27/07/2004 - 7:00
DINHEIRO ? A economia brasileira voltou a crescer em 2004. É um fenômeno sustentável?
PAULO RABELLO DE CASTRO ? O Brasil oscila entre extremos de grandeza e fracasso que não correspondem aos verdadeiros pólos da economia nacional, que são mais próximos um do outro. O que isso quer dizer? Primeiro, que o Brasil dificilmente entra em colapso. Quem acha que o Brasil vai afundar não enxerga a força do agronegócio e da base industrial. Por outro lado, o Brasil também não cresce como os tigres asiáticos porque seu limite superior é dado pela nossa opção pela mediocridade.
DINHEIRO ? O que se prevê é uma expansão de 4% do PIB em 2004.
CASTRO ? Como o resultado do ano passado foi zero, na média ficamos com 2%. Essa tem sido a taxa de crescimento da economia nos últimos dez anos. O Brasil tem baixo risco de colapso, mas tem alto risco de mediocridade. E a verdade é que o Brasil, que fez a opção mediocrizante, realmente tem atingido seus objetivos. As escolhas da elite governante, que tem medo de ousar e medo de imaginar, levam ao baixo crescimento e à falta de perspectivas de grande parte da juventude.
DINHEIRO ? Quais são os pecados da elite?
CASTRO ? O grande erro é aceitar a disfuncionalidade do Estado. Os governos no Brasil, que já arrecadam mais de R$ 400 bilhões por ano, não existem para servir. Existem para ser servidos. São os grandes agentes subversivos, os promotores do atraso. O segundo ponto é a pobreza da elite brasileira, que é psicologicamente importada. Ela não vive mais no Brasil. Ela só faz dinheiro aqui. Em terceiro lugar, temos uma combinação de política econômica que é a pior possível.
DINHEIRO ? É uma política que, supostamente, agrada o mercado. Como dono de uma agência de classificação de risco, o sr. não deveria aplaudi-la?
CASTRO ? Mas ela está errada em sua essência. Temos uma política monetária excessivamente restritiva, que contribui para aumentar a dívida pública, e uma política fiscal frouxa, uma vez que, apesar dos superávits primários, o governo ainda tem um déficit nominal alto, entre 4% e 5% do PIB, graças aos juros. O Brasil vive entre o neoliberalismo dos micrólogos e o neoliberalismo dos macrófilos.
DINHEIRO ? O que são esses animais?
CASTRO ? Os micrólogos são aqueles que dão toda ênfase à agenda microeconômica. Eles acreditam que alguns pequenos ganhos de competitividade do setor privado, com uma lei de falências aqui e outra pequena mudança trabalhista ali, trarão a volta do crescimento. Sem desmerecer a importância dessas reformas, os micrólogos poderão ter a ingrata surpresa de que o Brasil crescerá 0,3% acima da sua média de 2% dos últimos anos caso elas sejam aprovadas. Os neoliberais macrólogos são aqueles que ouviram falar que ortodoxia é bom, mas aplicam o remédio errado para um país como o Brasil. É a turma dos juros altos e dos superávits primários. Eles acreditam que, estabilizando a dívida interna, todo o resto vem depois. É gente que só assiste a missa na primeira fila.
DINHEIRO ? O Joaquim Levy, do Tesouro Nacional, é o nosso principal macrólogo?
CASTRO ? Como o Levy tem que ser o homem mau que corta os gastos, você pode achar que ele é o chefe da gangue que comete erros macroeconômicos. Talvez não seja verdade. Também seria injusto culpar unicamente o Henrique Meirelles, que não é um formulador de política econômica. Mas o fato é que eles elegeram uma mistura de políticas monetária e fiscal que é muito ruim.
DINHEIRO ? Como assim?
CASTRO ? A mistura de juros altos com a política de superávits primários é nefasta e tende a impedir o cumprimento dos dois objetivos centrais dos macrólogos: a meta de inflação e a estabilização da dívida pública. As duas políticas se sabotam mutuamente.
DINHEIRO ? De que forma?
CASTRO ? Os juros altos têm aumentado a dívida pública e a resposta do governo, para produzir seus superávits fiscais, tem sido o aumento da carga tributária, o que gera mais custos para as empresas e mais inflação. A opinião educada já percebeu que o Brasil virou a república rentista. Começou a bater o desconfiômetro na sociedade. Será que não existe uma outra maneira de crescer e viver sem inflação?
DINHEIRO ? Existe?
CASTRO ? Claro. O que o Brasil tem feito é exatamente
o oposto de tudo o que deveria estar fazendo para crescer. E o crescimento deve ser sempre o grande objetivo de qualquer política econômica. Eu costumo mostrar aos clientes uma tabela que relaciona as taxas de crescimento de vários países com seus níveis de carga fiscal. O Brasil está no mesmo quadrante de vários países europeus, que têm um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social. Nós somos os únicos panacas que aceitamos entregar tanto dinheiro ao setor público a troco de tão pouco. Os estudos internacionais mostram que um Es-
tado com menos de 15% do PIB é incapaz de prover serviços modernos. No entanto, acima de 25% do PIB,
só estão os países como os europeus, que já se conformam com o baixo crescimento.
