Na década de 1990, quando a Microsiga era uma pequena desenvolvedora que brigava por um lugar ao sol no mercado de software para empresas com gigantes internacionais, como a alemã SAP e a americana Oracle, o empresário paulista Laércio Cosentino chegava cedo ao batente e ia cumprimentando os funcionários que encontrava pela frente. “Bom dia, já vendeu o seu Siga hoje?”, perguntava ele, referindo-se ao programa de gestão empresarial da companhia. Mais de 20 anos depois, Cosentino ainda repete a saudação, trocando apenas a palavra Siga por Totvs, o nome com o qual rebatizou sua empresa, depois de comprar os principais rivais nacionais, como as catarinenses Datasul e Logocenter e a mineira RM, e deixar os rivais forasteiros na poeira. “No mercado de tecnologia, ou você lidera ou é liderado”, afirma ele, justificando o seu apetite por aquisições, que levaram a Totvs à liderança no mercado brasileiro de software, com uma fatia de mais de 50% de participação de mercado, segundo a consultoria Gartner.

Aos 55 anos, Cosentino pode ser considerado um mago na arte de comprar empresas. Poucos empresários no Brasil se envolveram em uma quantidade tão grande de fusões e aquisições como o controlador da Totvs. Desde 2003, foram incorporadas nada menos de 30 empresas, que totalizaram 45 operações. Com isso, a Totvs, candidata natural a ser engolida pelos grandalhões internacionais de tecnologia, tornou-se uma gigante do mercado digital, resistindo ao assédio da concorrência. Com presença em 39 países, a empresa de Cosentino já é a sexta maior do mundo no setor de software corporativo. Em 2014, foi a campeã setorial do anuário AS MELHORES DA DINHEIRO.  Com tantas transações em seu currículo, seria razoável imaginar que a Totvs encerrasse ou pelo menos desse um tempo no ciclo de aquisições. Ledo engano. “Se você nos visitar, vai encontrar aquela plaquinha amarela na minha sala dizendo: homens trabalhando”, diz Cosentino, em meio a uma sonora gargalhada.

A mais recente transação, que está sendo chamada de reorganização societária, envolveu a paranaense Bematech, fabricante de equipamentos de automação comercial, anunciada na noite de 14 de agosto, uma sexta-feira quente e seca, em pleno inverno paulistano. O negócio, avaliado em R$ 550 milhões, ainda precisa de aprovação pelas assembleias de acionistas das duas empresas, previstas para setembro, para ser sacramentado. Em valor, no carrinho de compras de Cosentino, só perde para o da Datasul, arrematada por R$ 700 milhões, em 2008. “As empresas já haviam conversado em outras oportunidades, mas esse foi o momento mais propício”, afirmou Rodrigo Kede, ex-presidente da IBM, que está sendo preparado para assumir a Totvs no lugar de Cosentino, num processo de transição que pode durar até três anos. “Apesar de o País estar em um momento conturbado, enxergamos que o varejo está maduro para investir em digitalização.”

A Totvs, de Cosentino, não foi a única empresa que se notabilizou pelo seu incrível volume de compras. Impulsionadas pelo crescimento da economia brasileira e por ativos baratos no exterior, em especial nos Estados Unidos e na Europa, as companhias nacionais abriram a carteira, protagonizando diversas fusões bilionárias desde 2008. Setores como o de educação, de tecnologia, de consumo e de saúde passaram por um intenso processo de consolidação nos últimos anos. Aquisições são a maneira mais fácil para crescer rapidamente, não há dúvida. O difícil é fazer essa estratégia dar certo. E, principalmente, gerar valor aos acionistas da empresa consolidadora. É o que demonstra um amplo estudo, obtido com exclusividade pela DINHEIRO, realizado pela consultoria americana Intralinks em parceria com a Cass Business School, da Universidade de Londres. A pesquisa analisou 25 mil empresas em 20 anos, abrangendo mais de 265 mil operações de fusões e aquisições. Desse total, 6% das companhias apresentaram um desempenho consistentemente bom. Em outras palavras, apenas 1,5 mil delas não transformaram em pó o dinheiro dos acionistas. Do universo pesquisado, somente seis companhias brasileiras conseguiram entrar nesse ranking: a Estácio, a JBS, a Hypermarcas, a Vale, a Petrobras e, é claro, a Totvs, de Cosentino. “Essas empresas são capazes de estruturar e fechar negócios rapidamente”, afirma Matt Porzio, vice-presidente de estratégia e marketing da Intralinks. “Elas também fazem acordos que envolvem dinheiro e não apenas transações que envolvem troca de ações.”

