DINHEIRO – O sr. é contra o uso dos cartões corporativos também no Judiciário?
MARCO AURÉLIO MELLO Em setembro do ano passado, quando começaram a surgir as primeiras notícias sobre os cartões corporativos, eu procurei saber se estávamos praticando o cartão no âmbito da Justiça Eleitoral. E fui surpreendido com três ou quatro tribunais que tinham o cartão. Propus, então, ao meu colegiado, que se inserisse numa resolução a impropriedade da adoção da prática no Judiciário Eleitoral. E propus também que se oficiasse ao Tribunal de Contas da União.

DINHEIRO – Sua reação, porém, Entrevista / Marco Aurélio Mello parece isolada, pois o Executivo considera um instrumento válido.
MARCO AURÉLIO O exemplo, de fato, vem de cima. E estamos assistindo à generalização do cartão corporativo. E ele facilita as coisas. Até na nossa vida privada, se não tivermos um controle maior, nós extravasamos os limites. É muito fácil pagar com um cartão de plástico, um cartão magnético. Um cartão de crédito. Então, é o que nós estamos vendo. Fiquei estarrecido com o número de servidores no âmbito federal a usarem o cartão. Disse-me um senador que são 11.400.

DINHEIRO – Em muitos casos, não é complementação de salário?
MARCO AURÉLIOSim, primeiro você tem um verdadeiro salário in natura, com compra de coisas que não dizem respeito às necessidades da administração pública. Em segundo lugar, há essa inviabilidade de controle com a dissimulação. Em terceiro lugar, afasta-se um princípio que é básco quando se quer adquirir qualquer coisa para o setor público, que é a licitação. Na compra com cartão, escolhese o estabelecimento que fornece o bem.

DINHEIRO – Mesmo no caso de pequenos valores, o cartão não se justifica?
MARCO AURÉLIO Para pequenos valores, a lei viabiliza a compra de uma forma facilitada, pelo convite ou pelo leilão. Há outro aspecto. Se o objetivo era, realmente, adquirir sem uma burocracia maior, como se partiu logo após para o saque em pecúnia? E aí, o emprego desse dinheiro como fica? Surge o problema da publicidade.

DINHEIRO – Em que sentido, ministro?
MARCO AURÉLIO A publicidade é uma mola mestra no setor administrativo. É a transparência, é a prestação de contas ao contribuinte.

DINHEIRO – O argumento é que a publicidade poderia criar problemas de segurança para o presidente e sua família.
MARCO AURÉLIO Eu não consigo ver dessa forma, a não ser que se tenham deficiências quanto à segurança do presidente da República e que não queiram revelar essas deficiências. Quando eu substituí o presidente Fernando Henrique Cardoso em quatro oportunidades meteóricas, por ocasião de viagens, fiquei abismado com a segurança. Cheguei mesmo a dizer ao general Alberto Cardoso: “Sou um homem simples e, passados esses dias, vou voltar a minha vida normal.” O aparato em termos de segurança é enorme, e é bom que seja revelado porque inibe qualquer prática.

DINHEIRO – A exceção defendida pelo Planalto não se justifica?
MARCO AURÉLIO Não encontro uma justificativa aceitável para excluir-se a prestação de conta quando utilizado numerário que é do setor público. Não há por que abrir uma exceção no que é utilizado dinheiro público. Nós estamos vivendo numa república. E numa república a coisa pública pertence ao povo, como disse o professor Fábio Konder Comparato. Fora isso, partimos aí para uma perda de parâmetros, para um sentimento de pouca importância quanto aos gastos.

DINHEIRO – Estaria prevalecendo no País a idéia de que o dinheiro público não pertence a ninguém?
MARCO AURÉLIO É verdade. Eu estava no Rio e escutei entrevista de um dos envolvidos num episódio da Prefeitura de Magé. Ele estaria participando de uma licitação superfaturada, num conluio, e quando questionado, de forma singela, num ato falho, chegou a dizer: “Todos nós temos de ganhar e, afinal de contas, esse dinheiro não é de ninguém.” É de todos! O dinheiro é de todos! É do povo brasileiro.

DINHEIRO – No caso específico do Palácio do Planalto, não há necessidade de sigilo sobre os cartões corporativos?
MARCO AURÉLIO – Nós não temos na Constituição Federal um preceito que, interpretado e aplicado, deságüe na necessidade de sigilo.

DINHEIRO – Diante dos desvios, a solução, a exemplo do que o sr. fez no TSE, seria extinguir os cartões?
MARCO AURÉLIO Temos inúmeros órgãos públicos funcionando sem o cartão corporativo. Até o governo passado, nós não tínhamos o cartão. Por que adotar o cartão? Modernismo? Não vejo necessidade. Apresenta facilidades que ficam muito bem no setor privado. No setor público, não.

