19/03/2003 - 7:00
A proposta do governo de George Bush para a Alca é muito modesta
Quando Duhalde assumiu temia-se o caos social. Mas a Argentina está se recuperando
DINHEIRO ? Como o sr. avalia a proposta americana para a Alca?
José Botafogo Gonçalves ? Não houve muita surpresa. Há tempos, os EUA disseram que os temas que mais nos interessam ? protecionismo agrícola e subsídios às exportações americanas ? serão tratados em outro fórum. Serão negociados entre os EUA e a União Européia. Na verdade, os americanos praticamente se abstiveram de fazer uma proposta para nós. Não é uma surpresa, mas enfraquece a oferta americana. Os avanços da Alca estão condicionados a negociações que ainda não ocorreram.
DINHEIRO ? E as propostas para as tarifas?
BOTAFOGO ? Em termos genéricos, os EUA já aplicam tarifas muito baixas sobre os produtos importados. Não é que uma oferta nesse campo seja irrelevante. Mas tem um valor comercial menor. O que nos incomoda mais são os picos tarifários para alguns produtos. Esses picos tarifários continuam excluídos da negociação. A oferta do governo Bush, portanto, é modesta. É apenas um começo. Em toda negociação, o sujeito joga primeiro o par de dois. O par de ases fica para o final.
DINHEIRO ? No auge da crise da Argentina, muitos decretaram a morte do Mercosul. O governo Lula quer dar prioridade ao bloco comercial. O Mercosul vai renascer?
BOTAFOGO ? A crise na Argentina e a performance modesta da economia brasileira afetaram a imagem do Mercosul. Mas daí a concluir que o bloco tenha morrido vai uma distância enorme. Essa suposta morte nunca foi reconhecida por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, nem pelos parceiros privados. O Mercosul nunca morreu.
DINHEIRO ? Mas o comércio entre os países caiu muito…
BOTAFOGO ? É claro que os empresários esperam que o número global do comércio volte a apresentar os resultados do início dos anos 90. Isso está começando a acontecer com o início da recuperação americana. Enquanto isso, no campo institucional, o Mercosul nunca parou de avançar.
DINHEIRO ? Quais foram os avanços?
BOTAFOGO ? Enquanto todo mundo anti-Mercosul dizia que o bloco tinha morrido, ele reforçou suas instituições. Criou o Tribunal de Apelação Permanente, que era uma grande preocupação dos países. Com o tribunal, há um mecanismo mais ágil para solução de controvérsias. Foram tomadas inúmeras iniciativas nos campos de saúde e educação. Fechamos acordo para facilitar a circulação de pessoas e demos um passo definitivo para permitir a residência e o trabalho de um cidadão de um país em outro do Mercosul.
DINHEIRO ? O que muda com o novo governo?
BOTAFOGO ? O presidente Lula e o chanceler Celso Amorim deram a orientação para avançar nos aspectos em que ocorreram menos progresso. São entendimentos na área sanitária e fitossanitária. Vamos desenvolver políticas de promoção de exportação a mercados fora do Mercosul. Vamos integrar cadeias produtivas entre os países do bloco, como os produtores de madeira e móveis. Todos esses temas têm uma condição bem melhor para avançar agora.
DINHEIRO ? Por quê?
BOTAFOGO ? Há um início de recuperação econômica no Brasil e na Argentina. Na Argentina, há uma ênfase maior na produção depois da desvalorização do peso. O elemento principal para a retomada é o desaparecimento da assimetria cambial. Como o Brasil, a Argentina, o Uruguai estão com câmbio flutuante, você eliminou o principal fator de fricção econômica que levava também a uma área de fricção de comércio. Essas novas condições permitem que o Mercosul ganhe a velocidade que vinha perdendo. Além disso, a instabilidade financeira mundial foi determinante para dar uma nova perspectiva ao bloco.
DINHEIRO ? Como assim?
BOTAFOGO ? Crises como a do México e a da Ásia mostraram aos países do Mercosul, Brasil e Argentina em particular, que há um caminho comum para reduzir sua fragilidade externa. Hoje, estão mais conscientes que precisam de uma política de exportações muito forte para voltar a acumular saldos na balança comercial. Esses saldos serão facilitados pela flutuação do câmbio, que prejudicou muito a competitividade dos produtos do Mercosul.
DINHEIRO ? Como os países do Mercosul podem enfrentar
esse problema juntos?
BOTAFOGO ? Há uma retração de capitais para países
emergentes. Essa retração dos investidores levou a uma
percepção que o Mercosul é parte da solução do problema. Sobretudo se os quatro países se unirem para enfrentar o
mercado mundial. Além dessa união externa, há uma crescente percepção das sociedades e, principalmente, dos governos de
que a fragilidade externa passa por um ajuste fiscal, com controles de orçamento e uma redução de endividamento. Há coincidência política, todos buscam maior responsabilidade fiscal para usar melhor os recursos públicos disponíveis.
DINHEIRO ? Os críticos do Mercosul dizem que dar prioridade ao bloco é unir o roto ao esfarrapado…
BOTAFOGO ? Se usar essa lógica, o Brasil é um bando de pobres, a Argentina é um bando de pobres e não faz sentido unir as duas economias. Não vejo assim. Com os necessários ajustes, vamos crescer e exportar. Não há outra região com tanto potencial de crescimento como a América do Sul. Há enorme potencial de expansão do mercado interno, capacidade produtiva e conquista de novos mercados, como o indiano e o chinês. É o contrário do que você está dizendo. É a falta de prosperidade passada que cria mais oportunidades. É muito mais interessante investir onde está tudo ou quase tudo por fazer, como aqui.
