28/11/2007 - 8:00
“Pochmann ligou para me tranqüilizar e não quero julgar ninguém”
” Os primeiros a criticar o II PND foram economistas do Ipea. Um deles, o Malan “
DINHEIRO ? Qual é a função histórica do Ipea?
REIS VELLOSO ? Quando fui chamado pelo Roberto Campos, eu estava voltando de minha pós-graduação na Universidade de Yale e ele me fez uma proposta. Eu tinha vários convites, inclusive para ser chefe do departamento econômico do BNDES, coisa que me interessou. Mas ele fez uma proposta indecente: você vai criar uma entidade que não vai cuidar do dia-a-dia. Para isso, temos os grupos executivos. Então é uma entidade que vai pensar o Brasil principalmente no médio e no longo prazo. Não vai viver na estratosfera. Toma conhecimento da conjuntura. Mas não tem função a desempenhar na conjuntura.
A função do Ipea é fazer pesquisas e propostas relativas ao desenvolvimento brasileiro no médio e longo prazo.
DINHEIRO ? Diante disso, como o sr. recebeu as mudanças no Ipea? O afastamento de quatro economistas pode ser encarado como uma caça às bruxas ou não?
VELLOSO ? É preciso ter um critério para julgar. Há um novo presidente, uma nova entidade, o Núcleo de Assuntos Estratégicos, e o novo ministro, o Mangabeira Unger. O primeiro ponto é o seguinte: o Ipea tem que ter independência de pensamento, de opinião e de criação para propor coisas novas. Segundo, o objetivo essencial do Ipea é a visão estratégica, a médio e longo prazo. De modo que a discussão que houve aí sobre se deve ou não haver um boletim de conjuntura do Ipea parece fora de propósito. Isso não é atribuição do Ipea.
Eventualmente, pode dizer alguma coisa. No meu tempo não havia boletim de conjuntura. E sempre funcionou com inteira liberdade, como todo mundo sabe.
DINHEIRO ? O presidente do Ipea, Márcio Pochmann, disse que foi uma decisão administrativa. Pode-se entender dessa forma?
VELLOSO ? Não entro nessa discussão.
DINHEIRO ? No meio acadêmico, em todo o mundo, é normal que professores aposentados sejam aproveitados. Uma das explicações é que dois dos economistas já tinham se aposentado. Isso é correto?
VELLOSO ? Veja bem. Dois dos economistas que foram afastados agora são, na verdade, economistas do BNDES, num convênio do Ipea com o banco. A informação me foi dada, sem eu tê-la pedido. Tanto o ministro Unger quanto o presidente do Ipea me telefonaram para me tranqüilizar. Asseguraram que a independência do Ipea será mantida. O convênio com o BNDES termina dia 7 de dezembro, e a discussão é se vai ser mantido nas mesmas bases e com os mesmos temas ou não. Além disso, o BNDES é que vai dizer quem serão os seus economistas que vão participar do convênio. Não é o Ipea que escolhe. Quanto aos aposentados, é uma questão jurídica.
DINHEIRO ? Entretanto, mesmo durante o regime militar, nunca houve caso semelhante. Um exemplo é o de Pedro Malan, que trabalhou com total liberdade nos anos 70. Ao tempo do Delfim Netto, Malan fez estudo sobre distribuição de renda.
VELLOSO ? No caso da distribuição de renda, eu pedi ao Ipea um estudo e o estudo foi feito. Naquele tempo havia dois institutos no Ipea, um de pesquisa econômica aplicada e outro de planejamento, que funcionava em Brasília e fazia trabalhos para a formulação de planos. Entre os trabalhos estão dois estudos complementares importantes.
Um sobre o potencial dos cerrados. Havia idéia, naquele tempo, de que o cerrado ? e se falava de Mato Grosso e Goiás ? não tinha potencial agrícola. Nós achávamos que sim. Falei com o Maurício Reis, responsável pela área de agricultura do Ipea, depois ministro do Interior, e o Ipea fez estudo, publicado em 1973, concluindo que o potencial era grande. Com base nisso, o próprio Ipea, sob orientação do Roberto Cavalcanti, preparou um programa de aproveitamento dos cerrados, que foi executado no governo Geisel. O chamado Polocentro.
DINHEIRO ? O estudo do Malan é da mesma época?
VELLOSO ? O estudo de distribuição de renda foi no começo dos anos 70. Antes de 1974, pois não foi no governo Geisel. E quando foi feito o segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, já no governo Geisel, o primeiro artigo crítico foi de dois economistas do Ipea: Pedro Malan e Régis Bonelli (o último foi afastado agora).
DINHEIRO ? O sr. está convencido de que não haverá perseguição acadêmica ou política no Ipea?
VELLOSO ? Importante é saber como avaliar. Vamos aguardar os acontecimentos, senão estaremos condenando o réu antes de ele ter sido julgado.
DINHEIRO ? Hoje, fala-se muito da precariedade do planejamento no Brasil. Primeiro, os problemas acontecem, depois, buscam-se soluções, numa política de porteira arrombada. A crítica procede?
VELLOSO ? A referência é, sem dúvida, aos apagões. São situações diferentes. Houve um apagão elétrico que realmente foi fruto da imprevidência. Você tinha todos os instrumentos para fazer um bom planejamento de infra-estrutura, inclusive tinha financiamento adequado, porque havia os impostos únicos, os empréstimos compulsórios, que foram extintos pela Constituição de 1988. Ela foi extraordinária na institucionalização da república democrática de direito no Brasil, mas fez certas opções erradas. Uma delas foi essa. Extinguiu os impostos únicos, para energia elétrica, para rodovias, telecomunicações, e não colocou nada no lugar.
