O combate à corrupção e ao desvio do dinheiro público avança devagar no Brasil, mas avança. Nos últimos anos, foram promulgadas algumas leis nesse sentido: Lei da Responsabilidade Fiscal, Lei de Improbidade Administrativa, Lei de Acesso à Informação, Lei da Ficha Limpa, a chamada Lei Anticorrupção, além de regulamentos aplicados pelo governo federal para disciplinar o relacionamento com outros entes. “Há progresso. Agora, o progresso é muito menor, mas muito menor, nos Estados. E praticamente inexistente, nos municípios”, afirma Claudio Weber Abramo, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil.

Fundada há quase 15 anos, a organização se tornou uma referência no combate contra a corrupção pública e pela melhoria dos níveis de governança. Ele acompanha de perto a Operação Lava Jato, lançada pela Polícia Federal, com o apoio da Justiça e do Ministério Público, que apura a corrupção na Petrobras e já levou empresários e executivos de construtoras à prisão preventiva. Resgatar a  Petrobras do limbo em que se encontra, porém, é uma tarefa que ultrapassa, em muito, as boas intenções de quem quer que seja, avalia Abramo. “É preciso pôr a mão na massa, e isso vai dar muito trabalho”, afirma.   Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista à DINHEIRO:

DINHEIRO – O senhor defende a melhoria dos mecanismos de governança. No fundo, a oportunidade faz o ladrão?

Cláudio Abramo – Completamente. Não tem outro jeito de combater a corrupção, e não apenas ela. O que me preocupa é a integridade do Estado. Um Estado que seja mais íntegro produzirá uma melhor alocação dos recursos para a prestação dos serviços e execução de suas funções. Corrupção é apenas um dos aspectos da integridade. Há outros, como incompetência, irresponsabilidade. Se você tiver um governo 100% honesto, mas 100% incompetente, a população será igualmente mal servida. Voltando à corrupção, há duas famílias de fatores. Há causas que estão no arcabouço legal, normativo; e há causas que são gerenciais. Isso, no caso da Petrobras, era claríssimo. A gestão nada tem a ver com o arcabouço formal. Tem a ver com a aplicação disso, mas não com ele em si. O que precisa fazer? Identificar onde estão as falhas e corrigi-las. Basicamente, não havia gestão na Petrobras. O que se identificou ali foi escandalosíssimo. O conselho de administração é responsabilizado diretamente, porque, em primeiro lugar, tem a função de zelar para que a gestão seja eficiente. A diretoria também, porque executa. O principal terreno onde ocorre corrupção é nas compras. A Petrobras tem um regulamento próprio, que entrou em vigor em 1998, e é apontado como muito leniente, muito vulnerável à corrupção. Mas digamos que não se mude a forma de licitação. Ainda restaria a gestão. Como é que a Petrobras geriu as contratações, ainda de acordo com esses regulamentos? Da forma mais incompetente e propositalmente incompetente. Esse é o ponto. Pode-se supor que seja altamente provável que qualquer compra da Petrobras, de copinho plástico a caneta esferográfica, até as usinas, tenha corrupção. Porque tem um mecanismo de licitação leniente, e não tem acompanhamento sistemático de decisões tomadas na empresa. É claro que qualquer pessoa que compra está direcionando.

DINHEIRO – Entre as medidas para melhorar a situação da Petrobras, o senhor defende a mudança das regras de licitação, a divisão da tomada de decisões, a melhoria da governança e o fim do loteamento político. Qual delas é a mais importante, hoje?