DINHEIRO ? O sr. propõe uma ruptura com a política econômica?
CASTRO ? Evidente. Até porque hoje é desaconselhável produzir no Brasil. E os bancos, que não emprestam para o setor privado, se tornaram meros agentes do financiamento da dívida pública. O problema central do Brasil é um Estado que consome 40% do PIB e precisa ser ajustado para ficar contido nos seus próprios limites. Portanto, nós precisaríamos de uma política fiscal apertada e de uma política monetária mais frouxa. A escolha do governo Lula tem sido o oposto. O necessário não é ajustar a política econômica, mas sim fazer uma inversão de rota. O Brasil precisa de uma ruptura ideológica, até porque a ruptura que se esperava do PT não aconteceu.
DINHEIRO ? O que se diz é que é impossível cortar gastos, em razão de todas as vinculações constitucionais.
CASTRO ? Um Estado que gasta mais de R$ 400 bilhões não pode dizer que gasta pouco. Deveria vigir para o Estado a mesma regra que vale para cada um de nós, em nossas casas. Faltou dinheiro, cortem-se os gastos. Sem cláusulas pétreas. É por isso que uma revisão constitucional, como notou o ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal, é tão importante. O Brasil precisa decretar uma guerra à gastança, como Ronald Reagan fez nos Estados Unidos. Mas não é só isso. No Brasil, fala-se de juros altos como se isso fosse uma contingência da vida. Como se nada pudesse ser feito a respeito. As pessoas já nem têm vergonha de não ter pressa.
DINHEIRO ? E o que pode ser feito?
CASTRO ? A questão dos juros básicos da economia e dos spreads deveria ser foco de reuniões sucessivas entre governo e bancos. O Brasil não agüenta mais tanto conformismo. Os juros e o risco-País são altos porque o padrão monetário do Real é tão fraco quanto o de antes da estabilização. A classificação de risco da República é a mesma de dez anos atrás.
DINHEIRO ? Como seria feito o ataque aos juros?
CASTRO ? Primeiro, é preciso rever o padrão de indexação da economia. Nosso sistema financeiro não gira em reais, ele gira em IGP, um índice de preços de atacado. Um exemplo: por que manter índices de preços como o IGP-DI, que são contaminados pela taxa de câmbio, e corrigem uma série de contratos brasileiros? Indexar contratos de privatização pelo IGP-DI foi um dos maiores desastres econômicos do País, quando o correto teria sido indexar por índices de preços, como o IPCA. Não confiando na sua moeda, o governo bebeu seu próprio veneno. Além disso, uma condição básica para reduzir os juros é elevar substancialmente as reservas externas do País.
DINHEIRO ? Apesar da política econômica que se diz responsável, a dívida pública continua crescendo. Haverá risco de calote?
CASTRO ? Como classificador de risco, digo que a
idéia de reestruturar a dívida é de uma estupidez atroz. Serviria apenas para desarrumar a casa de vez e
criar um deus-nos-acuda. Mas nós da SR Rating hoje achamos que a nota da dívida interna é ligeiramente pior do que a da dívida externa. O Brasil vem piorando, degrau a degrau. A cada degrau, nós nos enganamos
um pouco mais. A dívida pública salta de 30% para
35% do PIB, depois de 35% para 40% e hoje já está beirando os 60%. É um sinal evidente de que a escolha dita ortodoxa talvez não seja tão responsável assim. Repito: a dívida está crescendo porque estamos com
a mistura errada de políticas.
DINHEIRO ? Se isso continuar assim, o clamor pela reestruturação não irá crescer?
CASTRO ? Pode ser. Com o próximo choque externo, não importa qual seja, haverá uma nova onda de dúvidas sobre a sustentabilidade da política atual, que pretende estabilizar a dívida mas não atinge tal resultado. Não devemos nos iludir no caminho da perdição. No Brasil, nós continuamos tomando a estricnina dos juros altos dizendo que isso é fazer o dever de casa.
DINHEIRO ? O caminho argentino é uma saída?
CASTRO ? Tenho dito aos meus clientes que isso é muito improvável porque a sociedade brasileira tem a exata noção do seu potencial. Apesar do governo, existe um Brasil que se mexe, que trabalha e que produz. Para chegar a um calote da dívida, o governo precisaria de uma coalizão política muito forte, que não existe no País. O default no Brasil só aconteceria se chegasse pela porta dos fundos, em decorrência de uma crise internacional muito séria que me parece hoje improvável.
DINHEIRO ? A dívida interna poderá ser domada?
CASTRO ? Pode. Com um crescimento entre 3,5% e 4% do PIB, sustentável por vários anos, e juros de 7% ao ano, a dívida pública poderá cair sim. E mais: com um superávit primário decrescente, uma vez que o que deve cair é a despesa com juros. Se o Brasil não pode ser visto como um bom risco pelos agentes financeiros internos, é melhor mesmo ir para o default. Essa é a conversa que o Estado brasileiro tem que ter com o mercado. Mas não pode ser só uma ameaça. O governo tem que mostrar que vai aumentar as reservas externas, diminuir o tamanho do Estado e fazer o dever de casa verdadeiro, não o dever de casa da falsa ortodoxia de botequim.