DINHEIRO ? Só depois do apagão elétrico.
VELLOSO ?Tentou-se resolver o problema, mas já era tarde. No caso do apagão aéreo, é muito pior. Primeiro, tem uma malha aérea errada. Numa das últimas vezes que fui a Brasília, meu vôo atrasou três horas na ida e três horas na volta. Procurei saber por que o vôo da volta tinha atrasado tanto. Ele fazia Macapá, Manaus, Brasília, Rio. Não tem sentido. Ele deveria ter ficado em Brasília e o trecho Brasília-Rio devia ser uma ponte aérea, como a que liga Nova York a Boston, uma distância equivalente. E há também a questão da infra-estrutura aeroportuária.
DINHEIRO ? Mas isso não acontece em decorrência exatamente da falta de planejamento?
VELLOSO ? A verdade é que você tem problemas de gestão, por diferentes razões. Uma delas: se estabeleceu no serviço público um negócio chamado regime jurídico único ? novamente uma opção errada da Constituição de 1988. O Ipea é uma fundação, mas está sujeito à mesma legislação de pessoal de uma repartição pública. Então, perdeu flexibilidade. No meu tempo, o Ipea tinha carreira própria, aprovada pela presidente da República e publicada no Diário Oficial. Quem não gostasse podia se manifestar. Uma vez, o chefe do gabinete militar veio falar comigo. ?Há comentários no meio militar sobre essa história de carreira própria no Ipea.? Eu disse: ?General, tudo bem, só que, quando o Ipea deixar de ter carreira própria, não haverá mais este ministro do Planejamento.?
DINHEIRO ? O que fazer?
VELLOSO ? Em 1967, o Hélio Beltrão fez uma reforma administrativa na base de quatro sistemas: sistema de planejamento, sistema de execução, sistema de acompanhamento e controle e sistema de auditoria. Antes de ir para o TCU, a auditoria interna tem que se manifestar. A administração pública tem de ter diferenciação e descentralização. O que puder passar para Estados e municípios, você passa, mesmo que a União contribua com recursos. No que puder transferir para o setor privado, você transfere. Por meio de concessões, por meio de privatizações. Não é essa história de Estado mínimo, não. Isso não existe. Como diz o Piquet Carneiro (João Geraldo), da escola do Beltrão e eu também, o Estado tem de ter boa gestão.
DINHEIRO ? Simonsen dizia que planos temos muitos, o que falta é boa execução.
VELLOSO ? É verdade. Mas o Brasil já teve uma execução muito boa. Construímos uma infra-estrutura muito boa em energia, transportes e comunicações. E fomos perdendo. E aí entra outro fator. O Hélio Jaguaribe, que sempre foi contra o regime militar, diz que de 1940 a 1980 o Brasil construiu o melhor Estado do Terceiro Mundo. Por quê? Havia algo semelhante à administração permanente, que é o sistema do regime parlamentarista. O governo parlamentar pode cair a qualquer hora, mas não é preciso se preocupar porque há uma administração permanente. O número de cargos de confiança é pequeno. Existe plano de carreira. Tínhamos um centro de treinamento no Ministério do Planejamento, que treinava os outros ministérios e Estados e municípios.
DINHEIRO ? Esse foco foi totalmente perdido?
VELLOSO ? Infelizmente, houve a invasão da administração pela política. Um problema complicado. Esse circo de horrores, essas crises, conexões e escândalos, e as dificuldades no funcionamento da máquina tem um motivo: o Estado tem de ser concebido de forma a funcionar. E tem de ser respeitado pelas instituições políticas do País.
DINHEIRO ? Hoje, os programas do País estão se concentrando nas mãos da Casa Civil, que acaba funcionando como um Ministério do Planejamento. Não é uma distorção?
VELLOSO ? Naquele tempo, o Planejamento era um órgão da Presidência da República. O meu gabinete ficava no Palácio do Planalto, ao lado do Golbery (Couto e Silva, da Casa Civil). Eu disse ao presidente Geisel: ?Ou o Planejamento é um órgão da Presidência ou não deve existir, porque ele é que tem a visão de conjunto para assessorar o presidente.? O presidente comandava os ministérios e havia um Conselho de Desenvolvimento Econômico e um Conselho de Desenvolvimento Social que se reuniam toda a semana, como se fosse a diretoria de uma empresa. As coisas funcionavam.
DINHEIRO ? Hoje, o ministro do Planejamento limita-se a acompanhar a execução do Orçamento.
VELLOSO ? Não vou discutir isso. Cada governo faz a estrutura à sua imagem e semelhança. Mas o Planejamento tem a função de gestão, desde que tenha instrumentos. Com essa história de regime único, o técnico do Ipea, com doutorado no País, vai receber a mesma remuneração de um economista que se formou aqui na praça da República. É possível fazer funcionar bem a administração pública, mas é preciso que o Executivo, o Congresso e os partidos saibam respeitar a administração pública.
DINHEIRO ? Em entrevista à
DINHEIRO, o ministro Reinhold Stephanes disse que, acima de tudo, falta planejamento e capacidade operacional. A quem pedir ajuda?
VELLOSO ? Eu gostei da declaração (risos). Conheço bem o Stephanes, que é um homem competente. Sugiro que ele faça um convênio com o Planejamento ou com o Ipea para que as coisas voltem a funcionar.