27/02/2008 - 7:00
DINHEIRO – O sr. é contra o uso dos cartões corporativos também no Judiciário?
MARCO AURÉLIO MELLO – Em setembro do ano passado, quando começaram a surgir as primeiras notícias sobre os cartões corporativos, eu procurei saber se estávamos praticando o cartão no âmbito da Justiça Eleitoral. E fui surpreendido com três ou quatro tribunais que tinham o cartão. Propus, então, ao meu colegiado, que se inserisse numa resolução a impropriedade da adoção da prática no Judiciário Eleitoral. E propus também que se oficiasse ao Tribunal de Contas da União.
DINHEIRO – Sua reação, porém, Entrevista / Marco Aurélio Mello parece isolada, pois o Executivo considera um instrumento válido.
MARCO AURÉLIO – O exemplo, de fato, vem de cima. E estamos assistindo à generalização do cartão corporativo. E ele facilita as coisas. Até na nossa vida privada, se não tivermos um controle maior, nós extravasamos os limites. É muito fácil pagar com um cartão de plástico, um cartão magnético. Um cartão de crédito. Então, é o que nós estamos vendo. Fiquei estarrecido com o número de servidores no âmbito federal a usarem o cartão. Disse-me um senador que são 11.400.
DINHEIRO – Em muitos casos, não é complementação de salário?
MARCO AURÉLIO – Sim, primeiro você tem um verdadeiro salário in natura, com compra de coisas que não dizem respeito às necessidades da administração pública. Em segundo lugar, há essa inviabilidade de controle com a dissimulação. Em terceiro lugar, afasta-se um princípio que é básco quando se quer adquirir qualquer coisa para o setor público, que é a licitação. Na compra com cartão, escolhese o estabelecimento que fornece o bem.
DINHEIRO – Mesmo no caso de pequenos valores, o cartão não se justifica?
MARCO AURÉLIO – Para pequenos valores, a lei viabiliza a compra de uma forma facilitada, pelo convite ou pelo leilão. Há outro aspecto. Se o objetivo era, realmente, adquirir sem uma burocracia maior, como se partiu logo após para o saque em pecúnia? E aí, o emprego desse dinheiro como fica? Surge o problema da publicidade.
DINHEIRO – Em que sentido, ministro?
MARCO AURÉLIO – A publicidade é uma mola mestra no setor administrativo. É a transparência, é a prestação de contas ao contribuinte.
DINHEIRO – O argumento é que a publicidade poderia criar problemas de segurança para o presidente e sua família.
MARCO AURÉLIO – Eu não consigo ver dessa forma, a não ser que se tenham deficiências quanto à segurança do presidente da República e que não queiram revelar essas deficiências. Quando eu substituí o presidente Fernando Henrique Cardoso em quatro oportunidades meteóricas, por ocasião de viagens, fiquei abismado com a segurança. Cheguei mesmo a dizer ao general Alberto Cardoso: “Sou um homem simples e, passados esses dias, vou voltar a minha vida normal.” O aparato em termos de segurança é enorme, e é bom que seja revelado porque inibe qualquer prática.
DINHEIRO – A exceção defendida pelo Planalto não se justifica?
MARCO AURÉLIO – Não encontro uma justificativa aceitável para excluir-se a prestação de conta quando utilizado numerário que é do setor público. Não há por que abrir uma exceção no que é utilizado dinheiro público. Nós estamos vivendo numa república. E numa república a coisa pública pertence ao povo, como disse o professor Fábio Konder Comparato. Fora isso, partimos aí para uma perda de parâmetros, para um sentimento de pouca importância quanto aos gastos.
DINHEIRO – Estaria prevalecendo no País a idéia de que o dinheiro público não pertence a ninguém?
MARCO AURÉLIO – É verdade. Eu estava no Rio e escutei entrevista de um dos envolvidos num episódio da Prefeitura de Magé. Ele estaria participando de uma licitação superfaturada, num conluio, e quando questionado, de forma singela, num ato falho, chegou a dizer: “Todos nós temos de ganhar e, afinal de contas, esse dinheiro não é de ninguém.” É de todos! O dinheiro é de todos! É do povo brasileiro.
DINHEIRO – No caso específico do Palácio do Planalto, não há necessidade de sigilo sobre os cartões corporativos?
MARCO AURÉLIO – Nós não temos na Constituição Federal um preceito que, interpretado e aplicado, deságüe na necessidade de sigilo.
DINHEIRO – Diante dos desvios, a solução, a exemplo do que o sr. fez no TSE, seria extinguir os cartões?
MARCO AURÉLIO – Temos inúmeros órgãos públicos funcionando sem o cartão corporativo. Até o governo passado, nós não tínhamos o cartão. Por que adotar o cartão? Modernismo? Não vejo necessidade. Apresenta facilidades que ficam muito bem no setor privado. No setor público, não.