A incorporação da Bematech pela Totvs comprova a tese de Porzio sobre as empresas bem-sucedidas em fusões e aquisições. A negociação foi rápida e durou apenas três meses, apurou DINHEIRO. As conversas envolveram, em um primeiro momento, apenas Cosentino e os fundadores da companhia curitibana, os empresários Marcel Malczewski e Wolney Betiol. “Eles se conheciam há muito tempo e isso ajudou bastante no negócio”, diz uma fonte do setor de tecnologia. Se aprovada, a transação envolve o desembolso de R$ 467,4 milhões em dinheiro, diretamente do caixa da Totvs, e mais R$ 82,5 milhões em ações. No fim do processo, Malczewski e Betiol, que detêm 16% da Bematech, ficarão com menos de 2% do capital da Totvs. Cosentino e seu sócio Ernesto Haberkorn permanecem como os maiores acionistas, com aproximadamente 18%.

A operação com a Bematech seguiu uma antiga cartilha criada por Cosentino, que sofreu poucas mudanças ao longo dos últimos 10 anos. O empresário criou uma área de inteligência de mercado e de fusões e aquisições internamente, que prospecta os eventuais alvos da Totvs. Antes mesmo do primeiro contato, Cosentino tem à sua disposição um amplo diagnóstico da empresa que pode vir a ser comprada. Ele sabe, por exemplo, quem é quem na companhia, o que ela pode agregar de valor e quais as pessoas-chave para o negócio. Esses fatores são decisivos na definição do preço a ser pago pelo passe da candidata. Os donos das empresas que estão sendo prospectadas, em uma fase mais avançada, são convidados a conhecer a sede da Totvs, um imponente edifício na zona norte de São Paulo, onde Cosentino, que chegou a ser sócio do estrelado restaurante La Brasserie, do chef francês Erick Jacquin, muitas vezes, arregaça literalmente as mangas para ele próprio preparar a refeição. Esse contato é considerado vital para o dono da Totvs, que avalia a empatia com os seus possíveis novos sócios. “Existem empresas que nasceram para serem vendidas”, diz Cosentino. “Essas não interessam à Totvs.”

Antes mesmo de o contrato de compra e venda ser assinado, Cosentino já definiu os produtos que serão mantidos e as posições dos executivos que serão aproveitados na nova estrutura. “Somos uma empresa que mais contrata do que demite”, ressalva. Com isso, o fundador da Totvs consegue acelerar o processo de incorporação. A Logocenter, uma das primeiras a serem compradas, em 2005, por exemplo, foi integrada em 12 meses. A RM, adquirida no ano seguinte, demorou 10 meses para ser incorporada. No caso da Datasul, em 2008, foram apenas 73 dias “Atualmente, demoramos entre 60 e 90 dias”, diz Cosentino. Uma comprovação de que a estratégia está dando certo, justificando a inclusão da Totvs no estudo da Intralinks, pode ser encontrada nos números. De 2005 a 2014, a receita líquida cresceu 12 vezes (com o faturamento da Bematech, vai ultrapassar a barreira dos R$ 2 bilhões). O lucro aumentou 17 vezes, para R$ 262,9 milhões, no ano passado. Quem tivesse investido R$ 1 milhão no IPO da Totvs, em março de 2006, teria hoje R$ 6,1 milhões, uma valorização de 514%. O índice Ibovespa, no mesmo período, acumula alta de apenas 25,1%.