Abramo – Todas elas. Não dá para ficar ponderando. Se você está com gangrena no dedo, problema nos rins, falência de órgãos, não dá para você tratar uma coisa de cada vez. Se esperava que a criação de uma diretoria de governança, na Petrobras, atacasse esses problemas. Me espanta que, até agora, não se saiba uma porção de coisas sobre essa nova diretoria. Não se sabe qual será o seu orçamento. Não se sabe quais são os seus poderes. Uma diretoria como esta deveria ter o poder para impor, ao resto da empresa, alterações gerenciais. Isso não tem nenhuma relação com essa conversinha de compliance que anda por aí. Isso é coisa de advogado. Coisa de papel, que não adianta nada. O que tem de fazer é meter a mão na massa, e isso dá trabalho. Não há supervisão efetiva na Petrobras. Vão dizer que tem, mas é pró-forma. Isso é um indicador de como a gestão pública é indigente no Brasil. E por que é indigente? Porque tem interesses, que surgem do loteamento político. Alguém chama os partidos e diz: “votem comigo, não me fiscalizem e, em troca, fiquem com esses cargos.” Agora, por que eles querem isso? Para dar emprego para os cupinchas, para os amigos, para roubar. Qual é o interesse de alguém em aperfeiçoar a gestão, desse jeito?

DINHEIRO – Mas, concretamente, o senhor vê condições de que a Petrobras melhore sua gestão neste governo?

Abramo – Se tomarem as medidas necessárias… A Petrobras, como uma empresa estatal, certamente tem uso político, quando se pensa nos interesses estratégicos do País. E tem que ter. Não há nenhum problema com isso. Agora, o uso pela pequena política, inclusive monetária, regulando preço da gasolina para não aumentar a inflação… isso é interferência do governo. Algo que não deveria. Não há nenhuma garantia de que esse pessoal vá fazer uma gestão profissional na Petrobras.

DINHEIRO – Falando do loteamento político, isso não é uma situação de cachorro correndo atrás do rabo? Para acabar com isso, os políticos precisam alterar as regras.

Abramo – O loteamento político é garantido por lei. Nós formulamos uma sugestão de alteração da Constituição, que encaminhamos para a presidente Dilma, quando ela assumiu em 2011. Era uma sugestão de Proposta de Emenda Constitucional que reduzia drasticamente o número de cargos de livre nomeação. Eles são muitos mais que os 22.500 cargos de confiança atuais. É um universo mais amplo. A situação é ainda pior nos Estados e municípios. Temos de prestar atenção: o Brasil não é só Brasília. A imprensa não olha muito para São Paulo, por exemplo. Cerca de um terço do PIB vem daqui. Além disso, 41% dos impostos federais são arrecadados neste Estado. Os problemas de corrupção afetam igualmente e as causas são as mesmas. Essa questão é garantida aos governantes pela Constituição. Então, é preciso limitar. O sujeito só poderia nomear um número muito baixo de pessoas. Isso teria que ser acompanhado, como nós frisamos explicitamente, de medidas administrativas para melhorar a qualidade do servidor público, seus mecanismos de seleção e promoção, de maneira a se dirigir a uma situação em que houvesse um corpo de pessoas no Estado mais competente. Demora uma geração. Mas o fato de demorar uma geração não é argumento para não fazer. Se não começarmos, nós nunca vamos chegar lá.

DINHEIRO – Mas os políticos, que são os primeiros a se beneficiar com essa situação, gostariam de mexer nisso?

Abramo – Vamos tomar um exemplo bem menos pesado que esse, que é a Lei de Acesso à Informação. Ela surgiu justamente em um momento assim. Fomos nós que sugerimos para o Executivo. Não fomos apenas nós que pensamos nisso, claro, mas fomos os responsáveis por conduzir o processo de convencimento inicial do governo para mandar para o Congresso. Eu achava que haveria enorme resistência dos parlamentares. É por isso que optamos por sugerir que o Executivo enviasse ao Congresso, porque ele tem muita força lá. Eu até me surpreendi ao ver a facilidade com que aquilo tramitou. Nisso, a força do Executivo jogou um papel importante. No caso da nomeação para cargos, a parada é mais pesada, mas não é impossível.

DINHEIRO – É tão fácil assim, para partidos e políticos, cair em tentação?

