O enredo soa inverossímil. Poderia ter saído dos best-sellers de John Grisham ou Dan Brown, mas é real. Envolve magnatas do petróleo, banqueiros e advogados suíços, juízes de toga e telas de Gauguin, Van Gogh e Renoir. Em meados de novembro, uma corte de Genebra decidiu arrestar 54 obras-primas de artistas franceses emprestados pelo Museu Pushkin, de Moscou, à Fundação Pierre Gianadda, de Martigny, no Cantão de Valais. O lote retido destinava-se a pagar a dívida do governo russo com uma empresa helvética, a Noga, do ramo hoteleiro. O proprietário, Nessim Gaon, nascido na Arábia Saudita, alega ter um crédito de US$ 900 milhões com o país de Vladimir Putin, contraídos ao longo de onze anos.

Ele forneceria alimentos em troca de petróleo, mas os russos não cumpriram sua parte. As pinturas foram asseguradas em US$ 1 bilhão, daí a idéia de usá-las como moeda de troca jurídica. Rapidamente, o escândalo ganhou cores diplomáticas. A decisão foi barrada por uma liminar, os quadros retornaram à Moscou mas a história deixou um rastro polêmico.

Em um comunicado, a empresa de Nessim Gaon esclareceu sua posição na peleja: ?A Noga foi obrigada a pedir a apreensão das obras de arte como resultado de 14 anos de uma batalha desigual com uma potência mundial, a segunda maior exportadora de petróleo do mundo, nação que não cumpre suas obrigações e tenta passar a imagem de um Estado de direito?. É batalha duradoura. Em 2000, os executivos da Noga tinham conseguido confiscar dois jatos de propriedade do governo russo, um Sukoi e um Mig. Conseguiram também recolher um veleiro durante uma regata na Riviera Francesa. Nada prosperou ? até que os advogados imaginaram que poderiam surrupiar as obras-primas do Museu Puhskin.

O primeiro efeito do imbróglio internacional é o medo. Instituições ocidentais habituadas a receber coleções russas já não escondem o incômodo em importar trabalhos que podem vir a ser arrolados em decisões judiciais. ?É muito chocante ver telas universais serem tratadas como moeda de troca diante de dívidas contraídas por países?, disse Charles Saumarez Smith, diretor da National Gallery de Londres, ao jornal The New York Times. Em 2003, uma tela de Ticiano, ?São Sebastião?, emprestada pelo Museu Hermitage, de São Petersburgo, foi retirada das paredes londrinas porque autoridades suíças ameaçaram retê-la.

?Histórias desse gênero podem nos levar a reduzir os empréstimos de obras?, admite Henri Loyrette, diretor do Louvre, em Paris. ?Sempre exigimos garantias legais, mas o receio existe, e casos como o do Museu Pushkin são preocupantes?. Em outras palavras: quadros não são dinheiro. No Brasil, hoje, há situação semelhante. Os administradores da massa falida do Banco Santos decidiram levar a leilão parte da coleção do banqueiro Edemar Cid Ferreira. Um juiz federal, Fausto de Sanctis, disse não e impôs a entrega das obras ao Museu de Arte Contemporânea de São Paulo.

Escreveu o juiz: ?as obras de arte possuem valor inestimável, histórico, cultural e artístico para a humanidade, de tal forma que seu valor econômico não é o mais relevante?.

Há um novo dilema no mundo globalizado, em que o capital circula com altivez mas a beleza estética, não. Vigora pavor semelhante ao de ditadores como Augusto Pinochet, preso na Inglaterra em 1998, acusado de crimes contra os espanhóis que moravam no Chile durante a ditadura militar.

Depois daquele episódio, ele nunca mais pôs os pés fora do Chile. Se um sujeito como Pinochet pára de circular (na semana passada ele voltou a ser detido em Santiago, aos 90 anos, acusado de corrupção), o mundo nada perde, ao contrário ? é o avesso do que ocorre quando telas de Gauguin, Van Gogh e Renoir são forçadas a permanecer nas mofadas reservas técnicas de museus mal cuidados como os da antiga União Soviética.