ALQUIMIA Não existe, no entanto, uma receita universal para que uma fusão seja bem-sucedida e traga valor aos acionistas. Cada mago formula sua própria alquimia. Veja o exemplo da JBS. Nos últimos anos, a empresa comandada pelos irmãos Joesley e Wesley Batista transformou-se numa máquina de compras, o que fez o seu faturamento saltar de R$ 3,7 bilhões, em 2006, registrados um ano antes da sua abertura de capital na BM&FBovespa, para R$ 120,5 bilhões, no ano passado. A estrategia mais frequente do maior produtor de proteína animal do mundo é encontrar bons ativos com problemas financeiros, negociar um preço razoável de compra e implantar uma gestão eficiente, baseada em corte de custos e na eliminação de sobreposições. A americana Pilgrim’s Pride, adquirida por US$ 800 milhões em 2009, ilustra  à perfeição essa prática. A abatedora de frangos estava altamente endividada e à beira da falência, ao ser comprada pela JBS. Totalmente recuperada, a Pilgrim’s fez um pagamento extra de US$ 1,5 bilhão de dividendos aos seus acionistas, no ano passado. Boa parte desse dinheiro foi parar no caixa da JBS, dona de 75% da empresa. Essa operação permitiu à JBS reduzir seu endividamento, que chegou a ser de mais de quatro vezes a sua geração de caixa, para 2,4 vezes.

Enquanto esta reportagem estava sendo elaborada, a JBS mostrou que mantém a todo vapor sua estratégia de aquisições. Na quinta-feira 20, sua subsidiária australiana ofereceu US$ 42 milhões pelo controle da empresa de robótica Scott Technology, da Nova Zelândia. Considerada a mais inovadora e principal desenvolvedora de automação para o setor de proteínas, a Scott poderá ajudar a JBS a dar saltos de produtividade. A intenção da empresa brasileira é usar o máximo que a tecnologia permitir para aumentar a eficiência de sua cadeia de produção.

Com um apetite muito menos agressivo que a JBS, a Estácio, do presidente Rogério Melzi, não se envolveu em megaoperações, como suas rivais Kroton e Anhanguera, que acabaram se unindo. Em 2008, a GP Investiments adquiriu 20% da rede de ensino carioca e deu início a um processo de ajuste interno. Antes de ir às compras, era preciso arrumar a casa. Foram três anos de corte de custos, revisão do método de ensino e simplificação de processos administrativos. De 2011 a 2014, a Estácio realizou 14 aquisições, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Com uma gestão de rédeas curtas, a Estácio controlou a taxa de evasão escolar e trabalhou para não ser “Fiesdependente”, numa referência à dependência que muitas empresas de ensino superior privado têm do Fies, o programa federal de financiamento estudantil. A empresa cresceu com menos força, porém com mais consistência. As receitas aumentaram 74% de 2012 para 2014, para R$ 2,4 bilhões, e o lucro líquido quase quadruplicou no mesmo período.

Para as empresas classificadas como Excelentes na Gestão de Investimentos (EGIs), expressão cunhada pelo estudo da Intralinks, esse caminho é uma via de mão dupla: quando faz sentido, elas não se furtam a desinvestir e a vender ativos. Os motivos são diversos. Petrobras e Vale, que figuram no grupo de seis companhias brasileiras de elite nesse quesito, sofrem, atualmente, com a queda de preço de suas principais matérias-primas: o petróleo e o minério de ferro. A Hypermarcas, comandada por Claudio Bergamo, depois de incorporar 29 empresas, abandonou sua estratégia de ser uma espécie de Unilever brasileira para se concentrar nas áreas de medicamentos, higiene e limpeza. Com isso, vendeu até mesmo a palha de aço Assolan, que estava em sua origem, em 2000. Mas não há arrependimento. A companhia já obtém 65% de suas receitas da área de medicamento, chegando a incomodar a líder EMS na área de genéricos. A reorganização foi bem recebida pelo mercado. “Agora que a reestruturação está concluída, a empresa parece mais palatável, e mais fácil de comparar com os concorrentes”, escreveu o analista Marcel Moraes, do Deutsche Bank no Brasil, em um relatório publicado no dia 28 de julho. Agora, Moraes recomenda a compra das acões.

