 27 de outubro, o máximo que eles conseguiram foi dar um rápido telefonema de cumprimentos. Em parte, falta convite. A primeira-dama Marisa prefere ver Lula mais na companhia dos parentes dela do que entre os irmãos. Também falta dinheiro. Cada vez que um deles precisa viajar, uma rede de velhos amigos têm de ser mobilizada para arrumar o dinheiro das passagens. Igualmente falta disposição. Na última vez que foi à capital, três meses atrás, Frei Chico teve seus passos acompanhados de perto. Decidiu-se em família que, daqui para a frente, Brasília está riscada do mapa dos Silva. ?A abordagem da imprensa sobre os irmãos e o próprio Lula tem muito de preconceito de classe?, julga a historiadora Denise Paraná, autora da única biografia do presidente ? O Filho do Brasil. ?O respeito e o cuidado que existe com a elite não se manifesta em relação a eles. A aproximação é no mais das vezes virulenta?.

Em Garanhuns, onde vivem dezenas de aparentados do presidente, o fenômeno da fama se manifesta de maneira inversa. ?Entre as 30 mil pessoas que vivem na cidade, temos 60 mil primos?, diz Vavá. Ele se refere ao fato de que, ali, muita gente que não tem nenhuma relação com a família gosta de se apresentar como parente. Não é o caso dos agricultores Antonio e Gilberto Ferreira. Eles são filhos de Sérgio, irmão da mãe do presidente, dona Lindu. Assim como no início do governo, eles mantêm o mesmo modo de vida, morando em casinhas humildes, madrugando para roçar e tendo como maior divertimento a ida aos pequenos bares da cidade. ?O que era para Lula ter feito em relação à sua família? Nepotismo??, pergunta o advogado trabalhista João José Sady. ?Ao deixar que a vida deles seguisse o curso natural, o presidente dá uma prova de comportamento exemplar?. Não há queixas entre os irmãos de que foram abandonados. Reconhecem que, quando pode, Lula procura ter notícias da família. O problema é que esse contato está cada vez mais espaçado. A distância entre breves telefonemas têm durado meses. Não há previsão de quando eles o verão novamente. No Natal? Dificilmente, em razão do hábito de o presidente passar a data com os filhos e a mulher. Quando, então? ?Quando Deus quiser?, diz a irmã Ruth.

“Não posso chegar perto do meu irmão”

No final dos anos 70, José Ferreira de Melo, o Frei Chico, venceu as eleições para presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano, o C do politizado ABC. Era um expoente de sua geração, mas jamais tomou posse. O braço trabalhista do regime militar interveio no
sindicato e truncou sua carreira. Pouco antes, ele havia sido preso e torturado por 16 dias seguidos, na sede do Doi-Codi. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi Frei Chico quem levou Lula para a política sindical, da qual ele partiu para a carreira política. O irmão de Lula, agora se recuperando de um segundo enfarte, ocorrido 50 dias atrás, concedeu à DINHEIRO a seguinte entrevista:

A vida da família Lula da Silva melhorou com Luis Inácio Lula da Silva na Presidência?
Temos orgulho do nosso irmão presidente, mas a verdade é que nossa vida virou um inferno. No início do governo, fomos muito assediados, e ainda somos, para prestar favores, fazer indicações, encaminhar currículos e os mais diferentes assuntos ao governo. Esse assédio partia de pessoas de todos os tipos, desde as totalmente desconhecidas até gente de casa, próxima. Todo mundo querendo chegar mais perto do presidente. Agora, de uns seis meses para cá, começou uma guerra que parece não ter fim. Estamos sendo perseguidos e vigiados. Todo mundo desse lado está muito angustiado. A eleição do Lula deixou a gente em evidência, o que é muito ruim para uma família pobre.

Qual seria a diferença se vocês fossem ricos?
Nós estamos completamente desprotegidos. Nenhum de nós mora em casa com muros altos, com seguranças e carro blindado na garagem. A gente leva a mesmíssima vida de antes, ninguém enricou. Isso facilita toda a abordagem sobre a gente. Essa abordagem é muitas vezes estúpida, desrespeitosa. Na minha casa, se a luz da sala está acesa já vem gente me procurar com algum problema para resolver. Eu precisei trocar o número do meu telefone umas dez vezes, e vou trocar de novo. Outro dia minha sobrinha contou 14 jornalistas na frente da casa do meu irmão Vavá, que pouco antes tinha sofrido uma cirurgia em que teve parada cardíaca. Ele nem pode descansar na própria casa. Isso é uma pressão desumana. Meu primo-irmão João Florêncio morreu em virtude dessa angústia que nós estamos passando. Ele estava bem, havia conversado com o Lula na semana anterior, mas se preocupava demais com esses problemas todos que o governo está passando. Não aguentou.

