24/08/2020 - 13:02
O artigo de hoje chega uma semana atrasado. O motivo está longe de ser glamouroso: várias partes do estado de Nova York ficaram sem energia elétrica por quase uma semana como consequência da passagem da tempestade tropical Isaias. Perdemos o serviço na terça-feira, às 14h, e o retorno aconteceu somente na segunda-feira seguinte, ao redor das 18h. Muita gente ainda ficou sem energia até a metade da semana.
Faltar energia por aqui costumava ser um evento raro. Acostumado a eles no Brasil do final dos anos 1990, lembro que fiquei surpreso com a falta de sistemas de back-up durante o blackout de 2003, meu primeiro ano morando nos EUA, episódio que deixou a cidade de Nova York no escuro por dois dias. No edifício em que eu trabalhava à época (hoje ocupado pela News Corporation, no Rockefeller Center), o único elevador que funcionava por meio de um gerador era o de carga – e precisava ser utilizado com parcimônia. Os computadores e a rede de telefonia ficavam fora da cobertura, bem como os sistemas de ar condicionado, essenciais para o bom convívio das pessoas no verão quente e úmido daqui (aquela foi, talvez, a semana mais quente do ano, assim como a semana passada).
Nesses quase 20 anos, o que mudou é que eventos que costumavam ser raros estão cada vez mais frequentes. Sem contar os eventos climáticos, como furacões e afins, o número de horas que os consumidores americanos passam sem energia elétrica mais que dobrou desde 2016. Colocando na conta os eventos climáticos, esses números são significativamente maiores.
Durante o blackout de 2003, foram perdidas 592 milhões de horas de consumo de energia (utilizando a métrica consumidor-horas, que multiplica o número de horas sem energia pelo número de consumidores efetivamente sem o serviço). Em 2012 foi a vez do furacão Sandy, que teve efeitos devastadores e que, pela primeira vez até então, fez suspender o serviço de metrô na cidade de Nova York, o que causou a perda de 775 milhões de horas. Já o furacão Maria, em 2017, provocou a perda de 3,4 bilhões de horas, ou seja, quase seis vezes o blackout de 2003.
Na minha visão, dois fatores principais explicam o aumento da frequência desse tipo de evento, e o aumento significativo de horas de consumo perdidas. O primeiro, e mais relevante, é a inadequada manutenção de uma rede de transmissão e distribuição antiga que, a cada ano, fica mais vulnerável. Um estudo de 2015 do Energy Information Administration (EIA), a agência de análise e estatística do Departamento de Energia dos Estados Unidos, concluiu que 70% dos transformadores no país foram instalados há 25 anos ou mais. Além disso, 60% dos circuit breakers têm mais de 30 anos, e 70% das linhas de transmissão estão em funcionamento há mais de 25 anos.
Em 2010, as companhias de geração, transmissão e distribuição de energia investiram, juntas, cerca de US$ 75 bilhões em Capex. Em 2015, ano do estudo acima, esse investimento já passava dos US$ 100 bilhões. Mesmo esse aumento de mais de 30% em Capex, no entanto, não foi capaz de melhorar a qualidade da infraestrutura instalada no país. Em 2019, houve um investimento de US$ 124 bilhões, e ainda assim acredito que as métricas relativas à idade da infraestrutura instalada não apresentaram melhora significativa.
Dados do Edison Electric Institute (EEI), associação que representa todas as companhias elétricas privadas americanas, indicam que o setor opera com geração negativa de caixa: o fluxo de caixa operacional, que em 2019 foi de US$ 95,5 bilhões, não banca o investimento em Capex. Isso acontece desde 2010, e só tem piorado. Apesar disso, a indústria tem aumentado a cada ano o pagamento de dividendos aos acionistas.
Isso tudo leva ao segundo motivo da queda na qualidade da prestação desses serviços ao longo do tempo: não existe capital disponível na indústria para renovar o estoque de infraestrutura existente. Ou seja, estamos diante da combinação de uma rede antiga e mal mantida com uma indústria extremamente intensiva em capital, e sem capital disponível para investir.
A solução para esse problema não é obvia. Subir o preço cobrado aos consumidores pela energia elétrica? Os consumidores residenciais tiveram um aumento de cerca de 13% na última década; os comerciais, cerca de 5%, e o preço para o consumo industrial se manteve praticamente estável, segundo dados do EIA. Esta relativa estabilidade somente prova como é difícil aumentar esses preços. Quebrar os monopólios também não me parece ser uma solução viável: qualquer empresa que assumir a atividade das empresas incumbentes terá que fazê-lo com uma quantidade de capital fora do razoável para qualquer investidor privado. Com exceção das empresas geradoras de caixa (existem algumas), a continuar assim não vejo outra saída a não ser estatizar o sistema. Sim, acredite, nos Estados Unidos da América.
Nesse meio tempo, como investidor e consumidor, o que fazer?
Como investidor, as empresas produtoras de geradores back-up, como a Generac Holdings (símbolo GNRC, na NYSE) por exemplo, parecem ter um mercado em expansão. A GNRC vem experimentando crescimento anual ao redor dos 10% em penetração de mercado. Apesar de já estar negociando em bolsa a múltiplos esticados, a companhia estima que cada 1% de aumento em penetração é uma oportunidade de mercado de US$ 2 bilhões, o equivalente a um ano de receitas da empresa usando o balanço de 2019. Vale a pena ficar de olho.
E como consumidor? Nos dias de hoje, bem diferente de 2003, muito mais gente já tem gerador back-up. Na semana passada era possível, sem esforço, ouvir o barulho de vários deles ao redor, além de sentir o cheiro típico de diesel queimado. Entretanto, bastante gente (como eu) ainda não tem o seu. Assim, como consumidor, vou seguir o exemplo dos meus vizinhos: você PRECISA instalar um gerador se quiser morar por aqui. Já entrei na fila para adquirir o meu.