i126741.jpg

Salão vazio: é sexta-feira, 26 de junho, e não há mais negócios ao vivo na BM&F. Operadores preparam-se para o fim de sua profissão, marcado para a terça-feira 30

 

i126742.jpg

 

Compro 10 a 20! – berrou o operador Juliano Pandolfo, da SLW Corretora, esticando o braço direito e trazendo a mão em direção ao peito, olho no olho com o colega Ivo Francisco de Sena, da Bradesco Corretora. Pandolfo comprou dez contratos de futuro de Índice Bovespa, com vencimento em agosto, a 52.020 pontos.

Eram 17h14 da terça-feira 30, quando seu grito ecoou pela derradeira vez no pregão viva-voz da BM&F. Outro operador, brincalhão, apregoou uma ordem absurda. “Vai tomar banho! Vai tomar banho!”, responderam em coro os colegas em torno do cercado de alumínio, no canto esquerdo do salão.

SILÊNCIO FINAL:
os últimos dias do pregão foram arrastados, sem nada para fazer a não ser lamentar o passado que se foi. Valtinho “Cara de Vaca” (de camisa rosa e gravata desamarrada) é um dos demitidos

 

i126743.jpg

i126744.jpg

 

A cena marcou o fim da roda de negociação da bolsa e enterrou para sempre uma tradição centenária, o encontro diário de operadores no centro velho de São Paulo para, a plenos pulmões, executarem as ordens de compra e venda de ativos disparadas por investidores de qualquer lugar do mundo – até da esquina.

A partir de agora, não tem mais brincadeira no pregão. Não tem mais confusão. Para Pandolfo, não tem mais profissão. – O que vai fazer agora? – pergunto ao ex-operador de pregão da SLW. Ele acaba de receber uma placa comemorativa de algo impossível de celebrar, o último negócio ao vivo na BM&F. No metal gravado, palavras, palavras, palavras e um boleto de papel que nunca será preenchido. – Não sei. Fui demitido.

Com os olhos úmidos e um nó na garganta, ele conta que tentará a sorte em uma nova atividade, já que não foi aproveitado em outra função pela corretora em que trabalhava. Está cursando economia na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, a Fecap. Vítima dos computadores, os novos donos do pregão da bolsa, Pandolfo busca conhecimento numa instituição fundada no início do século passado por um apaixonado pela tecnologia, o conde Antônio Álvares Penteado.

O empresário foi um dos primeiros a mecanizar as lavouras de café e a substituir os escravos pelos colonos europeus, numa época em que a bolsa de valores paulista era uma adolescente e a de mercadorias nem tinha nascido. Naqueles tempos, os corretores se reuniam em círculos, as corbeilles, e os funcionários da bolsa escreviam as cotações em imensas paredes negras, com giz.

A revolucionária tecnologia do silício só calou a voz dos operadores na Bovespa em 2005, depois de 115 anos. Na jovem BM&F, os computadores levaram 23 anos e meio para prevalecer. Na BM&FBovespa do século XXI, quarta maior bolsa do mundo, toda e qualquer ordem será executada agora somente pelos computadores. Para os investidores, a nova era da bolsa começa com mais eficiência e gastos menores por transação.

No último pregão viva-voz foram fechados apenas sete negócios. Mais velozes e menos sujeitos a erros de execução, os sistemas eletrônicos de compra e venda têm outra vantagem crucial para as corretoras: custam menos que o ser humano. “O fim do pregão viva-voz era inevitável. Não dava mais lucro nem se pagava”, diz Manoel Félix Cintra Neto, que presidiu a BM&F até sua fusão com a Bovespa, em maio de 2008. Na estreia da BM&F, em 31 de janeiro de 1986, o computador central travou e o boleto do primeiro negócio foi assinado – de cabeça para baixo – pelo convidado de honra, o governador Franco Montoro.

Na última transação, na terça-feira passada, a desconfiança histórica com os sistemas eletrônicos havia sido totalmente superada e o trabalho dos operadores de pregão, vistos como uma espécie de backup humano pelos dirigentes da bolsa, ficara obsoleto.

 

“Os gladiadores da bolsa perderam a voz”

i126745.jpg

anos 70:

a Bolsa de Valores de São Paulo refletia a pujança do milagre econômico brasileiro e os operadores ainda usavam as corbeilles para fechar negócios

 

i126746.jpg

anos 80:

gritaria e empurra-empurra marcam os frenéticos pregões da Bovespa, com as rodas mais nervosas movendo-se pelo imenso salão

 

i126748.jpg

anos 90:

nasce a BM&F, casa de mercadorias e futuros que iria se fundir com a Bovespa em 2008 e criar a quarta maior bolsa do mundo

 

i126747.jpg

hoje:

uma sala fria e silenciosa abriga os computadores das corretoras no 5o andar da BM&F. A tecnologia venceu

 

Vai dar saudade, mas fazer o quê? É a tecnologia, não tem jeito”, diz Lázaro de Mello Brandão, presidente do conselho de administração do Bradesco.

Octagenário, ele liderou e viveu inúmeras transformações no mercado financeiro nas últimas décadas e, na segunda-feira 29, fez soar o alarme do antigo salão da Bovespa, na estreia das ações da VisaNet (leia reportagem á pág.79), onde mais de 1,2 mil operadores se digladiavam num passado não muito distante. Hoje, o local é um salão de eventos e de educação financeira.

A poucos metros dali, na BM&F, o destino do pregão será parecido. Na prática, os cerca de 200 operadores que ainda frequentavam o gigantesco vão não tinham mais o que fazer. Em junho passado, 98% dos 22 milhões de contratos de derivativos financeiros e de commodities foram negociados eletronicamente.