DINHEIRO – A idéia, segundo a ministra Dilma Rousseff, era, e continua sendo, acabar com a conta tipo B até concentrar todos os pequenos gastos no cartão, que seria mais transparente.
MARCO AURÉLIO – Sim. Dizem que haveria um controle maior. Mas o resultado foi inverso. Eu próprio fiquei perplexo quando soube que em vários tribunais usam o cartão.
DINHEIRO – De novo, a justificativa é a complementação do salário.
MARCO AURÉLIO – Mas é um erro. A administração pública é regida pelo princípio da legalidade estrita. No setor privado pode-se fazer tudo que não esteja previsto em lei. No setor público, não. Só se pode fazer o que está autorizado. E vencimentos têm que ser fixados por lei, inclusive o dito salário in natura. Em vez de se receber em pecúnia, recebe-se em bens. É uma distorção. E uma distorção terrível.
DINHEIRO – O governo fala de disciplinar o uso dos cartões, com um regulamento mais rígido. É uma saída?
MARCO AURÉLIO – Voltamos à tecla em que tenho batido com freqüência. Nós não precisamos no Brasil de mais leis. Já temos um entulho legislativo que somente gera insegurança e conflitos de interesse. Precisamos, sim, de um avanço cultural que leve à observância das leis existentes. É um problema seriíssimo. E se perdem os parâmetros. Qual é o critério a prevalecer? É o critério legal. É o que está estampado na lei. É a regra estabelecida.
DINHEIRO – E o cartão, pelo visto, dá a facilidade de o funcionário público gastar mais do que a lei permite.
MARCO AURÉLIO – Pois é, gastam além, e em objetivos que não dizem respeito ao interesse público. O descontrole se mostrou total.
DINHEIRO – O sr. não acha que o País está perdendo a noção de interesse público? Está ficando fora de moda?
MARCO AURÉLIO – Está. Nota-se uma mesclagem do público com o privado. Está havendo quase uma promiscuidade, considerados os dois setores. E os setores são bem distintos. Nas grandes empresas, por exemplo, apenas os dirigentes têm o cartão corporativo. Mesmo assim, com fiscalização pelo conselho, por quem de direito da própria empresa. O dirigente se autolimita. No setor público, no entanto, há idéia de que o dinheiro não é de ninguém. É um equívoco. É uma visão míope, que merece a excomunhão.
DINHEIRO – Uma das origens dessas distorções não está no fato de as pessoas quererem ganhar no setor público salários do mercado privado?
MARCO AURÉLIO – A tarefa pública é para servir, e não se servir do cargo, visando se locupletar. O setor público dá estabilidade e segurança quanto à percepção de uma carreira. No regime anterior, havia até aposentadoria com proventos idênticos aos vencimentos. Isso terminou com a reforma recente da Previdência. Não se pode abraçar uma carreira pública para enriquecer. Muito menos para fazer fortuna, para deixar herança.
DINHEIRO – O que se pode esperar daqui em diante?
MARCO AURÉLIO – Vejo uma quadra alvissareira. Quando essas mazelas afloram, qual é a tendência? É partir- se para uma cautela maior. Partir- se para a manutenção dos freios inibitórios um pouco mais rígidos.
DINHEIRO – O sr., recentemente, também se pronunciou contra a tentativa de quebra de sigilo bancário pela Receita Federal. Por quê?
MARCO AURÉLIO – Qual é a regra que está no rol das garantias constitucionais da Carta de 1988 que Ulysses Guimarães apontou como carta cidadã? A privacidade, o sigilo de dados. A exceção corre à conta do afastamento do sigilo por ordem judicial para investigação ou processo criminal.
DINHEIRO – Qual é a dúvida, então?
MARCO AURÉLIO – Indaga-se se a Receita, que atua fazendo as vezes da União na relação jurídica tributária, que é parte, eu diria numa visão quase leiga, parte credora, pode ter acesso às contas correntes. Pode ter um poder até maior do que aquele reconhecido ao Ministério Público Federal. A meu ver, a resposta só pode ser negativa. A regra é o sigilo de dados. Só o juiz pode autorizar o afastamento.
DINHEIRO – Restaria à Receita criar outro mecanismo para ter acesso às contas correntes?
MARCO AURÉLIO – Se possível, uma emenda constitucional. Se não se tratar de cláusula pétrea. Mas a Receita por ato administrativo quebrar sigilo bancário é inadmissível. Paga-se um preço para se viver em Estado de Direito e é módico: o respeito ao que está na legislação, principalmente ao que está na nossa Constituição Federal. Que não é um documento lírico, meramente formal. Precisamos no Brasil de homens, principalmente homens públicos, que compreendam que as leis são feitas para ser observadas, e não descumpridas. Nós vivemos uma época de perda de parâmetros, de desapego aos princípios republicanos.