05/11/2022 - 10:04
Mineradoras levarão até duas décadas após o desastre de Mariana, há exatos sete anos, para eliminar todas as barragens a montante. Atingidos seguem à espera de casa definitiva.De sua janela, Marco enxerga a barreira erguida num vale estreito perto do ribeirão Macacos. É ela que deve segurar, em caso de rompimento, os rejeitos armazenados oito quilômetros acima, na barragem B3/B4 da mina Mar Azul, da mineradora Vale, em Nova Lima, região metropolitana de Belo Horizonte.
“Durante as chuvas eu tenho mais medo, mas me disseram que minha casa está segura se a barragem romper”, diz Marco à DW Brasil, que visitou o local num roteiro guiado pela Vale.
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Ele não esconde a desconfiança. No começo do ano, a mesma estrutura represou a água da chuva intensa que caiu na região e, com o alagamento, o trânsito pelas estradas ficou impedido. “E se fosse os rejeitos? Nem o socorro chegaria aqui”, questiona, mostrando o desconforto.
A barreira, cujo nome técnico é estrutura de contenção a jusante (ECJ), faz parte de um projeto maior. Ela integra a complexa operação de “desmontagem” de uma barragem considerada de alto risco, como é o caso da B3/B4.
Construída com o método a montante, em que os diques de contenção se apoiam sobre os próprios rejeitos depositados, ela tem que sumir até 2027, mas há grande probabilidade de a conclusão ocorrer em 2025, afirma a mineradora.
O prazo original, estipulado como 25 de fevereiro de 2022 pela lei Mar de Lama Nunca Mais, já foi desobedecido, ressaltam pesquisadores e ambientalistas que acompanham os impactos da mineração em Minas Gerais.
“É como se a lei Mar de Lama Nunca Mais não valesse. Foram feitos acordos individuais com as empresas, e os novos prazos para descomissionar barragens a montante foram estabelecidos a partir de critérios nada coerentes. É um desrespeito às vítimas das tragédias”, critica Daniel Neri, professor do Instituto Federal de Minas Gerais, campus Ouro Preto.
Em 5 de novembro de 2015, a barragem de Fundão, da Samarco, controlada pela Vale e BHP Billinton, rompeu em Mariana e liberou cerca de 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos no ambiente. Dezenove pessoas morreram. Os poluentes deixaram um rastro de destruição até o litoral do Espírito Santo, percorrendo 663,2 km de cursos d’água, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Em janeiro de 2019, o colapso da barragem da Vale em Brumadinho matou imediatamente 270 pessoas soterradas, entre elas duas gestantes, sendo a maioria funcionários da empresa. Quatro vítimas ainda não foram identificadas, diz a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum).
Desrespeito à lei Mar de Lama Nunca Mais
Criada a partir de uma iniciativa popular, a lei Mar de Lama Nunca Mais (23.291/2019) quis extinguir a tecnologia pivô das tragédias. A lei proibiu novas barragens a montante e fixou como 25 de fevereiro de 2022 o limite para a eliminação das existentes.
Mas o descumprimento em massa levou o governo estadual e o Ministério Público a assinarem um termo de compromisso flexibilizando o cronograma. “Virou o programa de ‘não descomissionamento’. A maior parte das barragens problemáticas da Vale terão até 2035 para serem descaracterizadas, por exemplo”, critica Neri.
Maria Teresa Corujo, ambientalista do Movimento pelas Terras e Águas de Minas e do Instituto Cordilheira, pontua ainda outros problemas. “Já houve dois alteamentos de barragens licenciados pelo estado depois da lei, apesar da proibição prevista onde há comunidades na zona de autossalvamento”, detalha.
No fim de 2019, a Câmara de Atividades Minerárias aprovou a ampliação da capacidade da barragem da Anglo American em Conceição do Mato Dentro. Em fevereiro de 2020, licença semelhante foi dada a Anglo Gold Ashanti, em Sabará. Ambos os casos viraram ação judicial.
“Liquefação é um risco”
Minas Gerais concentra a maior parte das barragens a montante, segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM). Das 56 ativas atualmente no país, 39 estão no estado. Quase metade delas, 17, pertence à Vale.
A estrutura B3/B4, onde antes havia um campo de futebol no topo, está desde 2019 em risco iminente de rompimento. O trabalho de descaracterização dessa barragem consiste na retirada dos 3,4 milhões de metros cúbicos de rejeitos, que estão sendo transportados para uma cava inativa da companhia, além do restabelecimento da paisagem.
A 15 quilômetros dali, no nono andar de um prédio em Belo Horizonte, homens comandam caminhões e máquinas que fazem o transporte dos sedimentos. Sentados diante de várias telas, eles usam joystick e pedais, como num videogame, para guiar os automóveis de forma remota.
“A mineração não suportaria outro Brumadinho”, diz Frank Pereira, gerente executivo de engenharia de barragens da Vale, durante a visita da DW ao local.
Questionado sobre os critérios de classificação de risco de barragens e o tempo que uma estrutura em nível máximo de alerta pode suportar, Pereira responde que os critérios foram sendo aprimorados com o passar do tempo, assim como a engenharia.
“Hoje temos acesso a dados geotécnicos que não existiam na época em que a estrutura foi construída”, pontua. “A possibilidade de liquefação de barragem é um risco, por isso os critérios foram alterados”, adiciona Pereira, mencionando as lições dos rompimentos recentes.
Para fontes ouvidas pela DW, falta acompanhamento rígido de órgãos como a ANM. “Não há confiança no que é informado pelas mineradoras sobre risco. Não será de se estranhar que se rompa uma barragem com atestado de estabilidade, como aconteceu em Mariana e em Brumadinho”, comenta a ambientalista Corujo.
A longa espera dos atingidos
Abaixo da B3/B4, cerca de 250 famílias removidas em 2019 continuam em residências provisórias. Há casos ainda de pessoas que não foram retiradas, mas que brigam por acessos seguros a suas propriedades.
“A maioria dos acessos [a propriedades na zona rural] está na zona de autossalvamento, na área de mancha em caso de rompimento da barragem, e não só da B3/B4”, diz um dos impactados ouvidos pela DW.
Em Mariana, sobreviventes que viviam no povoado de Bento Rodrigues, o mais atingido pelos rejeitos, seguem à espera de um lar definitivo, sete anos depois da tragédia. O novo assentamento, ainda em construção, tem 71 casas prontas das 162 previstas, informou a Fundação Renova, criada para reparar os atingidos.
“É uma lentidão fora de série”, diz José do Nascimento de Jesus, da comissão de atingidos, à DW. “Fui proibido de fiscalizar as obras no reassentamento pela Renova. A gente queria estar na nossa casa no antigo Bento, lá era um paraíso. Hoje ainda estamos sem saber como vamos morar, e se vamos nos adaptar”, critica.