Abramo – O que está em jogo é um processo de transferência de recursos de empresas a partidos políticos, visando a um benefício. Que benefício é esse? Ganhar um contrato. A formação de cartel é típica desses casos e foi o que se viu na Petrobras. Um grupo forma um cartel para manter os preços altos e para alijar a concorrência, porque o efeito da entrada de novos concorrentes é a queda dos preços. Agora, é impossível para um cartel funcionar, em um mercado público, sem a conivência do gestor público. Então, tudo isso que acontece é uma associação criminosa. Ela pode estar a serviço de um grupo de pessoas, dentro da organização. É sempre um grupo. Nunca é apenas uma pessoa. Sempre tem uma hierarquia, entende? Podem ser grupos criminosos que se associam fora das estruturas partidárias, mas é muito comum que estejam vinculados a estruturas partidárias. No Brasil, como se faz um loteamento político entre partidos, inevitavelmente, isso está associado às legendas. Não se pode aceitar que, na Petrobras, houvesse uma quadrilha que não tivesse associação partidária. A alegação de que os partidos não têm nada a ver com isso é completamente intolerável.

DINHEIRO – O senhor defende, também, que é preciso estabelecer um teto muito baixo para a contribuição das empresas aos partidos políticos. Com isso, o poder de influência seria mais diluído. Quão factível é isso?

Abramo – Eu acho que isso é bem factível. No mundo ideal, não se poderia ter doações de empresas, nem de pessoas físicas. Nos esquecemos das pessoas físicas, mas tem uma pá de gente aí que compra mandato, porque põe milhões de reais na campanha de alguém. É claro que precisaria haver uma limitação drástica disso também. Mas por que não funciona? Por dois motivos. Primeiro, porque nós vivemos num regime capitalista. Nesse regime, as empresas querem influenciar a política, porque acham que têm esse direito. Elas precisam ser coibidas nessa iniciativa. Essas restrições acontecem em qualquer país desenvolvido, pelo menos. O financiamento eleitoral é um mercado: de um lado, há os políticos; do outro, as empresas. Esse mercado gira em torno de quê? O que os políticos vendem? Decisões futuras. Eles dizem: “se você me der dinheiro, eu vou propor tal coisa para seu grupo.” E, do lado de cá, as empresas compram essas decisões políticas futuras, através do financiamento. Proibir esse tráfego de dinheiro não vai eliminar esses interesses. Os políticos continuarão querendo suplantar seus adversários; e as empresas seguirão tentando influenciar a política. Então, você pode botar um pedaço de papel e dizer que é proibido, mas não vai rolar. O dinheiro que, hoje, passa pelo caixa 1 vai passar pelo caixa 2. Recentemente, tentou-se isso em dois países: Itália e México. Foi um fracasso completo, porque perde-se totalmente a visibilidade do processo. Há outro problema com a proibição pura e simples: ela induz alterações no mecanismo eleitoral. E, na prática, ela implica em votação em lista: o partido define uma lista, em que os candidatos serão eleitos em determinada ordem. E quem fica no topo da lista? Os caras já eleitos, os cartolas do partido. Os políticos não querem isso. Então, não me parece viável que proibir a doação de empresas vingue. Por isso, essa solução em que insistimos, a de reduzir os tetos de financiamento, é fundamental. Uma empresa não pode doar R$ 300 milhões para a eleição. Ela pode doar R$ 1 milhão. E os limites têm de ser nessa base. O que acontece com isso? A distância entre os grandes doadores e a base se dilui bastante. O poder relativo de influência fica muito menor, e quem é eleito fica bem menos vulnerável à pressão das empresas.

DINHEIRO – Alguns dizem que nunca se roubou tanto no Brasil, quanto hoje. Outros dizem que a corrupção diminuiu, e o que aumentou foi a sua exposição. Qual é a sua avaliação?

Abramo – É impossível responder a essa pergunta, porque só se conhecem os casos de corrupção, quando são exibidos. Geralmente, ocorre uma dedução errada: quando se têm mais mecanismos de controle, se pegam mais casos. Então, se imagina que a corrupção aumentou. Não necessariamente. Agora, isso corta para os dois lados. Afirmar-se que a corrupção diminuiu é tão absurdo, quanto afirmar-se que ela aumentou. Não tem fundamento. Isso é imensurável, porque corrupção é um crime escondido. Não é como um furto, que você testemunha. A corrupção é um crime sem testemunhas e a vítima é generalizada. Não é um indivíduo. Ela só aparece, quando é descoberta.

DINHEIRO – Nesse sentido, a divulgação desses casos é mais positiva ou mais negativa?

