DINHEIRO – O presidente americano George Bush chega ao Brasil nos próximos dias, propondo a criação de uma “Opep do etanol”. O que isso representa?
RUBENS RICUPERO –
O tema da mudança climática está sendo percebido no Brasil por um ângulo importante, mas que é apenas um fragmento da totalidade. Estou falando da experiência bem-sucedida do Brasil no etanol, como alternativa à queima de combustíveis fósseis. Isso é muito importante, mas é só a ponta do iceberg.

DINHEIRO – Por quê?
RICUPERO
– Os outros aspectos da questão ambiental, que nos colocam grandes desafios, ainda não vêm sendo discutidos adequadamente. E isso é fruto das polêmicas sobre a política externa. Eu diria que tanto os defensores quanto os detratores do Itamaraty pecam por falta de imaginação, ao limitar a discussão a temas que estão esgotados, como Mercosul, Alca e Hugo Chávez, entre outros.

DINHEIRO – Falta uma agenda nova?
RICUPERO
– Certamente. A política externa do governo Lula teve alguns eixos principais no primeiro mandato: a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, a busca de um resultado satisfatório nas negociações agrícolas da Organização Mundial do Comércio e a construção de uma integração da América do Sul a partir do Mercosul. São propostas que, por razões distintas, não podem mais avançar por iniciativa brasileira.

DINHEIRO – Estamos paralisados?
RICUPERO
– Ficamos só administrando o dia-a-dia. Ninguém percebeu que o debate sobre isso é estéril. Os críticos ao Itamaraty, da imprensa conservadora, não são capazes de oferecer alternativas viáveis. No caso da Alca, por exemplo, houve um momento em que o chanceler Celso Amorim perguntou ao Robert Zoellick, dos Estados Unidos, se eles estavam prontos para fazer concessões caso o Brasil aceitasse tudo que eles propunham. E a resposta foi negativa.

DINHEIRO – E o que se deve fazer?
RICUPERO
-É preciso partir para uma agenda inteiramente nova. E eu não tenho enxergado nenhuma criatividade no Brasil. Os americanos intuíram algo importante, com essa vinda do Bush, que tem como carro-chefe a questão do etanol.

DINHEIRO – O Brasil pode lucrar muito com isso?
RICUPERO
– A missão é importante, mas é preciso sobriedade. Uma parceria entre Brasil e Estados Unidos nessa questão só fará sentido se eles estiverem dispostos a rever sua estrutura tarifária. Uma alternativa seria a abertura de uma cota-tarifa para o Brasil. Os americanos abririam seu mercado para uma quantidade fixada por eles de açúcar e álcool brasileiros numa tarifa diferenciada, que pode ser até nula. Aparentemente, eles não estão dispostos a fazer isso. Por enquanto, tem muita retórica. Mas o ouvinte agudo não pode se deixar enganar pelo samba-enredo. Os americanos costumam dizer o seguinte: where is the beef? Tem muita batata, salada, mas onde está o bife? É essa a pergunta que temos de fazer.

DINHEIRO – E quais são as oportunidades fora do etanol?
RICUPERO
– A renovação da agenda ambiental vai muito além. Mas antes é preciso dizer que os biocombustíveis, embora tenham um futuro brilhante, não serão a varinha mágica. Até porque existe um fator limitante, mesmo no Brasil, que é a terra. A cana expulsa a pecuária e outras culturas, como a soja, que são empurradas para regiões de fronteira. Se for levado ao extremo o programa do biocombustível, por absurdo nós vamos destruir a floresta. O balanço vai ser negativo.

DINHEIRO – Mas então o quadro é ruim?
RICUPERO
– Não. O Brasil tem em mãos uma oportunidade que jamais terá. Na questão da mudança climática, que vai dominar a agenda internacional, nós fazemos diferença. Nos outros temas da geopolítica global, como terrorismo, a não-proliferação de armas e Oriente Médio, o Brasil é irrelevante. E a proposta que o Lula lançou, no início do seu mandato, de um fome zero mundial, foi um furo n’água. A grande oportunidade é a questão do aquecimento, que tira o sono de todo o mundo. É um problema universal, totalizador e global. E não pode haver uma solução que não passe pelo Brasil, até porque nós estamos entre os países que mais emitem gases, em função das queimadas.

DINHEIRO – Ok, mas como o Brasil pode lucrar com o ambientalismo? O escritor amazonense Samuel Benchimol defendia que os países ricos pagassem pela preservação da Amazônia. O sr. é favorável?
RICUPERO
– Há de se estudar fórmulas para isso, numa analogia do conceito que se criou dos certificados de crédito de carbono. Já há um mercado para isso. Pode haver um mecanismo que compense o não-desmatamento. Mas é preciso que o Brasil mude sua postura. Nossa conduta ainda é defensiva e ela deve ser pró-ativa. E nós só ganharemos respeito, credibilidade e liderança moral quando decidirmos acabar de vez com o desmatamento.