DINHEIRO ? A Argentina oscilou, nos últimos anos, entre o Mercosul e ?relações carnais? com os EUA, como definiu
o ex-presidente Menem. O que garante que o país
seguirá com o bloco?
BOTAFOGO ? Essa dualidade de discurso prevaleceu algum tempo no governo do De La Rúa: a chancelaria era a favor do Mercosul e o ministro Domingo Cavallo era contra. Isso desapareceu em 2002 com Duhalde. Está certo que é um governo que tem menos força porque foi eleito indiretamente, pelo Congresso, e isso só vai se corrigir com as eleições. Mas não vejo nenhum risco de o novo presidente voltar a ter essas ilusões, achar que é possível solucionar os problemas por relações diretas e por atalhos com os EUA.
DINHEIRO ? Mesmo se Menem vencer as eleições?
BOTAFOGO ? Não quero especificar nenhum nome, mas não haverá mudança com qualquer um dos cinco candidatos. Há uma certa irreversibilidade nos processos em construção desde 1991 e eles têm um peso. Não se trata de um presidente gostar ou não gostar. A máquina dos entendimentos e da economia já está em marcha e dificilmente você rompe isso sem resistência. É muito pouco provável que haja ruptura.
DINHEIRO ? E os riscos políticos da Argentina?
BOTAFOGO ? A instabilidade política na Argentina se mostrou de maneira aguda com a renúncia do De La Rúa. Mas ele foi substituído dentro das normas constitucionais. Não ocorreu ruptura. As eleições estão marcadas para o mês de abril e tudo indica que elas ocorrerão. Quando Duhalde assumiu, no início do ano passado, havia muita especulação de que estávamos diante de um potencial caos social, que poderia conduzir a um conflito interno. Nada disso ocorreu. Pelo contrário, a economia e a política mostraram muita capacidade de resistência, na pior crise da história da Argentina.
DINHEIRO ? Mas vale a pena apostar no Mercosul?
BOTAFOGO ? Respondo com uma questão geográfica: a Suécia é nosso vizinho? Temos fronteira com a Bélgica? Não, temos
Argentina, Uruguai e Paraguai. Não adianta pensar numa fórmula
que geograficamente não existe. Fazemos parte da América do
Sul. É aqui que temos que trabalhar. A velha citação de Ortega e Gasset: eu sou eu e minhas circunstâncias. Então, o Brasil é o
Brasil e suas circunstâncias.
DINHEIRO ? A desvalorização do câmbio no Brasil, Argentina e Uruguai aumentou as chances para a moeda comum?
BOTAFOGO ? O tema voltou à mesa para uma discussão mais séria porque a pedra no meio do caminho foi removida. Agora o caminho ainda não foi traçado, começa agora com ênfase nas etapas intermediárias, que passa por harmonização estatística, definição de metas comuns de inflação, endividamento externo e interno, tudo isso abre caminho para a moeda comum.
DINHEIRO ? A Argentina vai crescer?
BOTAFOGO ? Há sinais positivos, mas é cedo para dizer que
é a base de um crescimento sustentado. Parte da recuperação depende de entendimentos políticos. É preciso esperar o novo governo, que terá mandato da sociedade e uma eventual maioria
no Congresso para conduzir as mudanças. Mas há bons sinais, como o controle da inflação e a recuperação dos saldos comerciais. Bancos já falam num crescimento de 4,5% em 2003. A Argentina é um país rico. Talvez tenha menos dificuldades para retomar o crescimento do que teve o Brasil.
DINHEIRO ? Por quê?
BOTAFOGO ? A Argentina tem petróleo, gás e água em abundância. O pampa úmido é uma terra de fertilidade impressionante. No Brasil, levamos 30 anos para desenvolver a soja no cerrado e os rios correm para a direção errada (risos). É mais fácil retomar o crescimento aqui do que no Brasil. Jogar a ficha na Argentina é um ótimo negócio.
DINHEIRO ? Ainda há resistência à compra da empresa de petróleo Perez Companc pela Petrobrás?
BOTAFOGO ? Dentro de pouco tempo, a comissão de Defesa da Concorrência deve baixar seu parecer aprovando a compra. A Petrobrás deu garantias que a presença dela não tem caráter monopolístico. Pelo contrário, vai restabelecer a concorrência. Hoje, a Repsol tem muito mais poder no mercado. A Petrobras fez muito bem em investir US$ 1,2 bilhão. Assim como a Ambev fez uma boa aposta ao se fundir com a Quilmes. Petrobras e Ambev passaram de uma visão de mercados nacionais para regionais.
DINHEIRO ? E as empresas brasileiras que saíram do país?
BOTAFOGO ? No caso da Sadia, houve uma enorme retração do consumo, um problema de conjuntura. Agora, o setor de frango começa a se recuperar. O setor de calçados é a mesma coisa. Foram muito fragilizados pela paridade cambial. E, por isso, foram foco de tensões com o Brasil. Mas agora estão em recuperação, assim como o setor têxtil. Com esse esforço de união das cadeias produtivas, setores privados argentinos e brasileiros podem se recuperar ainda mais rápido.