Abramo – A divulgação é sempre positiva. Não existe nada negativo em divulgar.

DINHEIRO – O que vem primeiro: os corruptos ou os corruptores?

Abramo – Essa é uma questão que não me interessa. Corrupção, por definição, é um conluio entre um agente público e um privado. Os dois têm que estar juntos. Sem que um exista, o outro não existirá. O que interessa, de fato? Reduzir as oportunidades de corrupção.

DINHEIRO – O senhor já disse que não concorda com a idéia de que há uma “cultura da corrupção” no Brasil. Mas vemos pesquisas que mostram que os brasileiros são lenientes com pequenos atos de corrupção. Somos mesmo assim?

Abramo – A minha objeção a essa história de cultura da corrupção é a seguinte: primeiro, isso transforma a vítima em culpada. Então, pessoalmente, o empresário ladrão, o político facínora seriam iguais a nós. Além disso, se todo mundo é corrupto, significa que eles estão inocentados. Afinal, fazem o que qualquer um faria. Além do mais, essa história de falar de cultura da corrupção é coisa de quem não tem o que dizer a respeito da corrupção, realmente. Fica uma saída muito fácil. Não se combate nada. Como é que se combate uma cultura de corrupção? Eu, pessoalmente, não sei como faz. Agora, essa história de brasileiro ser isso ou aquilo… eu me lembro de uma vez em que eu estava num debate no Canadá, discutindo esse negócio de opinião das pessoas. Eu mencionava os problemas metodológicos das pesquisas que levam a esse tipo de conclusão. Um canadense que também participava me disse: “aqui é igual; a gente tem esse negócio de achar que canadense é corrupto.” Isso aí não vale nada realmente. É muito diferente de alguém perguntar: você acha que o serviço do Metrô está te atendendo bem? É algo concreto.

DINHEIRO – A Transparência Brasil tem quase 15 anos. Nesse tempo todo, trabalhar com o combate à corrupção e com a melhoria da governança pública é como enxugar gelo?

Abramo – A Transparência Brasil foi fundada em 2000. Eu entrei nela em outubro daquele ano. Nesse tempo, acho que experimentamos, sob o ponto de vista da organização, algumas conquistas. A gente colocou, em pauta, por exemplo, o problema da criminalidade na vida política. Isso levou à Lei da Ficha Limpa. Não participamos dessa elaboração, mas, antes que tocássemos no assunto, ninguém falava disso. Nós temos trabalhado muito nas questões institucionais mais pesadas do País. Ganhamos certa respeitabilidade neste debate. Qual é a predominância de nossa ação? Procuramos ver a objetividade das coisas. E somos imparciais mesmo. Não temos ligação com nenhum partido. Não estamos com ninguém. Nenhum governo, empresa, seja lá o que for. Nossa independência se reflete muito naquilo que estamos fazendo. A que interesses estamos atendendo? A nenhum! O que mudou no País, nesses 15 anos? Muita coisa mudou. Não, obviamente, só por causa de nossa influência. Uma das coisas em que se tem de prestar atenção, nessa área da integridade do Estado, é que esse é um processo que está se desenvolvendo. Se voltarmos no tempo, veremos: Lei da Responsabilidade Fiscal; Lei de Improbidade Administrativa; Lei de Acesso à Informação; Lei da Ficha Limpa; a chamada Lei Anticorrupção; regulamentos aplicados pelo governo federal, disciplinando o relacionamento com outros entes. Há progresso. Agora, o progresso é muito menor, mas muito menor, nos Estados. E praticamente inexistente, nos municípios. E, para isso, concorre o fato de que o Brasil é um país esquizofrênico. A Constituição afirma que o município é um ente federado. Cerca de 40% deles dependem de repasses da União ou dos Estados para compor mais de 90% de seus orçamentos. Isso significa que eles não têm produção econômica. O dinheiro gasto lá não é gerado lá. E o gestor aplica o dinheiro como quer. Não tem supervisão. Isso é disfuncional. Não tem solução, porque, para mudar, seria preciso alterar fundamentalmente as instituições. Então, não vai mudar.