RESUMO

 Maior varejista de alimentos do País boicota o agronegócio brasileiro para defender protecionismo da França no setor
● Além de não engajar os europeus contra o Mercosul, teve de se retratar
● Mais uma vez arranhou sua imagem no Brasil

CEO global do grupo Carrefour, Alexandre Bompard conseguiu unir os brasileiros como há muito não se via. O executivo francês foi responsável por uma das maiores crises diplomáticas entre o Brasil e a França, ao afirmar, no último dia 20, que a rede não compraria mais carne do Mercosul. Para justificar a medida, disse que os produtos da região não atendem “às exigências e às normas francesas”. Fez isso em apoio aos agricultores franceses que são contra o Acordo Comercial de Livre-Comércio entre a União Europeia e o bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Mas a manifestação nacionalista não fortaleceu a França na queda de braço entre os blocos econômicos. Ao contrário, gerou reações imediatas que atravessaram o Atlântico e provocaram uma resposta proporcional e vigorosa do Brasil, forçando o recuo da rede. Foi um fiasco.

A carta de Bompard havia sido endereçada a Arnaud Rousseau, presidente do sindicato de agricultores de seu país. Eles haviam realizado diversas manifestações nos últimos dias contra o acordo de livre-comércio, temendo que os produtos brasileiros mais baratos ameacem a produção local. A malcalibrada iniciativa protecionista estava em linha com os interesses do presidente Emmanuel Macron, crítico feroz do tratado. Mas se mostrou um desastre de relações públicas, diplomático e comercial.

Em resposta ao boicote francês, gigantes do setor como JBS, Marfrig e Masterboi pararam de fornecer carne à rede de supermercados no Brasil

A reação das autoridades brasileiras foi contundente e certeira. Os produtores brasileiros responderam de forma avassaladora.
● Decidiram parar de fornecer carne à rede Carrefour no Brasil, que é a segunda maior operação do grupo francês no mundo (é o líder do varejo alimentar do Brasil, incluindo os supermercados com sua marca e o atacarejo Atacadão).
● Vinte e três frigoríficos brasileiros aderiram à suspensão do fornecimento, incluindo gigantes do setor como JBS (maior fornecedor do grupo), Marfrig e Masterboi.
● Os reflexos não demoraram a aparecer. Na segunda-feira (25), supermercados da rede já começaram a registrar a falta de produtos em suas gôndolas, o que teria afetado mais de 150 unidades.
● Representantes de 44 associações da cadeia produtiva brasileira assinaram uma carta aberta a Bompard protestando contra as críticas à qualidade das carnes.

A reação política foi igualmente firme.
● O Palácio do Planalto e o Itamaraty atuaram. O governo federal exigiu uma retratação formal. A Embaixada brasileira em Paris divulgou uma nota lamentando as declarações do CEO.
● Arthur Lira, presidente da Câmara (onde o agronegócio tem uma bancada poderosa), defendeu uma “resposta clara” do Brasil contra o “protecionismo exagerado”. Também cobrou uma retratação pública de Bompard e disse, em um encontro com empresários, que a o Congresso pautará uma lei que exigirá a reciprocidade econômica entre os países.
● “O movimento de prestigiar os produtores franceses é legítimo. O problema é quando ele fala em não cumprimento de regras sanitárias. Aí não aceitamos. Eles compram a carne brasileira há 40 anos”, criticou o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. “Quem ofender a qualidade dos produtos brasileiros terá resposta à altura”, acrescentou.

(Mateus Bonomi; Suamy Beydoun)

A batalha fez o grupo francês recolher suas armas. O Carrefour Brasil lamentou a situação e defendeu sua boa relação com o agronegócio nacional. “Infelizmente, a decisão pela suspensão do fornecimento de carne impacta nossos clientes, especialmente aqueles que confiam em nós para abastecer suas casas com produtos de qualidade e responsabilidade”, divulgou a empresa em nota.

A Embaixada da França no Brasil entrou em contato com o Ministério da Agricultura para tratar da questão. O grupo foi forçado a recuar na terça-feira (26), quando reconheceu a “grande qualidade” da carne do Brasil e fez uma retração formal. O CEO global, pivô da crise, manifestou-se diretamente. O Ministério da Agricultura informou ter recebido uma carta assinada pelo próprio executivo. Nela, Bompard diz com todas as letras: “Pedimos desculpas”. “Sabemos que a agricultura brasileira fornece carne de alta qualidade, respeito às normas e sabor”, acrescentou.

A crise, que começou como uma disputa comercial, ganhou contornos políticos. O presidente Lula se mostrou indignado com a declaração de um deputado francês, que aproveitou para faturar contra os produtores brasileiros e comparou a carne brasileira a “lixo”. O mandatário retrucou que o agronegócio brasileiro precisava continuar crescendo para “causar raiva” em quem faz esse tipo de crítica. Mais importante, reafirmou a intenção do Brasil em impulsionar o Acordo de Livre-Comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Essa é a verdadeira questão que gerou toda a crise.