O último pregão viva-voz, de 15 minutos, foi parte da homenagem da bolsa aos profissionais que levantaram a empresa no grito. Eles passavam mais tempo jogando dados na lanchonete da bolsa do que executando ordens no subsolo.

O ambiente estava desolado nas últimas semanas, como se vê nas fotos acima. Eles perderam a guerra contra a tecnologia quando a bolsa adotou o pregão simultâneo e os negócios migraram de vez para o sistema eletrônico.

O processo começou com o mercado de taxas de juro, em novembro de 2007. As rodas presenciais de futuro de dólar e de Ibovespa demoraram mais para esvanecer, ao longo de 2008, pois ainda tinham algum valor graças aos tempos de grande nervosismo econômico.

Os operadores mais experientes captavam na hora as viradas de humor dos mercados, as tendências de preços e, no contato permanente com as mesas, transmitiam informações valiosas para os negócios dos clientes e fundos de investimento das corretoras e bancos. Hoje, essa percepção é instantânea nas telas de computador das instituições e das casas das pessoas – basta saber ler os sinais.

“O viva-voz acabou, mas a profissão de operador de mercado continua”, diz o ex-operador Ivan Sant’Anna, que trabalhou nas bolsas do Rio, de Chicago e Nova York e virou escritor. A revolução foi tamanha que, em junho passado, duas corretoras já tinham instalado seus próprios computadores dentro da BM&FBovespa, numa sala fria e tediosa do 5º andar.

O novo serviço, chamado de co-location, permite ordens diretas no servidor da bolsa, com ganho de alguns milésimos de segundo e milhões de reais para os robô-traders, programas de computador que operam sozinhos, sem interferência humana após a programação.

Os operadores do pregão que se prepararam para essa transformação gradual, estudando os sistemas e as técnicas de negociação eletrônica, conseguiram migrar para as mesas e levaram sua experiência para cima.

Muitos não sabem o valor que têm na competição com os jovens formandos das universidades. “O operador de pregão tem aptidão para decidir muito rápido e sob pressão. E tem de dar a ordem correta”, diz Everaldo Araújo Oliveira, 38 anos.

Oliveira é um dos poucos que conseguiram sair da gritaria da BM&F e chegar ao topo da vida corporativa – é presidente da corretora espanhola CM Capital Markets no Brasil. Henrique Metzger, um operador especial que trabalhava por contra própria no pregão, vai tentar a sorte numa empresa de investimentos, agora com recursos de terceiros. “Vou atrás de clientes”, conforma-se. Difícil é aceitar o fim da linha e buscar novos rumos, depois de anos e anos fazendo a mesma coisa.

“As pessoas são resistentes à mudança. Mas a vida é uma mutação e o cara tem de se adaptar”, afirma Sant’Anna. Infelizmente, não é a regra no último batalhão de “gladiadores da BM&F”, como foram definidos pelo escritor.

Segundo relatos ouvidos pela DINHEIRO nos últimos três dias do pregão viva-voz, a grande maioria dos operadores remanescentes não fez os cursos de qualificação oferecidos pela universidade corporativa (o Instituto Educacional BM&FBovespa), não encontrou espaço no mercado atual e foi demitida por seus empregadores, as corretoras.

 

i126751.jpg

Último ato: (em sentido horário) Na terça 30, a roda final do Ibovespa futuro, o ex-operador Oliveira, o “enterro” com marcha fúnebre e os operadores do último negócio (Pandolfo é o da esquerda)

 

“Os nossos cursos continuarão abertos por dois anos para quem trabalhou este ano no pregão e quer se aperfeiçoar”, promete Edemir Pinto, presidente da BM&FBovespa. Poucos pretendem voltar aos bancos escolares. Muitos abriram processos trabalhistas contra as corretoras, alegando problemas físicos causados pelo ofício estressante e barulhento. “Fomos tratados como lixo. Não sei fazer outra coisa e vou ficar sem dinheiro.

O que vou dizer para a escola dos meus filhos? Que não posso mais pagar?”, questiona um operador de 50 anos, que pede para não ser identificado. “Estamos nos sentindo traídos”, diz Valtinho “Cara de Vaca”, como é conhecido Valter Marinho Rosa, operador da Hencorp-Concor, também demitido. “Nas mesas, a percepção é que os operadores de pregão são ladrões ou corruptos”, reclama.

 

i126749.jpg i126750.jpg

 

Um salmo colado na frente do crachá amarelo dá a medida do seu desconforto existencial: “Invoca-me no dia da angústia; Eu te livrarei.” Aos 33 anos, sem diploma superior, “Cara de Vaca” ganhava R$ 3 mil, um quinto do que recebiam os operadores mais disputados no auge da profissão, nos anos 90. Ele pensa em vender pneus com o pai e abrir uma loja de móveis para a mulher, no bairro paulistano do Tatuapé. É o que diz aos colegas que se abraçam e choram na festa de despedida preparada pela bolsa.

Nesse momento, o pregão viva-voz está sendo “enterrado”, com direito até a canto da marcha fúnebre, quando funcionários da bolsa desmontam parte de um dos nove pits abandonados.

Ao cair da noite da terça-feira, muitos olham com tristeza a roda do Ibovespa futuro onde ocorre o último pregão viva-voz. Foi ali que o colega Paulo Sérgio Silva, 36 anos, transtornado, deu um tiro no próprio peito, em 17 de novembro de 2008. A bala perfurou a foto do filho no verso do crachá. Paulinho Pipoco, como passou a ser chamado, sobreviveu. A vida continua

Em junho, 98% dos negócios de um total de 22 milhões de contratos na BM&F foram fechados de forma eletrônica