18/03/2025 - 17:49
Em 2015, ao ver seu vilarejo nos Andes ameaçado pelos efeitos do aquecimento global, Saul Lliuya processou a alemã RWE. Vitória nos tribunais abriria um precedente legal sério para a justiça climática.Enquanto no verão Saúl Luciano Lliuya cultiva milho, batatas e quinoa, no inverno ele leva turistas às alturas geladas dos Andes. Mas agora o fazendeiro do lugarejo montanhês de Huaraz, no Peru, está no foco da atenção global. Pois do outro lado do mundo, na Alemanha, na cidade de Hamm, um tribunal superior regional julga o processo por riscos climáticos que ele abriu contra a companhia de eletricidade RWE.
“Estou um pouco animado, mas também preocupado”, comenta Lliuya. Essa é a terceira vez que ele viaja à Alemanha para acompanhar o processo climático. Nove anos atrás, com o apoio de ONGs, fez história ao acusar a empresa alemã de ameaçar sua casa com a cheia do lago glacial acima da cidade.
Segundo o peruano, a RWE, uma grande emissora de gases do efeito estufa, estaria aumentando significativamente esse perigo ambiental com suas atividades poluidoras; portanto deveria assumir a responsabilidade e arcar com parte dos custos para a proteção de Huaraz.
Nas audiências dos próximos dias se decidirá se a casa do agricultor de fato corre perigo de inundação e, caso positivo, até que ponto a RWE pode ser responsabilizada. O primeiro processo de Lliuya, em 2015, foi rejeitado por um tribunal alemão, porém dois anos mais tarde uma instância regional mais alta permitiu o recurso.
Para o também guia turístico, trata-se de combater as mudanças climáticas e o consequente derretimento das geleiras, e de “acertar as contas com quem causou os danos”. “Eu sinto uma grande responsabilidade.”
Interpelada pela DW, a multinacional sediada na cidade de Essen contra-argumentou: “Se houvesse tal queixa sob a legislação alemã, todo motorista também poderia ser responsabilizado. Nós consideramos isso legalmente inadmissível, e a abordagem errada, de um ponto de vista sociopolítico.”
A RWE, que não atua no Peru, assegura que sempre respeitou as regulamentações legais alemãs. Além disso, suas usinas estão submetidas ao Esquema Europeu de Comércio de Emissões, “sob o qual temos que pagar por cada tonelada de CO2”.
“A gente tem que começar de algum lugar”
A comunidade andina de Huaraz fica num vale abaixo de um lago glacial cujo nível tem subido continuamente, devido ao degelo progressivo. Segundo um estudo internacional, realizado por cientistas da Suíça e dos Estados Unidos, só entre 1990 e 2010 o volume de água do lago multiplicou-se por 34.
Os autores do processo acrescentam que as temperaturas mais elevadas e o derretimento do permafrost – ou pergelissolo, a camada da crosta terrestre permanentemente congelada – também agravam o risco de blocos de gelo ou rocha caírem da parede montanhosa de 2 mil metros de altura para dentro do lago. E isso poderia ter consequências dramáticas para a casa de Lliuya e para os cerca de 50 mil habitantes da comunidade.
Em 1941, uma avalanche causou uma enchente devastadora em Huaraz, deixando cerca de 1,8 mil mortos. E o agricultor conta que recentemente uma precipitação de pedras encheu o lago até a borda.
O glaciar próximo ao vilarejo vem se dissolvendo continuamente há mais de 36 anos. Um estudo de 2021, publicado pela revista britânica Nature, concluiu que o fenômeno não é explicável sem a mudança climática.
Segundo uma análise de 2014 da Greenpeace e da ONG especializada em legislação ambiental Climate Justice Program, a RWE seria responsável por 0,47% de todas as emissões nocivas ao clima global desde o princípio da era industrial.
Por isso, Saúl Lliuya quer que a companhia alemã contribua com uma parcela proporcional, para financiar medidas protetoras. Estas incluiriam sistemas de drenagem para que a água do degelo escape da laguna do glaciar, e uma ampliação da barragem local. Uma simulação de 2016 demonstrou que um nível d’água mais baixo reduziria significativamente o risco para a comunidade, mesmo na eventualidade de uma queda de rochas ou avalanche.
A advogada do peruano, Roda Verheyen, afirma que seu cliente não está interessado numa indenização para si, mas sim que a RWE assuma sua parcela dos custos. Para a jurista, o caso se refere basicamente ao princípio de “o poluidor paga”: “Alguém faz algo que pode ser permitido ou proibido, mas que acarreta consequências incrivelmente amplas e inaceitáveis, neste caso a mudança climática.”
Em 2023, um tribunal ordenou uma inspeção in loco para avaliar o perigo. Numa audiência anterior, estabeleceu-se que os efeitos transfronteiriços da mudança climática criariam uma espécie de “relação de vizinhança global”, mesmo que os danos ocorram a milhares de quilômetros do agente poluidor.
Verheyen reconhece que a RWE é apenas uma entre muitas poluidoras – apesar de, admitidamente, uma das maiores da Europa –, “mas a gente tem que começar de algum lugar”.
Vitória não impedirá geleiras de derreter
Embora esteja sendo julgado na Alemanha, o caso tem o potencial de estabelecer um precedente internacional sério, comenta Petra Minnerop, professora de direito internacional da Universidade de Durham: “Se o tribunal deferir a queixa, será um sinal importante para outros grandes emissores de dióxido de carbono.”
Desde o início da ação judicial, em 2015, uma série de processos transfronteiriços foram apresentados em outros países. Na Holanda, ONGs acusaram a Shell de atentar contra o direito à “proteção contra a mudança climática”, mas não conseguiram uma ordem para que a multinacional do gás e petróleo reduzisse rapidamente à metade as suas emissões.
Na França, a gigante dos combustíveis fósseis TotalEnergies foi alvo de um processo que exige que a empresa alinhe suas práticas aos termos do Acordo do Clima de Paris, que visa limitar o aquecimento global a 1,5ºC acima dos limites pré-industriais – uma meta que muitos já dão por perdida.
Minnerop está convicta que, no longo prazo, não bastará negociar questões de responsabilidade pelos riscos climáticos num nível exclusivamente nacional: “Só atingiremos justiça climática se a encararmos como uma tarefa séria no âmbito das leis internacionais, e a perseguirmos com o grau de prioridade ditado pelas provas científicas.”
Saúl Luciano Lliuya menciona planos das autoridades peruanas de construir um dique. Porém não há qualquer previsão para um início das obras, e o dinheiro da RWE seria útil, assim como uma atenção internacional intensa em relação ao projeto.
Os sentimentos do ativista do clima são ambivalentes: se perder, Huaraz ficará sem proteção perante as enchentes. Se ganhar, será um momento feliz, que significará “progresso no campo legal”, mas que, por outro lado, “não vai impedir que as geleiras continuem a derreter”.