13/07/2004 - 7:00
Há aquele conhecido dilema de uma marca de biscoitos: vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? É hora de sugerir um novo aforismo, este do mercado de tabaco ? os cigarros vendem mais porque são pirateados ou são pirateados porque vendem mais? A resposta a esse enigma é, hoje, uma das grandes indagações do setor produtivo no Brasil. É, certamente, a preocupação central de Nicandro Durante, presidente da Souza Cruz desde janeiro deste ano. Em outros termos: como uma indústria atacada por todos os flancos, assaltada pelos piratas e hostilizada pela sociedade, sobrevive e cresce? ?Fomos banidos da mídia, convivemos com a concorrência desonesta da ilegalidade, mas ainda assim temos ótimos resultados?, diz Durante. ?Nós, mais do que ninguém, dependemos do consumidor, estamos sujeitos aos humores da política econômica e precisamos ser socialmente responsáveis ao limite do impossível?. Em 2003, apesar de publicamente agredida, a Souza Cruz cresceu 6% ? mais do que a média de todas as outras empresas do setor de alimentos, bebidas e fumo. O faturamento foi de R$ 6,8 bilhões. Respondeu por 77% do mercado brasileiro de tabaco. Sete das 10 marcas mais vendidas no Brasil são da Souza Cruz. É uma movimentação espantosa numa atividade que, para muitos, é o pior negócio do mundo. Nem mesmo a indústria de armamentos é tão execrada, muito menos a de bebidas alcoólicas.
Qual é, então, o segredo da Souza Cruz? Publicidade, certamente, não é, porque o cigarro, informam os próprios maços, provoca câncer e mata. ?Tivemos que investir em nossa comuni-
cação com os 200 mil pontos-de-venda atendidos diariamente em todo o País?, resume Durante. A resposta do sucesso pode estar na distribuição ágil e nas parcerias com os poderes públicos para descobrir e multar os estabelecimentos que vendem produtos falsificados. ?Somente essa proximidade com nossos vendedores é que nos permite reduzir a pirataria?, diz Durante. ?Não somos polícia, e não cabe a nós reprimir.? É uma luta titânica. A ilegalidade responde por 30% do mercado, com 40 bilhões de unidades vendidas anualmente (a Souza Cruz vendeu 76,8 bilhões em 2003). A evasão fiscal foi de R$ 1,4 bilhão (a Souza Cruz recolheu R$ 3,5 bilhões em impostos).
Durante, que passou 23 de seus 47 anos na empresa, sempre no cuidado das finanças ? ou em funções fora do Brasil dentro da hierarquia da British American Tobacco, controladora do negócio ? tem esses números na ponta de língua. Vence a disfarçada timidez para exibir, com orgulho, dois pequenos cartazes numa moldura. São a prova do crime. Um deles mostra cerca de 40 maços oficiais, sobre os quais incidem tributação de até 40%. O outro é uma coletânea de piores momentos dos 400 tipos de maços bandidos à disposição no mercado. Há requintes de picaretagem como o ?Ro-Ro?, lançado em camelôs depois da final da Copa de 2002, e o ?21?, numa carona com o número-slogan da Embratel. É a pirataria que faz mal à saúde, porque o fumo falso, além do mais, não tem controle sanitário.
A pirataria morde, naturalmente, um naco dos produtos legais. O preço médio do maço legítimo é de R$ 1,70 ? o falsificado sai por R$ 0,89, em média. Em dez anos, desde 1993, a porção fraudulenta cresceu de 7% para 33% das vendas. Como onde há fumaça, há fogo, os executivos da Souza Cruz logo perceberam que era preciso investir num outro modelo de negócios, além do varejo. Apostaram nas exportações, que hoje respondem por um terço do faturamento total ? e aí reside um outro ovo de Colombo do enigma Souza Cruz. O fumo ocupa o segundo lugar na pauta de exportações do setor primário brasileiro, com geração anual de R$ 3 bilhões. São 600 mil toneladas embarcadas por ano, cultivadas por mais de 165 mil produtores. Dentre os 103 países que se dedicam à cultura do tabaco, o Brasil é o terceiro produtor mundial ? num crescimento, em oito anos, que coincide com o avanço dos malfeitores. Da receita de R$ 13 bilhões gerada pela atividade fumageira, quase 50% foi parar nos cofres públicos na forma de impostos. No ano passado, foram R$ 6,4 bilhões para o leão da Receita. ?O Brasil pode prescindir desta significativa fonte de dinheiro que provém de um produto lícito, altamente tributado e devidamente regulamentado??, indaga Durante. Não, é a resposta. No caminho da exportação, e em busca de maior eficiência operacional, a Souza Cruz decidiu instalar todas as suas atividades no Rio Grande do Sul, onde são colhidas 433 mil toneladas anuais, em terras de 70 mil produtores. Em maio passado, a Souza Cruz assinou acordo para a expansão de seu parque industrial gaúcho ? para lá, além da fábrica já existente, inaugurada na cidade de Cachoeirinha em 2003, serão transferidos o departamento gráfico e o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (investimentos de US$ 10 milhões anuais), ambas hoje no Rio. Essa simplificação na produção é outro passo importante para o bom desempenho da empresa.
Nada disso, nada dessa pequena revolução liderada inicialmente pelo presidente anterior, Flávio Andrade, e agora por Nicandro Durante, faria sentido se a Souza Cruz não colasse suas atividades ao que se conhece, no mundo corporativo, como responsabilidade social. Simples assim: não há tolos entre os executivos da Souza Cruz, e todos eles sabem que negociam um produto que prejudica, sim, a saúde. Neste aspecto, não há muito o que fazer. Tratava-se, portanto, de mostrar que são conscientes. Mais do que isso, era preciso bater tambores a respeito da boa conduta empresarial, ética e transparente. Ela vai dos funcionários portadores de deficiências que trabalham na sede do Rio de Janeiro, num belo edifício ao lado da Igreja da Candelária, passa pela ampla distribuição de informações financeiras pela internet (www.souzacruz.com.br), pelo reduzido uso de agrotóxicos nas plantações de fumo e chega a uma iniciativa pioneira em todo o mundo ? a divulgação pública dos ingredientes da marca Free. O objetivo: tornar mais acessível os detalhes do produto e eliminar crenças de que ingredientes nocivos são adicionados na fabricação do cigarro, apenas para incrementar o vício.
Segundo Durante, é um passo a mais numa postura já tradicional. Em 1996, a Souza Cruz antecipou-se à legislação, informando nas embalagens os patamares de nicotina e alcatrão. Transparência, numa modalidade de negócios delicada, para dizer o mínimo, é mais uma chave do faturamento recorde dessa gigante do tabaco, e ajuda a traduzir o fenômeno. ?Temos a obrigação de reforçar, a todo instante, essa transparência?, resume o presidente. Sem hipocrisia, como manda a norma das atividades polêmicas. Nicandro Durante não fuma ? no entanto, em todo o edifício sede da Souza Cruz, é permitido fumar, mesmo na academia de ginástica. E não há cheiro de cigarro, graças a um tecnológico sistema de ventilação e absorção do ar. É o mundo ideal, de liberdade (fuma quem quer) e limpeza ambiental. Muito distante do que ocorre na rua, na vida real, do lado de lá das amplas janelas com vista magnífica para a Candelária. O problema é que esse mundo é o desafio da Souza Cruz.
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US$ 10 milhões é o investimento anual da Souza Cruz em pesquisas, cujo objetivo é desenvolver produtos de menor risco |
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A SOUZA CRUZ …
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… E OS PIRATAS
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