Vocês tentaram criar algum mecanismo de defesa ao assédio?
Logo depois da vitória na eleição, eu sugeri, via PT, que alguns integrantes da família, principalmente os irmãos por parte de pai e mãe, passassem por algum tipo de treinamento para enfrentar essa maré de pedidos e a procura da imprensa. O Lula sempre dizia ?vamos fazer, vamos fazer?, mas acho que o PT nunca levou a sério essa idéia. A verdade é que nada foi feito, falhamos todos nesse ponto.

O seu irmão Vavá foi acusado de aproximar empresários do governo e o sr. também enfrenta esse tipo de acusações. Os irmãos Lula da Silva são lobistas?
É óbvio que não. Tudo o que nós fazemos hoje é tentar ajudar as pessoas. Lógico que nós não queremos prejudicar o Lula, mas ouvir pessoas carentes, necessitadas, tentar ajudar, isso é proibido? Até as nossas amizades com alguns empresários passaram a ser perigosas. Amigos de 30 anos me chamam para almoçar e eu não estou indo, porque isso vai me causar problemas. Mas também tem gente que se aproxima de maneira estúpida, escandalosa até, e depois você não sabe se saíram por aí usando o nosso nome. Provavelmente usaram sim. Certa vez, um cara ficou sentado na frente do meu carro até eu descer e ouvir que ele tinha um problema de imposto de renda para resolver. Quando eu disse que não dava, ele saiu irritado, deve ter ficado meu inimigo. Para nossa sorte, o Lula mandou avisar as autarquias e ministérios para não atender pedidos da família. Isso ajudou, mas tem gente que não acredita.

Por que o Vavá levou empresários até o Planalto?
O Vavá sempre foi uma espécie de assistente social não remunerado. Ele sempre procurou ajudar as pessoas. Se você o chama para a sua casa, ele vai. Se chama para ir à Brasília, vai também. Eu só soube mais tarde que ele foi a Brasília levando empresários. Ele me disse que os caras queriam só tirar uma foto com o presidente, mas ao chegarem lá, na conversa, tentaram avançar sobre um assunto concreto. Quando ele ligou para contar, eu fiquei um pouco assustado. O Vavá foi usado descaradamente, mas tá na cara que o meu irmão nunca levou vantagem nenhuma desses empresários. A exploração do caso faz parte da guerra que a gente está vivendo, sem critério.

Mas ele chegou a abrir um escritório para receber pessoas. Isso é normal?
Esse escritório nem é dele, é de um advogado amigo. O Vavá vai lá para ter um ponto de referência, usar o telefone, pegar recados. A imprensa exagerou com o meu irmão. Entraram nesse escritório dele de forma grosseira. Mexeram em gavetas, no lixo, roubaram documentos. Foram totalmente desrespeitosos. É correto investigar, ainda bem que temos liberdade de imprensa, mas não desse jeito.

O sr. se sente perseguido?
Muitas e muitas vezes me sinto como nos meus tempos de clandestinidade, quando saia pelas ruas olhando para os lados, desconfiado de tudo e de todos. Hoje em dia bisbilhotam a minha vida o tempo todo. Outro dia um amigo me disse para tomar cuidado com o carro que eu uso. Eu parei numa oficina e teve repórter indo atrás para saber quem ia pagar o conserto. Um cabolco foi visto dando plantão na padaria em frente à minha casa. Eu viajei para o Nordeste, para o enterro do meu primo-irmão, e me perguntaram quem pagou a minha passagem. Será que eu passei 16 dias no Doi-Codi sendo torturando barbaramente, lutando pela democracia, para agora ser chamado de bandido? Isso é uma safadeza.

O sr. mudou hábitos?
Claro. Agora estou me recuperando de uma cirurgia e um amigo que vive nos Estados Unidos me ofereceu a casa dele lá no Guarujá. Disse que eu poderia ficar enquanto ela está à venda. Eu pagaria as despesas todas, tudo numa boa. Mas você acha que eu posso aceitar isso? De jeito nenhum, porque vão dizer que atrás desse favor tem um pedido, um não sei o que.

Seria melhor Lula virar ex-presidente logo?
Não, ele tem muito para fazer.

Será que o presidente não está solitário demais, precisando do apoio mais próximo da família?
Acho que sim, mas hoje eu não posso chegar perto do meu irmão. Se eu me aproximar, passar a ir mais à Brasília, vão dizer isso e aquilo. Ficou impossível. Hoje, em razão dos meus 40 anos de militância política, conheço gente em todos os ministérios. Mas se apareço lá para abraçar um amigo, isso ganha ares de escândalo. Não tenho liberdade de ir e vir.

O sr. não acha que o presidente deveria dedicar mais tempo à família?
É impossível também para ele. Lula se preocupa com todos nós, mas não tem agenda para nos ver.