Peregrino das mais ilustres ondas.? Assim Públio Ovídio (43 a.C ? 17 d.C) , um dos maiores poetas da humanidade, descreveu o esturjão na saga Metamorfose. A epopéia mitológica se confunde com a própria história do peixe cujas ovas resultam no melhor caviar do mundo. Na obra, o poeta romano narra em versos a criação do planeta Terra. O esturjão, um dos mais antigos animais do globo, com cerca de 200 milhões de anos, serviu ao poeta como metáfora dos primeiros tempos. Parte dessa odisséia pode estar próxima do fim ? o beluga, uma de suas espécies, caminha para a extinção. A caça predatória, os derramamentos de óleo, a construção de barragens e a falta de controle puseram o animal na lista das espécies com dias contados. Evidentemente, a obtenção do caviar pressupõe a morte dos bichos ? mas isso não significa o descontrole total, o desrespeito às regras. Contra a matança, a ONU estipulou cotas de exportação para os principais produtores, o Irã e a Rússia, banhados pelo Mar Cáspio, de onde sai 90% da produção mundial de esturjão. É uma luta inglória.

Colher de marfim. O mercado negro que surgiu em torno do esturjão ultrapassa as fronteiras e movimenta milhões de dólares. Na Romênia, o tráfico de caviar beluga é uma praga. Pescadores da região do delta do rio Danúbio dirigem-se à capital, Bucareste, para vender as ovas em sigilo. Quem compra o beluga dos infratores paga um preço 50 vezes menor do praticado no mercado internacional. Ou seja, desembolsam US$ 55 por uma iguaria que custa, em média, US$ 3 mil o quilo. O lucro proporcionado para quem a revende é exorbitante. Por isso, o tamanho da indústria ilegal é 10 vezes maior do que a regulada pelas organizações internacionais. A prova concreta do alarmante indicador é o consumo no mercado norte-americano. Em 2002, os Estados Unidos compraram 3 mil quilos de beluga, 80% a mais do que as exportações legais do caviar.

A procura cresce ano a ano e a produção cai na mesma proporção. Consumir caviar é um ritual que envolve história e classe. Desde que os czares russos começaram a tratá-lo como uma especiaria de requinte, no século 17, o mundo rendeu-se aos seus encantos. Ele é considerado por chefs de cozinha como símbolo máximo da alta gastronomia, ao lado da trufa e do foie gras. ?O beluga tem sabor único?, diz João Leme, chef do restaurante francês Rôti, de São Paulo. Uma pitada desse caviar é um oceano de sensações, e por isso deve ser degustado puro. Há regras básicas para consumi-lo. Recomenda-se o uso de uma colher de marfim ou madrepérola. ?Para não interferir no sabor da iguaria?, diz István Wessel, amante do beluga. O modo como o caviar é retirado da lata também segue um ritual. A colher deve ser inserida no centro das ovas e girada sobre o próprio eixo para que seja retirada sem afetar o restante do caviar. Como acompanhamento, um copo de vodca gelada é imprescindível. ?A bebida derrete a gordura das ovas?, diz Wessel.

Há diferenças entre o beluga e as outras espécies de ova. Existem três tipos de caviar na região do Mar Cáspio: o beluga, com ovas maiores e negras, o osetra, com tamanho médio e cor dourada e, por último, o sevruga, o menor e o mais barato de todos, com uma coloração acinzentada. Por ser saborosa e rara, uma porção de ovas do beluga é o diamante lapidado em meio a pedras brutas. Cada fêmea pode pesar mais de 1 tonelada e carregar facilmente mais de 10 milhões de ovas. Mas a pesca desenfreada não permite que o peixe alcance este tamanho. Nos últimos anos, o peso máximo da espécie tem chegado a 400 quilos. Se nada for feito, dentro de pouco tempo não chegará a 100 quilos. ?O mais triste nisso tudo é ver que uma tradição milenar desaparecerá?, diz o chef Leme.