DINHEIRO – O mundo quer que o Brasil preserve, mas também espera do Brasil uma oferta crescente de alimentos. É possível combinar as duas coisas?
RICUPERO
– Eu estou convencido de que sim. E não creio que a necessidade de alimentação das pessoas vá depender da destruição das florestas. Até porque estão surgindo várias revoluções tecnológicas na agricultura e na pecuária. Mas o governador do Mato Grosso, o Blairo Maggi, age numa linha diferente. Ele, quando assumiu em seu primeiro mandato, extinguiu a polícia florestal. É importante que se diga que a preservação da Amazônia deveria ser uma prioridade em defesa do interesse nacional. É a floresta que gera o ciclo das chuvas no Cerrado e, portanto, garante a prosperidade do agronegócio. No fundo, nós ainda temos o pavor de perder a liberdade de queimar a mata amazônica.

DINHEIRO – É isso mesmo?
RICUPERO
– Eu fui ministro do meio ambiente. E sei que os interesses econômicos ligados à soja e à madeira são muito fortes. E isso, quando invade a floresta, tem que ser combatido com muita decisão. Tem que ser o peso da lei e ponto final. O consenso não funciona. Veja o caso da ministra Marina Silva. Ela está isolada. Tanto é que se aprovou um projeto de concessão privada para madeireiras na Amazônia. Alguém acredita na nossa capacidade de fiscalização, por meio do Ibama? Até para defender o agronegócio, repito, é preciso preservar.

DINHEIRO – Como assim?
RICUPERO
– A mudança climática, perversamente, atinge mais os países tropicais. Os países temperados, como o Canadá e a Rússia, que hoje têm uma estação biológica de crescimento, podem até melhorar. E há dados gravíssimos nesse relatório do aquecimento global, que não estão sendo debatidos no Brasil. Em 50 anos, o que é um horizonte relativamente curto, boa parte da floresta amazônica vai virar savana. Cidades, como Fortaleza e Recife, e outras regiões, como a Ilha do Marajó, no Pará, e a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, poderiam sumir do mapa. Dezenas de milhões de pessoas ficariam desabrigadas. É uma catástrofe. No entanto, isso vira nota de rodapé na imprensa. Nós só vamos ter a cana e o etanol se tivermos as chuvas que vêm da Amazônia. Se não, esquece.

DINHEIRO – O que deveríamos fazer?
RICUPERO
– Qualquer país, consciente de si próprio, reuniria os seus melhores cientistas para quantificar o que pode acontecer. Mas ninguém está interessado. O tal PAC, por exemplo, não tem um projeto ambiental.

DINHEIRO – Impera ainda uma mentalidade de curto prazo no Brasil?
RICUPERO
– Claro. O que está implícito é o desejo de continuar desmatando. E eu não posso pensar com uma mentalidade puramente comercial. Hoje, eu comparo o desmatamento e a venda de madeira ilegal ao tráfico negreiro, algo que o Brasil só aboliu depois de muita pressão internacional e de muito pau. No fundo, foi bom que a armada inglesa fizesse o que fez, porque a nossa posição era moralmente inaceitável, assim como é hoje. Nós temos um preço a pagar, que é acabar com o desmatamento. E se o Brasil não for capaz de fazer isso, o mundo deveria abolir o comércio de produtos que aqui são extraídos de forma predatória.

DINHEIRO – A restrição viria de fora para dentro?
RICUPERO
– Isso mesmo. Em 1993, quando eu fui ministro, eu defendi uma interdição internacional do mogno, porque o Brasil não tem competência de impedir os bandidos da indústria madeireira de entrar em reservas indígenas e devastar a floresta. Se nós não conseguimos acabar com o mosquito da dengue, como vamos acabar com isso? Agora, se o mundo proibir a venda dessa madeira da floresta, é como interditar o tráfico de marfim para proteger os elefantes. Se o pessoal de Zâmbia não é capaz, façamos nós.

DINHEIRO – Mas é melhor que a iniciativa seja brasileira, não?
RICUPERO
– Certamente. Preservar a Amazônia é do nosso interesse. Mas é também de interesse do resto do mundo. Portanto, é algo que nos dará autoridade moral e liderança. Depois do Protocolo de Kyoto, o próximo passo se dará em 2012. Se nós liderarmos um movimento, saindo da posição defensiva, estabelecendo certificados pelo não-desmatamento e pelo reflorestamento, poderemos até vir a ser ressarcidos financeiramente pela comunidade internacional. Outra coisa: o Brasil tem muito a fazer na recomposição das matas ciliares. E isso pode ser uma grande alternativa para os assentamentos rurais.

DINHEIRO – Preservar pode gerar compensações financeiras ao Brasil?
RICUPERO
– Sim. O grande fundo global, que é gerido pelo Banco Mundial, poderia financiar o Brasil. Há uma oportunidade histórica diante dos nossos olhos.

DINHEIRO – E por que nós ainda não acordamos?
RICUPERO
– Os interesses políticos e econômicos ligados à destruição são fortes. Mas eles podem ser vencidos por incentivos econômicos, na direção da preservação.