DINHEIRO – A idéia, segundo a ministra Dilma Rousseff, era, e continua sendo, acabar com a conta tipo B até concentrar todos os pequenos gastos no cartão, que seria mais transparente.
MARCO AURÉLIO Sim. Dizem que haveria um controle maior. Mas o resultado foi inverso. Eu próprio fiquei perplexo quando soube que em vários tribunais usam o cartão.

DINHEIRO – De novo, a justificativa é a complementação do salário.
MARCO AURÉLIOMas é um erro. A administração pública é regida pelo princípio da legalidade estrita. No setor privado pode-se fazer tudo que não esteja previsto em lei. No setor público, não. Só se pode fazer o que está autorizado. E vencimentos têm que ser fixados por lei, inclusive o dito salário in natura. Em vez de se receber em pecúnia, recebe-se em bens. É uma distorção. E uma distorção terrível.

DINHEIRO – O governo fala de disciplinar o uso dos cartões, com um regulamento mais rígido. É uma saída?
MARCO AURÉLIO Voltamos à tecla em que tenho batido com freqüência. Nós não precisamos no Brasil de mais leis. Já temos um entulho legislativo que somente gera insegurança e conflitos de interesse. Precisamos, sim, de um avanço cultural que leve à observância das leis existentes. É um problema seriíssimo. E se perdem os parâmetros. Qual é o critério a prevalecer? É o critério legal. É o que está estampado na lei. É a regra estabelecida.

DINHEIRO – E o cartão, pelo visto, dá a facilidade de o funcionário público gastar mais do que a lei permite.
MARCO AURÉLIOPois é, gastam além, e em objetivos que não dizem respeito ao interesse público. O descontrole se mostrou total.

DINHEIRO – O sr. não acha que o País está perdendo a noção de interesse público? Está ficando fora de moda?
MARCO AURÉLIOEstá. Nota-se uma mesclagem do público com o privado. Está havendo quase uma promiscuidade, considerados os dois setores. E os setores são bem distintos. Nas grandes empresas, por exemplo, apenas os dirigentes têm o cartão corporativo. Mesmo assim, com fiscalização pelo conselho, por quem de direito da própria empresa. O dirigente se autolimita. No setor público, no entanto, há idéia de que o dinheiro não é de ninguém. É um equívoco. É uma visão míope, que merece a excomunhão.

DINHEIRO – Uma das origens dessas distorções não está no fato de as pessoas quererem ganhar no setor público salários do mercado privado?
MARCO AURÉLIO A tarefa pública é para servir, e não se servir do cargo, visando se locupletar. O setor público dá estabilidade e segurança quanto à percepção de uma carreira. No regime anterior, havia até aposentadoria com proventos idênticos aos vencimentos. Isso terminou com a reforma recente da Previdência. Não se pode abraçar uma carreira pública para enriquecer. Muito menos para fazer fortuna, para deixar herança.

DINHEIRO – O que se pode esperar daqui em diante?
MARCO AURÉLIOVejo uma quadra alvissareira. Quando essas mazelas afloram, qual é a tendência? É partir- se para uma cautela maior. Partir- se para a manutenção dos freios inibitórios um pouco mais rígidos.

DINHEIRO – O sr., recentemente, também se pronunciou contra a tentativa de quebra de sigilo bancário pela Receita Federal. Por quê?
MARCO AURÉLIOQual é a regra que está no rol das garantias constitucionais da Carta de 1988 que Ulysses Guimarães apontou como carta cidadã? A privacidade, o sigilo de dados. A exceção corre à conta do afastamento do sigilo por ordem judicial para investigação ou processo criminal.

DINHEIRO – Qual é a dúvida, então?
MARCO AURÉLIOIndaga-se se a Receita, que atua fazendo as vezes da União na relação jurídica tributária, que é parte, eu diria numa visão quase leiga, parte credora, pode ter acesso às contas correntes. Pode ter um poder até maior do que aquele reconhecido ao Ministério Público Federal. A meu ver, a resposta só pode ser negativa. A regra é o sigilo de dados. Só o juiz pode autorizar o afastamento.

DINHEIRO – Restaria à Receita criar outro mecanismo para ter acesso às contas correntes?
MARCO AURÉLIOSe possível, uma emenda constitucional. Se não se tratar de cláusula pétrea. Mas a Receita por ato administrativo quebrar sigilo bancário é inadmissível. Paga-se um preço para se viver em Estado de Direito e é módico: o respeito ao que está na legislação, principalmente ao que está na nossa Constituição Federal. Que não é um documento lírico, meramente formal. Precisamos no Brasil de homens, principalmente homens públicos, que compreendam que as leis são feitas para ser observadas, e não descumpridas. Nós vivemos uma época de perda de parâmetros, de desapego aos princípios republicanos.