23/02/2021 - 16:16
O prefixo “Fin” na palavra “Fintech” não está ali por acaso. A Robinhood descobriu isso durante a semana passada ao tomar um susto com a volatilidade das ações da GameStop.
A oscilação de preço em GME não foi nada trivial. Sair de abaixo de U$$ 20 e, em menos de 10 dias, negociar perto de U$$ 500 está longe de ser algo que acontece todo dia. Esse movimento todo não foi em uma linha reta: houve um ziguezague que há bastante tempo não se via. Após fechar o pregão do dia 26/1 cotada ao redor dos US$ 145, GME abriu no dia 27/1 a US$ 328, operou na mínima de US$ 250 para fechar cotada a US$ 345. No dia 28/1, abriu negociada a US$ 470, passou pela mínima de US$ 126 e fechou na casa dos US$ 200. Ufa.
Esses deslocamentos podem colocar em risco a solidez financeira dos agentes envolvidos nessas operações, e foi isso que de fato aconteceu com a Robinhood na semana passada. “Sendo uma corretora, temos que atender a muitos requisitos financeiros, incluindo obrigações relativas ao capital líquido perante a SEC, bem como a depósitos nas câmaras de compensação. Alguns desses depósitos flutuam de acordo com a volatilidade dos mercados, e podem ser substanciais no momento atual. Esses requisitos existem para proteger os investidores e o mercado”, divulgou a corretora na noite de quarta-feira, 27/1. Isso é correto e verdadeiro – e foi provavelmente uma novidade para muitos dos seus clientes.
A liquidação de operações com ações no mercado americano acontece dois dias depois da transação, o que no jargão chamamos de T+2. Ou seja, quem comprar uma ação de qualquer companhia aberta num mercado público na data de hoje, apesar de já estar correndo o risco de preço da ação, somente paga a compra em T+2. Nesses 2 dias, quem garante o compromisso da compra perante a câmara de compensação é a corretora através da qual a operação foi feita. A câmara de compensação, pelo seu lado, garante a operação das corretoras perante o mercado como um todo.
O que acontece se a operação não for honrada? Se em T+2 não existir caixa suficiente na conta do cliente para pagar o preço da ação, a corretora tem o direito de vender a ação a mercado e apurar caixa para pagar o preço, correndo o risco de ter de vender a ação que foi comprada a, digamos, US$ 500 por US$ 200, ou seja, amargando uma perda de 60%. Essa perda precisa ser coberta pela corretora, que em contrapartida vai tentar receber do cliente que originalmente comprou a ação. Se a corretora tem vários clientes que fizeram essa mesma operação e, sem condições de honrá-las, amargaram perdas de 30%, 40%, 50% ou 60%, poderia existir um cenário em que a corretora não tem caixa para cobrir as perdas desses clientes.
Consequentemente, ela daria um calote no mercado (no jargão, entraria em “default”).
Para evitar esse cenário, existe um sistema de garantias por trás do mecanismo para compensar essas transações. As câmaras de compensação, em função da avaliação de risco que fazem de cada corretora, exigem garantias em dinheiro para cobrir eventuais perdas de clientes que poderiam não honrar operações. Quanto mais volátil o preço das ações a que uma corretora se encontra exposta, mais risco ela representa perante as câmaras de compensação e, consequentemente, ao mercado como um todo. Nesse caso, mais garantias são exigidas.
No dia 28 de janeiro, o CEO da Robinhood, Vlad Tenev, e sua equipe lá no vale do Silício, receberam das câmaras de compensação aqui em Nova York a mensagem: precisamos de mais garantias. A exposição da corretora ao preço da ação da GameStop (e outras 12 empresas) acendeu todos os alarmes e disparou todas as sirenes de atenção. Tenev foi transparente em seu testemunho no “Financial Services Committee” realizado na Câmara dos Deputados essa semana: “Aproximadamente às 5:11 da manhã, horário de Nova York, a NSCC (principal câmara de compensação utilizada pela Robinhood) nos enviou uma mensagem automática dizendo que a Robinhood Securities tinha um déficit de depósitos de aproximadamente US$ 3 bilhões”. Basicamente, a NSCC estava comunicando a Robinhood que os US$ 700 milhões que a corretora tinha em depósitos de garantias não era um valor suficiente. Considerando o risco que representava, naquele momento as garantias precisavam ser de US$ 3,7 bilhões.
Os detalhes ainda são obscuros, mas a corretora necessitou de um aporte de US$ 1 bilhão dos seus acionistas, além de precisar sacar linhas de crédito com bancos ao redor de US$ 500 milhões a US$ 600 milhões. Não tivesse tido o suporte de seus acionistas, a corretora provavelmente teria entrado em colapso.
Para não aumentar seu risco perante a câmara de compensação, a corretora ainda proibiu seus clientes de comprarem ações da GameStop e das outras 12 empresas. Eles somente poderiam vender, mas não comprar. Apesar de extremamente criticada, a atitude foi totalmente correta: seu risco estava elevado e uma outra chamada de garantias poderia levar a corretora a uma situação de default.
Muito se discute agora o que fazer para evitar novas situações como essa. A principal ideia sendo debatida é a de diminuir o tempo para a conclusão do ciclo de liquidação, trazendo-o para tempo real ou, ao menos, para T+1. De fato, o mercado vem, aos poucos, reduzindo essa janela. Quando tudo se negociava em papel, nas décadas de 1970 e 1980, levava-se cinco dias úteis para liquidar uma operação. Em 1993, T+5 passou a ser T+3. Em 2017, o mercado conseguiu migrar para T+2. Evoluir para T+1 vai acontecer no seu devido tempo, e é um passo na direção certa.
Mas não é aí que está o problema.
O problema, como sempre, está na gestão de riscos. A Robinhood conhece, ou deveria conhecer, as regras de mercado. Sabe que a alta volatilidade no preço de uma ação a qual seus clientes estão expostos aumenta o risco da corretora perante o mercado, que vai exigir margens de garantia excepcionais – como aconteceu, inclusive. Nesse caso, à medida em que a volatilidade de preço aumentava, o correto a fazer do ponto de vista de gestão de riscos era exigir cada vez mais garantias dos clientes, ou mesmo restringir a quantidade de ações que poderia ser comprada para tentar evitar a parada total, como aconteceu. É impossível saber de fora se tudo isso foi feito ou cogitado, mas considerando tudo o que ocorreu dá para afirmar que a Robinhood foi pega de surpresa. E quem é pego de surpresa no mercado financeiro não está gerindo riscos adequadamente.
A Robinhood pode ter a ambição de querer ser o Facebook ou o Google do mercado financeiro. Ser disruptivo no mercado financeiro, apesar de não ser impossível, é bem mais complicado. Afinal, uma corretora não é apenas uma empresa de tecnologia. É uma empresa financeira de tecnologia – e isso muda muita coisa.
Esse caso da GameStop ainda vai dar assunto. Ainda há muitas questões que não foram esclarecidas. Uma coisa, porém, é certa: o termo “Fin” na palavra “Fintechs” não está aí sem motivo. E, para que não surja nenhuma dúvida, é sempre bom lembrar que “Fin” vem antes de “Tech” – uma escolha adequada.