Colaborou Moacir Drska

“Apenas 6% das empresas têm um desempenho consistentemente bom”

Matt Porzio, vice-presidente de estratégia e marketing da Intralinks, fala à DINHEIRO sobre a pesquisa:

Como o sr. concluiu que seis empresas brasileiras eram competentes na execução de fusões e aquisições?
Realizamos uma pesquisa em parceria com a Cass Business School, da Universidade de Londres. A pesquisa é complexa, mas está baseada em uma pergunta simples: que estratégia leva uma fusão ou aquisição ao sucesso? Procuramos identificar a empresas que dominam essa disciplina estratégica. Nossa pesquisa analisou 25 mil empresas, abrangendo mais de 265 mil operações de fusão ou aquisição efetuadas entre 1994 e 2013. Queríamos entender quais dessas empresas geraram consistentemente valor aos acionistas. Para calcular isso, consideramos a valorização da ação, incluídos os dividendos, imediatamente posteriores ao fechamento do negócio, em comparação com as médias de mercado, tanto gerais quanto setoriais.

Qual o universo de análise?
Analisamos todas as empresas abertas que constam no banco de dados da Thomson Reuters. Consideramos empresas com um valor de mercado superior a US$ 10 milhões e analisamos transações que tiveram valor divulgado e que movimentaram US$ 1 milhão ou mais. Foi uma pesquisa de grande escala, provavelmente o maior trabalho sobre fusões e aquisições já realizado.

Como o sr. chega à conclusão de que uma determinada empresa é excelente na realização de fusões ou aquisições?
Olhamos para o retorno total aos acionistas, medido pela variação do preço da ação mais dividendos, resultante de uma fusão ou aquisição. Especificamente, comparamos o desempenho da empresa, ao longo de períodos sucessivos de três anos, quando houve atividade de M&A. Em seguida, comparamos esse desempenho com índices de mercado locais da empresa. Calculamos a taxa de crescimento anual composta em períodos de três anos, o que nos permite comparar todas as empresas em relação ao retorno ao acionista.

Quais foram as conclusões?
Com base nessa análise, concluímos que apenas 6% das empresas avaliadas apresentaram um desempenho consistentemente bom. Nós batizamos esse grupo de elite de Excelentes Gestoras de Investimentos (EGIs). Assim, encontramos seis empresas brasileiras. São elas:  Estácio, Hypermarcas, JBS, Vale, Petrobras e Totvs.

Quais práticas das EGIs que podem ser copiadas por outras empresas?
Os resultados mostram que há seis características. A primeira é agilidade. As EGIs são capazes de estruturar e fechar negócios rapidamente. A segunda é a disposição para fazer acordos que envolvam dinheiro, e não apenas transações envolvendo troca de ações. A terceira é a disposição para assumir riscos, fechando negócios fora do país de origem e não se intimidando em tentar aquisições hostis.  A quarta é a capacidade de aliar-se a parceiros  financeiros, como bancos de investimento ou investidores estratégicos, e não ter medo de estruturar operações complexas. A quinta é evitar “megaoperações” e não tentar comprar ou fundir-se a empresas muito maiores que a sua. Finalmente, a sexta ensina que é preciso ter a sabedoria de ajustar sua estratégia às condições da economia.

Algum setor específico apresenta um melhor desempenho em fusões e aquisições?
As empresas de petróleo e gás são mais propensas a se tornarem EGIs, no longo prazo, do que as de outros setores. A maior frequência está nas empresas industriais, mas os melhores resultados dependem da estratégia individual.