(Fotoarena)

A estimativa é de que o acordo crie um mercado comum de 780 milhões de pessoas e um fluxo de comércio de até R$ 274 bilhões em produtos manufaturados e agrícolas. Algo estratégico para os dois blocos econômicos, especialmente num momento em que os EUA emborcam em um protecionismo feroz.

Mas esse tratado assusta os países que subsidiam fortemente seus produtores rurais, caso do país de Macron. Além da França, há outras nações europeias que ainda resistem ao acordo, ainda que minoritárias. É o caso da Polônia, cujo primeiro-ministro, Donald Tusk, se solidarizou com o francês nas críticas. O ministro da Agricultura da Itália, Francesco Lollobrigida, também criticou publicamente o acordo. Já o governo brasileiro tem a esperança de que o tratado seja anunciado na próxima reunião de cúpula do Mercosul, em 5 e 6 de dezembro, em Montevidéu. É pouco provável, mas o fato é que a pressão francesa pode ter tido um efeito contrário.

Em termos de comércio bilateral, a questão é menor.
● A França tem uma participação de apenas 0,5% da venda internacional da carne brasileira.
● A União Europeia soma entre 3,5% a 5%.
● Já a China é, de longe, o principal comprador da proteína animal do País, adquirindo cerca de 50% da produção nacional.

Fávaro foi direto ao ponto: “Quando a França começa a falar e duvidar da nossa carne, querendo fazer embargo econômico através de pretextos sanitários e ambientais, nós vamos ter a altivez de responder. Não vamos admitir que questionem a qualidade da nossa carne”.

(Frederick Florin)

A investida protecionista criou mais uma crise corporativa para o Carrefour, que já teve sua imagem arranhada no Brasil em duas ocasiões.

● Na primeira, em 2009, Januário Alves de Santana, um vigilante negro, foi espancado por seguranças em uma unidade em Osasco, na grande São Paulo. O episódio de racismo virou caso de polícia e foi apontado por entidades de defesa dos direitos humanos como exemplo de intolerância contra negros e ganhou repercussão nacional. Os protestos começaram nas redes sociais, algo ainda novo na época, e foram parar na “escalada” (abertura) do jornal Nacional.

● Mas o caso mais grave aconteceu em 2020. No dia 19 de novembro, na véspera do Dia da Consciência Negra, um consumidor da rede, João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado e morto por seguranças no estacionamento de um supermercado da rede em Porto Alegre.

Agricultores franceses estão intensificando os protestos contra o acordo Mercosul-União Europeia porque temem produto mais competitivo do Brasil

Apesar das conclusões da Polícia Civil e do Ministério Público, que apontaram o racismo como motivo torpe, uma das três qualificadoras do homicídio, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul afastou essa hipótese. O processo corre sob sigilo, está na fase de recursos e não há prazo para a realização do júri.

Esse foi um dos maiores escândalos corporativos da história do país, e o grupo desde então luta para reverter a repercussão negativa. Certamente a nova crise torna tudo mais difícil. Para tentar neutralizar o imbróglio mais recente, segundo fontes do mercado publicitário, o Carrefour planeja colocar anúncios em TVs para se explicar sobre o boicote à carne brasileira.

Em 1963, pescadores franceses provocaram incidente no Nordeste e foram apoiados pelo general Charles de Gaulle (Crédito:AFP)

Numa escala maior, a disputa também arranha a relação entre Brasil e França, nações que mantêm laços históricos de amizade. Mas nem sempre foi assim. Num dos episódios mais emblemáticos, os dois países protagonizaram nos anos 60 a chamada “Guerra da Lagosta”, que ganhou as manchetes da imprensa pela captura ilegal do crustáceo na costa brasileira.

O país europeu havia perdido colônias no continente africano, e as lagostas se tornavam escassas nas regiões que ainda controlava. Os pescadores franceses voltaram sua atenção para os exemplares do Nordeste brasileiro, e barcos deles acabaram apreendidos em 1963.

Na época comandada pelo general Charles de Gaulle, a França decidiu enviar um contratorpedeiro para proteger suas embarcações e passou a insistir em levar o caso a uma corte internacional. Na véspera do carnaval, a crise atingiu o clímax. O presidente João Goulart mobilizou a Marinha brasileira, e um esquadrão da Força Aérea foi destacado para patrulhar a área.

Os dois lados acabaram recuando. O general francês reverteu a presença militar e encerrou o incidente. O conflito não evoluiu para uma guerra, mas virou samba. No mesmo ano, Moreira da Silva lançou “A Lagosta é Nossa”. A batalha também gerou uma frase célebre, que desde então marca a relação dos dois países (apesar de falsa). Charles de Gaulle teria declarado: “O Brasil não é um país sério”. Posteriormente, um diplomata brasileiro admitiu a autoria da boutade.

Em 2020, João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado e morto por seguranças em unidade do Carrefour em Porto Alegre (Crédito:Divulgação)